Participação política, luta sindical e docência em sala de aula: caminhos que se entrelaçam

Legenda: A participação política se dá em diversas esferas, entretanto, a luta coletiva é a principal ferramenta da classe trabalhadora para a reivindicação de seus direitos. Créditos: vectorjuice. Fonte: Freepik.

Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, a professora, militante e sindicalista Mônica Severo fala da importância da participação política e sindical para a defesa da Educação pública, universal e de qualidade.

A professora Mônica Severo é bacharela, licenciada e mestra em Filosofia. É professora efetiva da rede oficial de ensino do Estado de São Paulo desde 2008. Entre os anos de 2012 e 2015, foi Chefe-Substituta da Representação Regional do Ministério da Cultura em São Paulo. Também possui experiência no Ensino Superior de esfera pública e privada. Atua como docente em programas de pós-graduação desde 2011 e é autora de material didático para diversas universidades. Também é membra do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).

Bate-bola da BALBÚRDIA

BALBÚRDIA: Um ativista, militante ou político.

Mônica Severo: Orlando Silva. Ele é um político que tem feito um trabalho em defesa dos direitos humanos, é um amigo que está na luta e que é as três coisas.

BALBÚRDIA: Um educador ou professor.

Mônica Severo: Dermeval Saviani. Um pai da construção teórico crítica. Nós temos que nos orgulhar dos nossos talentos.

BALBÚRDIA: Um livro.

Mônica Severo: O manifesto do partido comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. O convite que o manifesto faz ainda é de extrema importância, “Trabalhadores uni-vos”.

BALBÚRDIA: Um sonho.

Mônica Severo: A transformação e superação dos horrores do capitalismo. A construção de um outro mundo possível e necessário.

BALBÚRDIA: Uma memória como educadora/militante.

Mônica Severo: Eu estava falando sobre racismo em sala de aula e estávamos lendo um texto sobre as meninas que esticavam os cabelos. Nós começamos a conversar sobre o texto e uma jovem negra com cabelo alisado levantou no fundo da sala e disse: “é muito simples a senhora falar, né, dona branquela? A senhora toda branca. Só tem vantagens porque é branca, com esse cabelo liso escorrido, e você vir aqui falar como eu devo usar meu cabelo e viver minha vida. Queria só ver se eu chegasse na sua casa namorando seu filho loirinho, o que você iria dizer”. Eu fiquei tão apaixonada por ela. Achei aquilo tudo tão lindo. Ela estava toda coberta de razão. Disse para ela: “eu ia dizer para aquele mongolão que eu tenho lá em casa que ele tem que comer muito feijão, que ele tem que correr, estudar, para estar à altura de uma mulher linda, maravilhosa, uma menina inteligente, capaz e corajosa como você. Seria um orgulho gigantesco ter você como minha norinha. Agora você não deveria ter dito isso, porque ele tem a sua idade”. Aí já virou uma brincadeira, porque na sala de aula tinha aluno que jogava bola com meu filho e eu já tinha virado a casamenteira. Nós ficamos muito amigas e atualmente ela é uma jovem trabalhadora das artes, bailarina e professora de dança. Essa experiência foi muito positiva para mim. Não fui eu que escolhi o padrão de beleza, mas eu não posso esquecer que para mim é mais fácil e que esse tema é mais doloroso para menina de 15 anos, mas eu também não posso deixar de falar, porque é necessário falar. Lutar para transformar. Gosto muito dessa história.

31 de outubro de 2022 | 10:00

Por Caian Cremasco Receputi e Lívia Dantas

Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, Mônica Severo, professora da rede oficial de ensino do Estado de São Paulo fala sobre a necessidade da participação política em diferentes esferas da atuação docente. A professora destaca que somente através de coletivos organizados se é possível enxergar os problemas mais amplos da sociedade e, consequentemente, é importante lutar por uma mudança estrutural, que possibilite superar os problemas mais imediatos da educação e da classe trabalhadora. Ainda, é destacado que as diferentes dimensões de luta se entrecruzam, possibilitando, inclusive, a melhoria do processo de ensino e aprendizado vivenciado em sala de aula.

BALBÚRDIA: Gostaríamos que nos contasse sobre sua percepção em relação ao papel da educação e da política na vida da população.

Mônica Severo: Eu vou dizer o que penso e não recitar uma frase pronta, vou dizer o que normalmente falo para os estudantes da Educação Básica com quem eu trabalho. Eu trabalho em uma escola pública, onde nós todos somos trabalhadores, eu sou uma trabalhadora, alguns dos estudantes já são trabalhadores, mas todos eles são filhos de trabalhadores, não há absolutamente outra condição. Nós temos classe social, nós vivemos em uma sociedade singida, rachada, quebrada, com uma quantidade de problemas que nós precisamos e devemos superar, por exemplo, a desigualdade, o racismo, a homofobia, o machismo, que são, na verdade, faces do mesmo fenômeno, são elementos constitutivos do modelo capitalista, da concorrência entre os trabalhadores. Esta é uma necessidade desse sistema e isso gera essa divisão entre nós, os vendedores de mão de obra. Portanto, o machismo, o racismo e a homofobia são faces dessa contínua necessidade de concorrência da classe trabalhadora. 

