Dramaturgias do Tempo

E Lá Fora o Silêncio

barbante vermelho do Mural da Memória
peça em dois atos

LABTD
com a colaboração de Amelinha Telles, Ana Maria Ramos, Cida Costa, Crimeia Almeida, Daniel Veiga, Guiomar Lopes, Maria Claudia Badan e Leo Moreira Sá

“É noite, o silêncio é minha prece
e eu, poeta que se entristece
e choro sem qualquer rumor
sofro baixo para esconder
este amor que deixo escorrer
nesta face de sonhador”
Anderson Herzer

“Em meio ao fluxo e refluxo da maré do meu destino
Eu lutei bravamente, no silêncio perpétuo (profundo)”
Preta Ferreira

Personagens:

Mulher Velha
Assistente
Crístofer
Silaine
Iucatã
Alice

Se a encenação optar por representar Crístofer em cena, seja um ator de corpo presente ou apenas a voz gravada, ele deve ser atuado por um homem trans ou transmasculine pelo menos até o ano de 2047.

Os sons indicados para entrada das guerrilheiras são sugestões para a dramaturgia sonora, que deve ter grande importância nessa peça.

1˚ ATO

Em cena, estrutura montada para apresentação de pitchings numa rodada de negócios de projetos audiovisuais.

Voz: Agora chamamos ao palco o projeto Cartas Prisioneiras (acende um painel com a contagem do tempo: 11min.)

Mulher Velha, já em cena, mas ainda sem entrar no palco de apresentação do pitching, briga com seu filho.

Mulher Velha: Falei pra você já deixar ligado na energia.

Assistente: Ninguém me mostrou onde tem tomada.

Mulher Velha: O tempo tá correndo.

Assistente sai em busca de uma tomada.

Mulher Velha (entrando no palco do pitching): Ô beleza. Boa noite a todos, todas e todes. Pra mim, é um grande e enorme prazer estar com vocês. O que trago comigo, hoje, é algo raro. Um marco. Na história do meu saudoso irmão, e não só na dele. De toda a nossa pátria amada. De todo o nosso Brasil. As cartas que tenho em mãos foram guardadas secretamente por mim mesma durante décadas. Enfim é chegada a hora de revelá-las ao grande público numa série que vai arrasar os corações com ação, suspense, paixão, traições, e, acima de tudo, fé. Ela mesma. (o Assistente já apareceu com o retroprojetor na boca do palco) Que entre o Assistente.

Entra o Assistente com o retroprojetor, vai posicionando a projeção na parede

Mulher Velha: Confesso que não sou muito boa de memória, mas sei que não sou só eu. Por isso a importância destes documentos. O tempo os transformou num tesouro. Caros players, o conteúdo dessas cartas foi escrito pelo meu irmão, Crístofer, de dentro do presídio. Ele vai nos transportar direto pros acontecimentos mais “fantásticos”, que, na época, até saía nas notícias, mas não dava pra entender direito. Vos convido agora a navegar na maré das lembranças de nosso país. Se aceitardes, então poderemos finalmente começar. Só não pode se arrepender depois! (Assistente dá risada) Por favor, Assistente! 

Assistente projeta a primeira carta. As letras grifadas são para os leitores conseguirem vislumbrar a folha do código, que será colocada sobre o texto do Coração Responde logo em seguida, revelando a verdadeira mensagem de Crístofer para sua irmã. Essas letras não precisam estar grifadas na encenação.

Assistente (lê a carta):
19 de janeiro de 1970,
Presídio Hermes da Fonseca
Coração Responde

Querida Mariazinha Idarmina,
Desejo que
sua amiga não esconda mais tantos segredos de você. Seja o que for, não é para o seu bem. faz alguns anos que vocês se desentendem… Quando ela diz “é por sua causa que não nos falamos”, está sendo cínica e injusta, pois foi ela quem roubou seu marido. Torço pra que ele não tenha mudado de endereço, e você consiga contatá-lo de novo. Um grande amor não se acaba assim. Você tem direito de receber em mãos essa carta de divórcio que ele enviou.

Não quero mais saber dessa cara de notícias ruins. Ninguém mais vai criar tropeços em restos de podres maçãs pelo caminho. Você é a andarilha. Você que construiu seu casamento quando todos diziam ser impossível. Suas amigas são invejosas, e as falácias da sua mãe vão te destruir. Sobre o seu pai, não quero nem saber. Mas o melhor é não se deixar levar, foi bom você escrever para o Coração Responde. Para falar com a alma verdadeira, deixe as vaidades de lado. Imagine o mais. O mais alto qui você consegue triscar. Perto da noite e da lua. Como sempre foi. Você quase se perdeu de si.

