Política nossa de cada dia

Legenda: O teatro proporciona diversas possibilidades de se desenvolver uma prática em Ensino de Ciências que seja engajada e politicamente comprometida com a equidade e com o respeito à diversidade. Créditos: Mauricio Keller Keller. Fonte: pixabay.

À convite da Revista BALBÚRDIA, o egresso do PIEC-USP Leonardo Moreira reflete sobre ações políticas que permeiam seu dia-a-dia docente. Texto da seção Espaço do Egresso que será publicado no número 5 da Revista BALBÚRDIA.

Leonardo Maciel Moreira é um admirador das transformações da matéria e das pessoas. Entre Ciências e Artes sonda caminhos em meio a inquietações. Ator, diretor de teatro, licenciado em Química (UFJF), mestre em Ensino de Ciências (Interunidades-USP) e doutor em Educação (FE-USP). Hoje está professor associado no Instituto Multidisciplinar de Química (UFRJ) e na Coordenação de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação do Centro Multidisciplinar UFRJ-Macaé. Também coordena o Projeto Ciênica, de divulgação científica mediada pelas artes, e o grupo de pesquisa Educação, Ciências e Artes. Mineirocapaulista, ama pão de queijo, café e... cachaça (tem que ser de Minas – de verdade)!

Projeto Ciênica
@projetocienica

21 de novembro de 2022 | 10:00

Na docência e na pesquisa se faz política, o tempo todo! Aqui é necessário explicitar que, em determinada dimensão, política tem sim a ver com partidos políticos. Mas não se limita a eles, há algo que caracteriza a política em sua essência e que é maior e mais marcante do que esse entendimento inicial limitado. A conceituação do termo é objeto de amplo debate na Ciência Política. Entretanto, para fins de auxiliar no entendimento das ideias que apresento, anuncio que tomo política1 enquanto a arte de influenciar, manipular e controlar grupos com a intenção de avançar os propósitos de alguns contra a oposição de outros. Tudo isso, por meio de um movimento em que estão imbricados pessoas, instituições, recursos e processos, e mediado por relações de autoridade e de poder. Logo se percebe que política está intimamente relacionada com a adoção de uma percepção de mundo, o estabelecimento de uma agenda e de estratégias para intervir nesse mundo, bem como a execução de ações para se transformar a realidade.

Na prática docente, a atuação política é comumente associada à filiação e à participação em sindicatos. Conquanto reconheça a importância dos sindicatos enquanto estratégia de organização para o compartilhamento de visões, para o debate e para as ações, também como instância para formação docente, acredito que é na prática docente diária que a dimensão política realmente se manifesta. Ela se materializa, por exemplo, na escolha entre uma transposição didática que resulta em um currículo asséptico centrado tão somente nos conteúdos conceituais ou na que reconhece os conceitos científicos como construtos humanos e sociais, contemplando os aspectos históricos, culturais, éticos, econômicos e ambientais, dentre outros. Ou mesmo na mediação do processo de aprendizagem, sob a perspectiva de que o docente está na escola para ensinar o conteúdo – “a educação vem de casa” – ou sob o viés de que os docentes são responsáveis também por uma educação que amplie a visão de mundo dos discentes.

Ao contrário do que se defendeu durante muitas décadas, hoje há compreensão de que a pesquisa também é atravessada pela política, em especial no contexto da Universidade Pública. Não somente pela dimensão de compromisso com o desenvolvimento social dessas instituições, mas também porque, em geral, elas preveem em sua organização a existência de colegiados e de representações, constituindo espaços de negociação. E se não somos formalmente preparados para atuar nesses espaços durante a formação na graduação e na pós-graduação, o cenário não é diferente depois que se ingressa como profissional em uma instituição de ensino superior.

Em minha vivência, inicialmente essa formação se deu sem que eu tivesse consciência dela, em grupos de teatro que participei desde a adolescência. Teatro é uma arte coletiva e no teatro de grupo as decisões são pensadas e tomadas em colaboração e cooperação. Isso exige um esforço constante de diálogo, de empatia e de negociação. Foi na experiência de estar representante discente no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências que participei das primeiras práticas no âmbito da política no espaço universitário. Depois de meu ingresso como docente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), experimentei essa prática enquanto coordenador de curso, de extensão universitária e de pesquisa, enquanto representante do Centro Multidisciplinar de Química e da UFRJ em diferentes instâncias, e enquanto pesquisador e docente. Uma jornada marcada pelo esforço em transformar a realidade, na dialogicidade entre atender e induzir políticas públicas em Educação em Ciências. No trajeto, encontrei diretrizes que me são fundamentais nas obras de Paulo Freire e de Augusto Boal. Seguindo o caminho apontado pelo patrono da educação no Brasil, escolho estar ao lado dos esfarrapados do mundo2 e estimular um Ensino de Ciências que resulte no desenvolvimento de consciência crítica, visando a ampliação da percepção de mundo. Na esteia do condecorado pela Organização das Nações Unidas como embaixador mundial do teatro – também químico industrial – adoto a abordagem estética do Teatro do Oprimido3 como potência para sensibilização, reflexão e ação. Em um contexto de alfabetização científica4 de estudantes da educação básica e superior, espect-atores ou participantes do Projeto Ciênica.

O Ciênica é um projeto de longa duração, que visa a construção, apresentação e investigação de peças de teatro de temática científica. Nas montagens, temos mobilizado diferentes técnicas de teatro. Porém, a partir do ano de 2015, adotamos o Teatro do Oprimido como fio condutor de nossa dramaturgia, encenação e investigação. Nossas peças vêm sendo desenvolvidas no formato de Teatro Fórum, o qual prevê um momento de intervenção da plateia: o espetáculo é apresentado de maneira convencional e a situação de opressão é exposta; ao final, abre-se a oportunidade de os espect-atores interferirem, cenicamente, no espetáculo, de modo a possivelmente modificar a história, apresentando suas propostas de solução. Os espetáculos são construídos a partir de casos das vidas dos graduandos e pós-graduandos, que são atravessados por questões do âmbito da ciência e da tecnologia. Esses espetáculos são apresentados para estudantes do ensino médio.

A metodologia adotada nesse projeto exemplifica uma de diversas possibilidades de se desenvolver uma prática em Ensino de Ciências que seja engajada e politicamente comprometida com a equidade e com o respeito à diversidade, seja de gênero, de etnia, de orientação sexual, de religião ou outra. Acredito ser urgente e imprescindível o posicionamento do campo do Ensino de Ciências no âmbito da política. Infelizmente, foi necessário que tivéssemos um governo que continuamente cortasse recursos das universidades públicas para pesquisadores reconhecerem o quanto nossa prática é atravessada pela política. No último 30 de outubro, foi notório o número de pesquisadores e pessoas ligadas às ciências que se candidataram, alguns deles ganhando o pleito. Já não há mais tempo para neutralidade.

Notas de rodapé

1 SCHMITTER, Phillipe C. Reflexões sobre o Conceito de Política. Brasília: Ed. UnB, 1974

2 FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. Um reencontro com a pedagogia do oprimido, 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1999.

3 BOAL, Augusto. A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

4 CHASSOT, Attico Inacio. Alfabetização científica:questões e desafios para a educação. Ijuí: Editora Unijuí, 2000.