Nós somos aqueles que fazem o mundo, mas não fazemos um mundo para que seja nosso, fazemos um mundo para apenas 1% de vampiros que vivem do trabalho de 99% da humanidade. Se nós não nos adornamos das ferramentas de conhecimento que foram gestadas por nós, pois foram os trabalhadores das gerações que nos antecederam que construíram essas ferramentas, seremos dizimados, esmagados e ainda vamos ficar achando que é bonito, que é o que nós merecemos, vamos achar que “não, está dando tudo errado na minha vida, estou ficando desempregado, estou sendo despejado, estou trabalhando em péssimas condições, mas é porque eu não fiz um bom planejamento, é porque eu não tenho resiliência, autoconhecimento, autoestima ou amor próprio”. Portanto, para os trabalhadores e para os filhos dos trabalhadores é uma necessidade obter o conhecimento para que nós consigamos fazer do futuro algo diferente do presente.

Não sei vocês, mas eu não estou satisfeita com o presente, o futuro pode e deve ser diferente e nesse caso eu sou bastante sartreana1, nós estamos condenados ao exercício de fazer o mundo e nós temos duas opções: ou nós faremos o mundo a imagem e semelhança daquilo que nós herdamos ou faremos o mundo em alguma medida diferente daquilo que herdamos. Para que nós possamos fazer do mundo de alguma maneira distinta daquilo que herdamos, precisamos de ferramentas, por exemplo, o conhecimento, um pouco de Química, Física e Biologia, precisamos saber de Literatura, Matemática, claro que não precisamos ser especialistas em todos esses assuntos, mas temos que ter um mínimo de saber em cada uma dessas áreas. E se eu sou muito jovem, como são os estudantes da Educação Básica, eu tenho o direito de saber um pouco dessas disciplinas, pois vai que eu serei a pessoa que irá se apaixonar pela Biologia, que se tornará uma pesquisadora e que irá encontrar a cura para uma doença. Outra estudante pode se apaixonar por Matemática, por Física ou outra disciplina e nós teremos outro Oscar Niemeyer ou alguém que pense em uma engenharia que fará com que a cidade seja menos desigual ou alguém que resolverá o problema de mobilidade e assim por diante. Portanto, nós trabalhadores não temos o direito de abrir mão da ferramenta que foi construída por outros trabalhadores e que nos possibilita fazer alguma coisa de diferente, algo melhor. Os estudantes também compartilham esse sentimento de que as coisas têm que ser melhor, que a sociedade pode ser melhor, que nós merecemos um mundo e um futuro melhor. 

Quando falo do conhecimento, estou me referindo aos conhecimentos das disciplinas trabalhadas na Educação Básica, mesmo que seja uma fração do conhecimento de todas essas áreas. Nós precisamos desses conhecimentos para que nós possamos brilhar, para que possamos nos desenvolver individualmente, para que possamos descobrir sobre o que nós gostamos, aquilo que nos fascina. Também precisamos nos apropriar desses conhecimentos, inclusive, como uma responsabilidade pelas gerações que descobriram, construíram e sistematizaram o conhecimento que temos até o momento, conhecimento esse que será transformado, será revisado, que será melhorado, mas nos apropriarmos dessas ferramentas é nosso dever, nossa obrigação e é o único caminho para a nossa emancipação humana. Não é só a emancipação financeira, que também tem relação, pois o trabalhador que é o vendedor de mão de obra, se ele está mais capacitado, consegue vender o seu trabalho, sua energia vital em uma condição menos desfavorável, pois quanto menos capacitado, pior serão as condições em que ele irá vender a sua energia vital. 

Tempo não é dinheiro, tempo é o tecido da vida. Nós vendemos a nossa vida. Nós gastamos a nossa vida no nosso trabalho. Nesse sentido, se eu exerço um trabalho no qual eu também me realizo como ser humano, é claro que eu dou um significado para essa atividade, para esse gasto do tecido da minha própria vida. Portanto, a apropriação das ferramentas tem esse caráter econômico, de me preparar melhor para o trabalho para que eu não o venda de forma tão desfavorável, pois é sempre desfavorável para quem vende, nós sabemos disso, mas pode ser menos ou mais desfavorável. Por exemplo, se eu só tenho o Ensino Fundamental II, não posso trabalhar nem como caixa de supermercado, então é claro que eu ficarei condenada aos trabalhos mais insalubres, com as menores remunerações e com as condições mais difíceis de trabalho, portanto, há esse caráter mais instrumental, mais pragmático. Mas não é esse caráter da apropriação das ferramentas que é o que eu mais me emociono ou o que mais trabalho com os jovens, pois para que nós possamos desenvolver adequadamente o nosso potencial humano, nós precisamos nos adornar das coisas que os que nos antecederam deixaram para nós e é isso que eu busco trabalhar com os estudantes.