No último ano, você andou se enxergando em mulheres diferentes. Surpresas nada agradáveis, por outros motivos, nada cristãos, mas compreensíveis. Você se desorganizou quando seu marido se mudou para a casa da sua irmã e seus olhos viraram bolsões de lágrimas, clara Mariazinha, o que é que a vida te destina? Cadê sua casca, distinta armadura?

A história das mulheres é inacreditável. Mas tentam criar o mentirosu mito do feminismo. Cada mulher é o seu próprio universo. Mas suas amigas… com elas, não precisa de inimigos. Você não enxerga. Melissa, Rebeca, Sonia: pondere. Enganadora boras, mais venenosas que as cartas de seu marido. Não fique contando com elas. Afaste-se. Seja sua prioridade. Uma nova mulher.

Mulher Velha: Como fazer um texto caber dentro de outro?

Anos sem falar com meu irmão. Desde adolescente. Meu pai que mandou prender. Na época eu não entendia… Quando chegou carta eu caí pra trás. Achei que ele tinha pirado. Nem marido eu tinha. Mal tenho coração, até hoje (repara no painel marcando o tempo).

Vamos em frente, que o tempo é curto e a conversa, comprida. Outro dia na caixa de correio tinha essa folha aqui (Assistente exibe a folha do código) Com esses quadradinhos recortados. Pra todo texto tem uma cifra.

Assistente coloca a folha com os quadradinhos recortados sobre o primeiro texto do Coração Responde, e só juntando as letras que ainda ficam à mostra nos quadrados recortados é que se consegue enfim ler a mensagem de Crístofer.

Assistente (lê a carta):

Minha irmã,
Quero saber notícias, peço responda quando possível. Com notícias suas e da mãe. Sobre o pai não quero nem saber. Mas não escrevo pra falar de mim. Aqui, continua como sempre foi. Quase.

No último ano andou xegando mulheres diferentes. Presas por outros crimes. Organizações clandestinas. Ditadura.

A história das mulheres é inacreditável. Me comunico com elas. Você me responde, envio mais cartas contando.

Mulher Velha: Vocês acham que eu fiz o que? Nananananão, se nem ditadura eu sabia que tinha direito, eu lá ia ter medo? Respondi na hora. Nossa mãe tinha morrido. Tudo no código: Coração Responde.

Assistente: Todo mês, começou a chegar carta. Alguns dias depois, aparecia na caixa de correio, envelope sem selo, uma folha dessas com a senha.

Mulher Velha: Acompanhei que nem novela em telegrama. Tudo cortado. Entendia. Preenchia. Aquilo que ninguém dizia. Você, que é mais novo, te ensinaram na escola que teve Ditadura?

Assistente: Não

Mulher Velha: Que horror. Nunca mais.
O caso, amades players, é que estou de mudança. e recentemente encontrei um pacote com todas as cartas. Cheia de poeira, e de inspiração. Com elas, as nossas personagens, e suas histórias em síncopes. Através do silêncio.
Apresento agora a primeira delas. Já separamos os fragmentos. Assistente!

Assistente (projeta a segunda carta. Lê):

24 de junho de 1970,
Presídio Hermes da Fonseca
Coração Responde

Irina das Ros,

O Coração Responde está aqui para aplacar seu desencanto. Quero te contar: a perda de um ente querido abala nossas estruturas, e viver o luto é parte fundamental da recuperação. Seu irmão partiu para um lugar melhor do que o mundo onde vivemos, não tenha dúvidas. Foi inesperado, a primeira vez que sentiste a dor da morte. Conheci pessoas que guerrearam milhares de dias consigo mesmas, na reparação da última perda. Debalde navegarás ao léu, correrá o tempo e receberás a notícia do seu porto. Aporte. Entre. A paz da companhia silenciosa traz angústia, mas também traz surpresas.

Olha só: nunca temos como saber qual a nossa hora.

Mulher Velha: Não reparem nessas partes cortadas, era assim que elas chegavam. Tenho certeza que vocês vão amar essas cartinhas, se Deus quiser. Abençoa meu irmãozinho que teve tanto trabalho de recortar esses papéis lá dentro da cadeia

Assistente: Salve!

Mulher Velha: Abençoa também os meus players amadinhes que vieram aqui hoje pra ouvir o que a gente tem a dizer.

Assistente: Ô Glória!

Mulher Velha: Chegou o dia!

Assistente (Assistente põe a folha de código por cima da carta e lê em voz alta. Ouvem-se latidos. Surge Silaine em cena. Durante sua fala, Assistente vai projetando diversas cartas, uma em sequência da outra, e, sobre cada uma delas, sobrepõe as folhas de códigos. Enquanto isso, lê em voz baixa, quase como numa reza):

Irmã

Quero te contar. Silaine foi a primeira que conheci. Guerrilheira urbana. Corre notícia entre presas. Olha só

Silaine:
Meu nome é Silaine
Voltando da casa dela
Dona Hercília
Ouvi o latido
Ovos
Contatos na vizinhança
Ainda na vida legal
Estudava na universidade
Trabalhava no fórum
O ovo caiu no chão
Estourou
Caí
Primeira prisão
Polícia
Invasão
Eu lá com um companheiro
Documentos muitos livros
Caímos

Cometi um erro
Fui pra casa dos pais
Perto da estação de trem
Meu pai era funcionário
Moramos perto de estações
Adolescente moramos no pé da Serra do Mar
Comprou uma arma
Me ensinou a atirar
Diziam mulher e arma nada a ver
Até na prisão
Gorilas duvidavam da gente
Meu pai, não

Eu caí
Não era pra ir pra casa dos pais jamais
Não sei o que eu tinha
Avisei
Diriam terrorista
Coisas horríveis
Pra minha mãe eu era psicótica
Tinham até me mandado pro psiquiatra
Mesmo assim me deram dinheiro
Polícia de tocaia
Me seguiu
Prisão
Primeira vez poucas semanas
Não entregamos ninguém
Meu cachorro ficou com a polícia
Safados

Passa um trem em cena.

Mulher Velha: É de arrepiar os cabelos até daquele lugar

Assistente: É fantástico!

Mulher Velha: A verdade oculta

Assistente: A vida clandestina

Mulher Velha: É preciso abandonar essa aura de mistério e infâmia criada sobre as personagens que meu irmão conheceu na cadeia

Assistente: Porque se trata de pessoas reais

Mulher Velha: Mas com histórias que parecem fantasia

O painel que cronometra o tempo chega a 00:00.

Assistente: Não se deixem iludir pelo tempo, meus caros players…

Mulher Velha: …Cartas Prisioneiras tanto pode ser documentário…

Assistente: …não é uma linha reta…

Mulher Velha: …mas também uma ilusão jamais igualada…

Assistente: …um enredo ímpar…

Mulher Velha: …um lirismo único…

Assistente: …Crístofer também escrevia poemas!

Mulher Velha: Segura os spoilers!

Assistente: Por isso, amadinhes, solicitamos à organização da rodada que nos conceda novamente o tempo

Mulher Velha: Sigam sua intuição…

Assistente: …confiem no seu instinto…

Mulher Velha: …que fareja o ouro quando ele se anuncia…

Assistente: …o ouro do outro jamais falado…

Mulher Velha: …se nos for dada a chancela de nossos favoritíssimos organizadores…

Mulher Velha se volta para o painel que ainda marca 00:00. Momentos de apreensão, aguardando a reinicialização da contagem do tempo.

Mulher Velha: …garantimos o sucesso… (olha para Assistente)

Assistente: …ou o dinheiro de volta.

O painel volta a marcar 11:00.

Mulher Velha: Tem como já trazer as duas de uma vez?

Assistente retorna ao retroprojetor e projeta mais fragmentos de cartas.

Assistente: Que ousadia…

Mulher Velha: Time is money, honey.

Assistente: Tá na mão.

Mulher Velha (à parte, para o Assistente): Vai, chama elas.

Assistente (à parte, para Mulher Velha): Não tem jeito. Tem que ler antes.

Mulher Velha: Que venha o Coração Responde!

Assistente projeta a carta de Crístofer e lê em voz alta.

Assistente:

15 de dezembro de 1970
Presídio Hermes da Fonseca
Coração Responde

Caríssima Julirama,

Quando não souberes como agir, lembre que sua angústia não está aí com você à toa. Ela não veio a passeio. Não te deixará impunemente, de repente, sem receber nada em troca. Você estava sem rumo, abandonada, sem o brilho do sol interno e nenhuma luminária. Houve erros exatamente bem onde se alimenta a traição. Sobrou até pra sua avó, Carmim. Não abandone seu propósito, mesmo com o coração furadinho continue responsável por sua trilha. 

Atitudes repugnantes, como as do seu avô, são vis. Nem você nem sua avó precisam pagar pelo que não fizeram. Posso garantir que não há biologia nenhuma que justifique a vergonha de manter outra família pelo menos por mais de trinta anos. Por acaso ele vai reparar vocês, enquanto se explica para a outra esposa, os outros filhos e netos?