Eu atuo em uma escola que está no centro da capital Paulista, o bairro é da Aclimação, tem parque, tem centro cultural, tem muitos equipamentos públicos, porque a região central tem mais equipamentos de lazer e de cultura do que as periferias, faz parte do desenho dessa cidade desigual, mas os jovens frequentam pouco esses espaços, se percebem pouco dos detentores de direito de frequentar esses espaços. Inclusive, nós precisamos fazer esse trabalho de conscientização com eles, pois temos a ilusão de que as pessoas que moram mais ao centro já tem todas as suas necessidades atendidas, mas isso não reflete a verdade, pois a maior parte dos nossos estudantes moram em pensões, então as condições são absolutamente insalubres e para a prefeitura de São Paulo se chamam ‘cortiços e assemelhados’, essa é a expressão utilizada nos instrumentos normativos. Então é uma vida com vários problemas estruturais graves e nós só conseguimos superar isso coletivamente, claro que um ou outro conseguem furar a bolha, pode ser que um é muito talentoso no futebol e conseguirá com o esporte, embora não seja bem assim, sempre falo para os estudantes que a grande maioria dos jogadores ganha muito mal, têm uma vida muito difícil, em situação de moradia irregular, é um ou outro que consegue furar a bolha e nós enquanto indivíduos e coletivos temos que pensar em soluções estruturais para atender a grande parcela da população.

A superação dos problemas é sempre um desafio, mas nós temos uma comunidade muito aguerrida. É uma escola em que os estudantes se mobilizam bastante. Em 2015, ocuparam a escola, são protagonistas de uma série de ações pontuais, que muitas vezes acabam não tendo impacto, no sentido de ter uma divulgação muito grande, mas que na comunidade em que vivem essas ações reverberam bastante. Só para se ter uma ideia, em 2022, no estado mais rico da Federação, que é o estado de São Paulo, faltou merenda nas escolas, não faltou toda a merenda, faltou o que nós chamamos de merenda seca, que é uma fruta, um leite e um biscoito, alguma coisa parecida com um café da manhã, mas na escola também é servido almoço, janta e café da tarde, sendo que tem crianças que almoçam e jantam na escola, ou seja, as duas refeições quentes são feitas na unidade escolar. Estou dizendo isso para ressaltar a importância das unidades escolares para a vida desses sujeitos, pois a coisa mais básica é o alimento. Entretanto, esse ano faltou merenda seca. Na parte da manhã, muitos estudantes vão para a escola sem tomar café da manhã. Inclusive, esses dias um professor de Educação Física chamou a atenção de um estudante, pois ele ia para a escola sem tomar café da manhã e em toda aula de Educação Física passava mal e o menino olhou para o professor irritado e disse “mas eu não tenho o que comer na minha casa, por isso que eu venho para a escola sem comer, eu como na escola, porque na minha casa não tem comida, não é porque eu não quero comer”. Mas essa merenda das 9h não chegava e os estudantes rapidamente se juntaram para se manifestar. Decidimos fazer uma reunião emergencial do conselho da escola, chamamos um funcionário da Diretoria de Ensino, nós queríamos uma supervisora que nos respondesse quando a merenda iria chegar, queríamos saber porque não tinha merenda em um estado rico como o de São Paulo. Mas vou te falar que nem reunião com a comunidade teve, pois essa administração é tão covarde que o fato das pessoas se mobilizarem, antes que nós realizássemos a reunião, a comida já havia sido entregue. Nós sabemos que não é assim em toda a comunidade, mas na comunidade em que trabalho tem esse histórico de resistência e de luta, os estudantes e a comunidade de maneira geral se engajam.

Nos últimos seis anos, estamos enfrentando a possibilidade do fechamento do curso noturno pela atual gestão e ano após ano nós precisamos juntar a comunidade para ‘bater o bumbo’, para fazer mobilização com os estudantes, com os pais dos estudantes, com ex-alunos, com as associações de moradores, de mulheres, todos os gabinetes que puderem nos ajudar, pois nós precisamos de força para não fechar o período noturno. Então são ataques que têm se repetido e que temos conseguido impedir com a mobilização da comunidade. Felizmente essa comunidade tem esse histórico de resistência.

Portanto, eu tenho vínculo com a comunidade, pois eu trabalho apenas nesta  escola que mencionei. Se eu trabalhasse em cinco escolas, eu não conseguiria ter vínculo com a comunidade, porque é humanamente impossível. Eu também não mudo de escola, pois demorei cinco anos para trazer meu cargo para a escola que estou atualmente, que fica a 300 metros da minha casa. Eu vou e volto a pé, encontro os meninos na feira, encontro suas mães no mercado, encontro todo mundo na farmácia. Dessa forma, você consegue ter vínculo, claro, é a minha comunidade, se eu não tiver vínculo com eles, vou ter vínculo com quem? Então veja que para a construção do conhecimento escolar é importante garantir os direitos e a dignidade mínima para os trabalhadores. Um colega que está lecionando em cinco escolas não consegue criar vínculo algum, não tem tempo de estabelecer laços. Se ele começa um projeto, ele não sabe se no próximo ano estará na escola e os alunos também sabem disso e pensam “tô tão empolgado agora, mas no próximo ano vem outro professor e muda tudo, então vou me engajar nesse projeto para quê?”. Então isso é só para reforçar como as condições laborais afetam diretamente a educação oferecida. Isso sem falar dos salários.

BALBÚRDIA: Recentemente você participou de um debate no jornal Diálogos do Sul, intitulado “Ataques e precarização: professores sofrem nas mãos do estado”, momento em que dialogou com o jornalista Paulo Cannabrava sobre o atual cenário da Educação em São Paulo. Gostaríamos de entender melhor sobre esses ataques à Educação no estado de São Paulo.

Mônica Severo: O desmonte da Educação não é desse ano, desse mandato ou desse governo, nós vivemos sob ataque há vários anos em São Paulo, embora nesse governo os ataques tenham endurecido. Todos sabem que São Paulo é um tucanistão2. Vou dar alguns exemplos pontuais.

Dividir os profissionais do magistério em várias caixinhas não é uma moda inventada agora, nem foi inventada pelos tucanos, mas foi implementada por eles e foi implementada em um nível doentio. Um exemplo se refere a diferença na ‘licença nojo’, que é a licença que nós, profissionais da Educação, temos quando perdemos um ente próximo. Nesse sentido, se há 10 professores em uma escola, haverá 10 regimes de trabalho diferentes e com requintes de sadismo, de crueldade. Se a mãe de um professor morrer, ele ficará sete dias pranteando, mas se a mãe de outro professor desta mesma sala morrer, ele poderá prantear somente três dias. Do ponto de vista econômico qual a diferença que isso faz? Nenhuma. Mas do ponto de vista humano faz muita diferença, pois faz com que a pessoa não possa ficar com os seus entes, não possa se despedir daquele que faleceu, ter que voltar do luto no dia seguinte após enterrar o ente querido e ter que entrar em uma sala de aula não é algo bom para o trabalhador, não é bom para os estudantes e nem para a comunidade, pois dessa forma a comunidade inteira fica adoecida. É um nível de maldade desumano.

Outro exemplo que segue a mesma lógica é a ‘licença gala’, que é a licença que nós temos após o casamento. Alguns professores terão mais tempo para viver o amor, já outros terão menos tempo. Do ponto de vista econômico isso não significa nada, mas significa muito para as relações humanas, muito mesmo, pois essas decisões impactam na vida das pessoas, são contraproducentes, acabam aumentando o absenteísmo e, portanto, são contra a escola. Atualmente, na categoria dos profissionais da Educação há um alto nível de absenteísmo, que são professores que faltam ao trabalho, pois o trabalho da forma em que está sendo exercido, enlouquece. Antigamente, o trabalho adoecia, nós tínhamos problema no braço, bursite, tendinite, agora são problemas psíquicos, portanto, estamos tendo problemas com um nível mais difícil de identificar e curar do que os problemas físicos. As pessoas faltam ao trabalho porque elas são oprimidas, perseguidas, garroteadas, vilipendiadas de sua humanidade. E o governo e os administradores têm incrementado essas medidas ao mesmo tempo em que eles implementam e desenvolvem o CONVIVA, que é o "Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar", argumentando que agora os profissionais poderão cuidar da saúde mental. Portanto, o que eles estão fazendo é destruindo a nossa saúde mental e dizendo que nós temos que tratá-la. 

Só para se ter uma ideia, nunca um trabalhador recebeu sem ter que trabalhar. A título de exemplo, na iniciativa privada é diferente. Se eu tenho uma loja e chego ao trabalho 15 minutos atrasada, posso ficar 15 minutos depois e compensar para não ter um desconto, posso fazer um banco de horas e compensar no dia, na semana ou no mês. Entregando as horas pela qual você é contratado, você recebe o salário cheio. Caso você não entregue as horas de trabalho pela qual você foi contratado, há um desconto proporcional às horas não entregues. Nós tínhamos exatamente esse espírito na Educação Básica pública, só que um pouco diferente. Eu não posso ficar 15 minutos depois da aula porque os estudantes ou foram para a outra aula ou foram embora. As aulas são segmentadas, então nós fazíamos por hora-aula, se eu me atrasar 10 minutos na primeira aula, não a ministrarei. A primeira aula tem 45 minutos, portanto, eu posso chegar para a segunda aula e ministrá-la, nesse caso eu só terei uma falta-aula e terei esse desconto, mas é o desconto de somente uma aula. Entretanto, agora não é mais assim, não é mais falta-aula, é falta-dia, então se o professor atrasar 10 minutos ele não deixará de ministrar uma aula, ele deixará de ministrar o dia inteiro, pois se ele for trabalhar, trabalhará de graça. Mas perceba que toda a escola é prejudicada, prejudica o andamento das atividades, prejudica o aprendizado dos estudantes, portanto, é um absurdo, serve só para oprimir ainda mais os trabalhadores e para prejudicar todo o andamento da escola.

A política deste governo e deste último mandato dos tucanos foi extremamente perversa. E eles não param de incrementar medidas desse pacote de maldades. Historicamente, nós professores, representantes de cada escola, não os professores de toda a rede, tínhamos quatro dias ao ano de trabalho abonado para o exercício sindical. Então, em cada bimestre esses professores representantes tinham a sua falta abonada para que eles fossem fazer reuniões com os demais professores para discutirem as condições de trabalho, as necessidades da Educação, os problemas enfrentados e para organizar a luta dos professores. Mas não temos mais esse direito. Vários governos de direita passaram pelo estado de São Paulo sem atacar os direitos dos trabalhadores sindicalizados, mas esse mandato tucano acabou com isso. Portanto, as reuniões sindicais acontecem em uma situação mais difícil, nós temos que fazer as reuniões sindicais aos sábados, porque nós já não temos o amparo do abono para esse dia de reunião sindical. O que isso significa do ponto de vista econômico? Nada, pois o estado não está economizando com isso, mas a escola está sofrendo, pois quanto menos nós lutarmos juntos, quanto menos nós nos enxergarmos como coletivo, mais nós colocamos para dentro de nós as angústias, o que pode desencadear em uma doença e nós conseguimos enxergar menos saídas, pois coisas que nós não conseguimos enxergar para superar sozinho, juntos conseguimos. Juntos, nós conseguimos construir um caminho.

E é claro que todas essas questões influenciam a atividade de ensino e aprendizado na sala de aula. Esse garrote que vai sendo apertado de todos os lados é sentido, inclusive, na sala de aula, pois os professores sofrem e são eles que adoecem mais, que faltam mais e os estudantes sofrem porque a relação entre professores e alunos não é um elemento pouco importante para o processo de ensino e aprendizado. Além do respeito que é fundamental, quando conseguimos estabelecer um laço fraternal, um vínculo humano adequado, as aulas fluem melhor, pois as condições de reflexão são impactadas pela qualidade da relação humana. Portanto, ter o professor adoecido também é difícil para os estudantes. Os estudantes também sofrem com o adoecimento dos docentes.

BALBÚRDIA: Diante de tantos ataques desumanos, gostaríamos de entender se é possível lutar contra esses ataques. Se sim, como nós podemos fazer isso?

Mônica Severo: É possível e necessário lutar contra esses ataques. Do ponto de vista pragmático, uma ação é a de não votar nesses caras nunca mais.

Não podemos mais votar nesses deputados que roubaram as aposentadorias dos professores aposentados. Você imagina um professor trabalhar 30 anos em uma sala de aula e quando está velho, doente, está gastando um monte na farmácia,  tem um confisco de 500 reais do seu salário. Salário que antes do confisco já era insuficiente para a manutenção da vida com dignidade e ainda esse governo incrementou um confisco dos salários. Foi um roubo, roubaram os salários desses profissionais aposentados, quando eles já não têm mais condições físicas de lutar, pois eles já gastaram sua energia vital na Educação. Foi um crime. E não foi só com os profissionais da Educação. Esse confisco das aposentadorias foi para todo o funcionalismo público. Mas nós podemos reverter esta medida, pois a SPPrev, que é a autarquia criada a fim de unificar, gerir e desenvolver o sistema previdenciário no Estado de São Paulo, nunca foi deficitária. Pelo contrário, sempre foi superavitária. Mas esses deputados decidiram fazer a Reforma Trabalhista no estado de São Paulo mesmo assim, a fizeram de pura maldade, fizeram para sangrar o serviço público e transferir o dinheiro para a especulação financeira, para enriquecer aqueles que já estão mais ricos do que precisam.

E claro que esse sistema não tem sentido, então nós precisamos lutar em todas as frentes, inclusive na frente eleitoral. É urgente trocar essa Alesp, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Precisamos de uma casa legislativa que tenha vínculo com o povo, pois a atual Alesp, com honrosas exceções, mas extremamente minoritária, é absolutamente contra o povo, detesta o povo. Portanto, odeiam uma educação para o povo, uma saúde para o povo, uma segurança pública para o povo. Eles são anti-povo. Nós não podemos mais ter representantes dessa laia, nós temos que eleger melhor os nossos representantes. Temos que eleger representantes que estejam vinculados aos trabalhadores, vinculados com a defesa dos nossos direitos básicos.

De forma análoga devemos fazer com o executivo. Não tem mais sentido esse tucanistão, isso tem que acabar. Outro mundo é possível e necessário, outra gestão do aparato público é possível e necessária. Nós já fizemos diferente, não precisamos reinventar a pólvora, podemos retomar práticas que nós já tivemos, podemos retornar um plano de carreira, podemos retornar com mesa de negociação. Não precisa nem inventar muito, pois nós já inventamos as ferramentas, mas temos que retomá-las, fortalecê-las, construir as coisas juntos. 

É preciso lutar em todas as frentes, é preciso lutar nas ruas, é preciso lutar nas salas de aula, porque as salas de aula também são locais de enfrentamento. Na sala de aula, o professor também tem que escolher se é antirracista ou racista. Porque a escola tem racismo, a escola está no mundo e não em uma bola de cristal planando. A escola é mundo, é Brasil, um país racista, machista. Na escola tem machismo e é preciso enfrentá-lo todos os dias. Ou enfrenta essas opressões ou já escolheu o lado do opressor. Não tem neutralidade possível. Esse embate é necessário. É preciso falar de violência e de como nós estabelecemos nossas relações. Portanto, a sala de aula é também espaço do bom combate, da disputa de ideias e da razão contra a força bruta. Inclusive, o ambiente escolar depois da pandemia voltou com um apelo muito forte de se utilizar a força bruta para se resolver os pequenos conflitos.

BALBÚRDIA: A Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) é um dos maiores sindicatos de trabalhadores da Educação da América Latina. Gostaríamos de entender melhor a importância da Apeoesp na defesa da Educação.

Mônica Severo: Acho que nós somos o maior sindicato da América Latina. Nós somos 200.000 trabalhadores na base, em condições muito diferentes. Nós aprendemos coletivamente no sindicato a enxergar de forma mais ampla aquilo o que é importante para a categoria e para a classe trabalhadora. Talvez seja a coisa mais importante. Eu tenho uma formação muito específica, já que minha mãe foi militante social, foi vereadora, eu fui militante no movimento da juventude e eu fui para a universidade. Eu estudava em Minas Gerais, mas vinha para São Paulo para reuniões da UNE (União Nacional dos Estudantes). Essa é uma condição muito particular, nem todas as pessoas têm essas experiências, mas isso não interessa, porque quando nós nos juntamos em um sindicato da nossa categoria, nós compartilhamos as experiências. Nós aprendemos com os outros e começamos a ver coisas que antes não enxergávamos. 

Por exemplo, quando os ataques foram para o funcionalismo público, eu que sou do sindicato dos professores, convidei todos os funcionários da escola para um ato na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), afinal de contas o ataque não era só para os professores. Uma trabalhadora da escola que nunca havia participado de nenhum ato político achou que deveria participar do ato. Ela achou que tinha que entender se eu estava falando a verdade ou mentindo para ela quanto aos ataques aos seus direitos. Até a família dela estranhou, já que ela nunca participou dessas coisas. O dia que ela participou do ato na Alesp foi um dia de agressividade, não foi o dia que apanhamos, depois teve bombas, mas foi um dia de palavras de ordem, de visitar gabinete, de conversar com deputados. Ela pôde ver que no movimento tinha policiais, tinha agentes da saúde, tinha funcionários do judiciário, tinha professores, tinha outros profissionais da escola. Naquela ida à Alesp, em uma tarde, ela aprendeu uma série de perspectivas. Ela começou a enxergar o papel social dela de uma forma totalmente diferente. Depois, ela me disse “sabe que às vezes eu não entendia os alunos do noturno? Eu reclamava tanto deles chegarem atrasados e eu fechava o portão”, porque cansa ficar no portão, em pé, à noite, no frio, na chuva, esperando as pessoas entrarem. Tem que fechar a porta, porque não tem segurança, é perigoso. Ela também falou: “eu comecei a perguntar para eles mais fraternalmente os motivos dos atrasos e um estudante se atrasava o mesmo dia da semana toda semana, porque ele trabalhava como cuidador de idoso e só podia sair para ir para a aula quando chegasse o da noite, mas o cuidador da noite se atrasava, então ele saía mais tarde e também se atrasava para a aula”. Ele não podia deixar o idoso sozinho e ela falou assim: “meu Deus e às vezes eu não deixava ele entrar”. Portanto, ter ido a uma manifestação de trabalhadores e ouvir outras perspectivas mudou a maneira com que ela entende o próprio serviço público, não só pelo que eu falei, mas pelo que ela experimentou junto com outras pessoas. 

Claro que tem a questão salarial, pois eu preciso receber um tanto de dinheiro que me permita comprar uma fração de aluguel, uma fração de água, uma fração de luz. Eu preciso ter dinheiro para comprar remédios, eu preciso ganhar um valor que não pode ser o valor da cesta básica, porque eu não consigo viver com isso. Talvez as pessoas achem que é só a questão salarial, mas não é só o salário, são todas as coisas que impactam no trabalho, que impactam no processo de ensino e aprendizado. É a quantidade de alunos na sala de aula, é a quantidade de escolas que um trabalhador pode trabalhar para não enlouquecer, não adoecer, desenvolver um bom trabalho; é a gestão que tem que ser democrática, que não pode ser opressora, que tem que ser mais aberta. São muitos os fatores. Então quando nós vamos para a vida sindical, nós aprendemos. Aprendemos com a liderança que fala algumas coisas que não sabíamos. Aprendemos com o outro que entende mais de leis do que nós. No sindicato tem advogados que nós, trabalhadores, custeamos para advogar apenas com as questões de professores.

Quando começamos a participar do sindicato de professores, a nossa aula, a nossa atuação dentro da escola, a nossa maneira de nos relacionarmos entre os trabalhadores, com a comunidade e com os estudantes, tudo cresce. Todos ganham. Acredito que a participação do sindicato é dever de todo trabalhador, inclusive para ajudar a sua categoria a melhorar, a crescer, a superar pequenas corrupções e pequenos corporativismos que fazem parte também. A vida sindical não é lugar da perfeição, tem as pequenas vaidades, faz parte, mas coletivamente nós podemos conter isso e conseguimos enxergar melhor juntos. Separados, fica mais fácil nos deixar enganar. Portanto, a vida sindical é fundamental.

A participação política é fundamental para todos os trabalhadores, em todas as áreas, mas na educação é mais importante ainda porque nós estamos falando dos filhos dos trabalhadores. Nós não ensinamos apenas com o que é dito. Também ensinamos por meio das nossas ações e os jovens observam as ações dos professores. Felizmente, estou em uma comunidade bem participativa. Nessa comunidade, os jovens nos ensinam lições de organização, por exemplo, as ocupações de 2015. Belíssimas lições nos foram ensinadas. Então, nós também aprendemos com eles.

Por fim, menciono um fator mais pessoal. Posso afirmar que eu não enlouqueci no magistério, por causa da vida sindical coletiva. Sozinha não dá para encarar. Sozinha você vai achar que o problema é seu, que a responsabilidade é sua. É junto que nós aprendemos os limites da nossa atuação. É comum que na escola falte funcionários de diversos cargos, também é comum que os outros profissionais queiram realizar as atividades que seriam destinadas a esses funcionários para que os estudantes não sejam prejudicados. Mas nós do sindicato entendemos que isso é errado. Eu não vou trabalhar a mais e ainda fazer mal, já que não vou estar investida no cargo, para adoecer mais. Não tem trabalhador, fica sem trabalho. Eu, Mônica, como trabalhadora, defendo isso. Nós não devemos trabalhar de graça, pois é um desrespeito com a gente. Uma coisa é a solidariedade que nós temos entre nós. Eu faço muito trabalho voluntário para a União Brasileira de Mulheres, para o sindicato, para o partido político que acredito que me representa, para a comunidade, mas não para o empregador que por acaso é o estado mais rico da Federação. Esta sempre é uma questão de difícil posicionamento, pois estamos falando de necessidades dos estudantes, mas tem que avisar a família e dizer: “mãe, tem que ter um funcionário, senão não tem quem faça isso. A senhora pega o telefone e reclama. Exija que seja contratado um trabalhador”. Nós só conseguimos ter esse posicionamento sem nos sentir mal quando nós estamos na vida sindical. Tentar contornar o problema não é bom para a comunidade, porque não vai resolver o problema e ainda criará outros.

BALBÚRDIA: No final da década de 1970, Darcy Ribeiro já afirmava que “a crise da Educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Nesse sentido, gostaríamos que a professora nos contasse qual projeto de Educação poderia superar esta realidade nacional. Quais ações teriam que ser desenvolvidas e implementadas para promover uma educação que possibilite uma transformação social?

Mônica Severo: Certamente não é esse projeto que está posto. Não é essa Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não são esses itinerários formativos, não é a inserção de cursos de robótica e programação. Esse projeto que está posto é um projeto de esvaziamento dos conteúdos, para que os filhos dos trabalhadores não se adornem daquilo que foi construído pela humanidade, dos conhecimentos que foram construídos, registrados e sistematizados, é para que os filhos dos trabalhadores aprendam a ler receita e contar prego e que não sejam capazes de realizar a transformação do mundo. É um projeto em que nós não falamos mais de luta e classe social, nós vamos falar sobre habilidades socioemocionais e resiliência. Não é o racismo estrutural que te oprime, você que tem que ser mais resiliente. Sua família foi despejada? É porque seu pai não fez um bom planejamento. Ele não tinha um projeto de vida.

As pessoas estão sendo esmagadas por um sistema cruel que divide as pessoas. Nós estamos vivendo um momento de precarização dos direitos trabalhistas. O nosso povo inteiro está sofrendo ganhando um salário que mal compra a cesta básica. As pessoas em situação de rua não são somente as que estão fora do mercado de trabalho, mas também os trabalhadores. A última pesquisa que foi feita sobre a população de rua de São Paulo demonstrou que tem gente que trabalha como uber ou tem comércios e que dormem em barracas na praça porque o salário não é suficiente para pagar aluguel e transporte. Nós vamos transformar a realidade quando estudarmos sociologia, história, geografia, português, matemática e literatura. Só assim possibilitamos que os inúmeros talentos que compõem a nossa juventude possam frutificar e que as pessoas façam novos usos dessas ferramentas. As cientistas brasileiras conseguiram mapear o DNA do [vírus causador da] covid-19 muito mais rápido porque conseguiram enxergar possibilidades diferentes nos insumos disponíveis. É criatividade. Entretanto, o que temos agora é um projeto de esvaziamento das escolas para que não possamos construir nossos destinos e nem a nação que temos o potencial para ser. É para que nós permaneçamos como país capitalista periférico a vida inteira, oferecendo mão de obra barata e matéria-prima para comprar produtos manufaturados. É um projeto de subserviência, de entrega das riquezas nacionais, de destruição dos patrimônios material e imaterial.

Eu gosto muito da pedagogia histórico-crítica e temos grandes nomes brasileiros como o Dermeval Saviani, que é professor da UNICAMP, temos Paulo Freire, não à toa tão vilipendiado patrono da educação, então não precisamos inventar a roda. Ela já está inventada. Somos uma nação de grandes pedagogos e pensadores. Acumulamos conhecimento, com todos os percalços e dificuldades, construímos universidades públicas e temos centros públicos de pesquisa. Portanto, nós não precisamos desse projeto de educação que nos foi imposto por uma medida provisória aprovada a toque de caixa pelo governo Temer, com um senado e uma câmara federal anti-povo. Depois o desmonte foi completado pelos mesmos ideólogos do tucanistão, porque os ideólogos do MEC do governo Bolsonaro são todos da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Nós conhecemos esse projeto, lutamos contra ele no estado de São Paulo, mas eles ascenderam para o governo Bolsonaro. Ainda tem os ministros, que são outro nível de miliciano.

O pessoal daqui da Praça da República é ideólogo mesmo. Guiomar Namo de Mello falou que o filho do pescador não tem que aprender biologia, tem que aprender a pescar. Porque na cabeça dela, é inconcebível que o filho do pescador queira ser médico. Se ele quiser ser pescador, tudo bem. O problema é ele ser condenado a ser pescador porque o pai dele é. O pai é pescador, o filho pode ser médico, o neto pode ser engenheiro, o bisneto pode ser astronauta ou podem ser pescadores também, não tem nenhum problema. Desde que seja opção da pessoa, desde que a gente ofereça as ferramentas para que as pessoas brilhem. Uns vão brilhar no picadeiro, porque precisamos de artista de circo, outros vão brilhar na música. Tem mil maneiras de brilhar e ser médico é uma delas. Por que o filho do pescador não pode ser médico? Tem que ser médico se ele quiser, tem que ir para a universidade pública e para isso ele precisa estudar biologia. Como ele vai descobrir que adora biologia se ele não experimentar? Como ele vai descobrir que é o que ele quer fazer se não tem acesso ao conteúdo básico de biologia? A educação precisa oferecer para os jovens a possibilidade deles escolherem e eles só poderão escolher aquilo do cardápio que eles experimentarem. O que está acontecendo na educação é o esvaziamento do cardápio, para o estudante achar que é empresário dele mesmo, sem nenhum direito trabalhista, sem férias e sem aposentadoria. É isso que a escola pública e as humanidades combatem. Por isso que as humanidades são muito perseguidas, porque elas questionam esse sistema: “ele fornece liberdade ou escravidão? você só comer no dia que trabalha é liberdade ou escravidão? você pedalar o dia inteiro entregando comida no centro é liberdade ou escravidão? quantos anos o corpo humano aguenta esse nível de desgaste? o que vai ser do seu corpo depois sem aposentadoria, sem sistema de saúde adequado?”. Porque se ataca tudo, a educação, a saúde pública e os direitos trabalhistas. Não se corrói só uma esfera. Como nós, trabalhadores, vamos sobreviver a isso? 

Nas disciplinas de Humanidades, questionamos essa realidade pela qual estamos passando. Por exemplo, recentemente tenho conversado sobre democracia com os estudantes do ensino médio e nós estamos realizando debates de altíssimo nível. Eles são muito capazes. Às vezes nos deparamos com a falta de engajamento, mas não é por má vontade, é porque eles enfrentam muitos problemas. Às vezes é difícil para os professores também. Nós preparamos aulas, nos dedicamos, gastamos nosso tempo livre pesquisando e durante a aula não dá nada certo, ninguém se interessa, é frustrante e desestimulante. Não é muito simples, mas também existem várias razões pelas quais as pessoas estão desestimuladas, inclusive a situação em que nos encontramos. Nós estudamos, fazemos mestrado e doutorado para receber como salário um valor que mal compra a cesta básica. Os estudantes observam isso e refletem profundamente. As Ciências Humanas são perseguidas, porque são um instrumento de transformação das mentes, são um instrumento que não permite os estudantes repetirem fórmulas prontas. Os estudantes não repetem o que eu falo, eles debatem comigo, criticam as minhas teses e apresentam outras teses e outros autores. Às vezes, isso acontece mais nas escolas públicas do que nas escolas particulares, já que os compromissos das escolas particulares em muitos casos, abafa o livre pensar, como acontece em escolas com viés religioso, por exemplo, em que alguns temas podem ser truncados. O debate pode acontecer na escola laica de forma mais plural. A gente tem mais condição de acolher e talvez é por isso que a gente incomode tanto.

NOTAS DE RODAPÉ

  1. 1. A professora se refere a Jean-Paul Sartre, filósofo, escritor e crítico francês, conhecido, dentre outras coisas, como um dos representantes do existencialismo. Essa corrente filosófica defende que o ser humano não possui uma essência que o define de imediato, mas ele é definido de acordo com as condições de sua existência e as relações humanas e materiais que cria ao longo da vida. Portanto, embora se tenha condicionamentos da própria estrutura da sociedade, e aqui a professora ressalta a precarização da vida da classe trabalhadora, ela, assim como Sartre, defende que o ser humano também é responsável pelo modo em que vive, no sentido de sempre ser preciso buscar superar os problemas enfrentados, por exemplo, a desigualdade social imposta à 99% da população.
  2. 2. “Tucano” é uma expressão para designar os membros ou simpatizantes do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), partido de centro-direita, direita. Seu símbolo é um tucano nas cores azul e amarela, daí a criação da expressão. “Tucanistão” é uma expressão para se referir ao monopólio de governo de São Paulo pelo PSDB, que já está há mais de 27 anos no Governo do estado de São Paulo, desde que assumiu pela primeira vez em 1995.