Nessa vida corremos o risco de confiar em alguém que só se aproveita. Continue amando o correto e subscrevendo corpo e alma aos edificantes clérigos de sua igreja. O Coração Responde te dá sua bênção. Passam os anos, aprendemos a acolher e reconhecer quem atende o abraço e não quem derrama seu revés na história de outros.

Menina ainda és, podes sossegar o espírito no colo de sua mãe. Aliás, tens de agradá-la, ainda que ela não sorria. O silêncio cancela aos nossos melhores lados. Escave o rio das mágoas e converse, caso contrário ela pode ceder ao buraco de ímpia tristeza, ao estrago ruidoso de penas entorpecidas.  

Com certeza, ela projetará indignações inúteis em você, seja ontem, até hoje e alguns amanhãs. Amaciem-se, sejam razoáveis e iniciem vida nova.

Mulher Velha: Nessa altura desconfiei pela primeira vez. Queria ver meu irmão na minha frente. Mas eu não conhecia as regras do mundo dele, muito menos o delas

Assistente: Já pode? (Mulher Velha diz que sim, e o Assistente põe a folha do código sobre a carta, lendo-a em voz alta):

Irmã,
Soube que você veio. Não pude te receber. Estava na solitária. Houve rebelião, sobrou pra mim. Não fui responsável. Repugnante, pagar pelo que não fiz. Não venha pelo menos por enquanto. Corremos riscos. Continue me escrevendo código Coração Responde. Nos conhecemos através na história de outros. Na solitária, silêncio cela ao lado, cavei e conversei por buraco de imteruptor com Iucatã. Amazônia.

Assistente começa a projetar diferentes trechos de diversas cartas, sempre lendo em voz baixa e rapidamente, como numa oração. Ouve-se barulho de rio e o vento balançando uma árvore.

Iucatã:
Meu nome é Iucatã
Fiz parte
Guerrilha rural
Nos diziam
“Vocês vão pro interior”
Quando vi
Perto da floresta
Amazônica
Treinamento sobreviver lá
Nada mistificado
Viver que nem todo mundo vivia
Tinha roça?
A gente roçava
Caçar?
A gente caçava
Fingia que o bicho era meu inimigo
Consegui chegar perto do bicho sem ele perceber?
O inimigo também não ia perceber

Na solitária era proibido falar. Sussurrávamos à noite, cavando o buraco do interruptor. Tinha uma escova de dentes na minha cela. Amarrei numa tira de pano e consegui passar pra cela dela. Não tinha nada lá. Nem roupa direito.

Iucatã:
Primeira mulher ir pra lá
Disseram vai depender de você
A ida de outras
Muito mosquito
Queria usar calça
Mulher só saia
Inventei
“Sou de Mato Grosso
Lá mulher usa calça”
Também atuo

Casas longe uma da outra
Dormia na casa dos outros
No meio do caminho
Achavam que eu era homem
Sempre que podia
Eu fingia

Confundiam ela com homem. Achou que era igual a mim. Não interpreto. Sou. Homem. Desde criança. Lembra terreno baldio a gente brincava no morrão. Corremos da cobra.

Ouvem-se tiros de armas.

Iucatã:
Andava na roda
De homens e de mulheres
Não muito doméstica
Não deixavam
Mulher usar arma
“Mulher é mais corajosa”
Eu disse
“Anda até sem arma
Vocês que são covardes e tem medo”
Me deram a arma

Não sei quantas noites conversamos. Ouvia a voz dela pelo buraco. A voz das outras na cabeça.

Iucatã:
Treinava emboscada
Com os companheiros que vinham em casa
O problema era quando
Os camponeses que caíam
Padres ajudavam
E fomos nos entrosando

Vértebra de boi. Roía o osso. Solidão, loucura? Minha história parece lenda a delas também. Iam e vinham. Já não sei onde nem quando vi cada uma.

Ouve-se o som de uma manifestação. Surge Alice.

Alice:
Meu nome é Alice
Comecei na Igreja Metodista
Movimento estudantil
Trabalho de massas
O povo na rua
Muda o mundo
Tinha quatro na rua a polícia já vinha
Pequenos grupos na praça
Num instante
Faixas multidão
Panfletos
Pode vir cavalaria
Nosso grito será maior
Contra cobrança de mensalidade!
Fora Rockfeller!
Por segurança eu não sabia
Onde os grupos armados
Seguia regras na organização
Não é bom saber do outro
Nem sotaque
Não perguntar
De onde o outro vem
Mas pra onde nós vamos

Iucatã:
Quando voltei pra cidade
Grávida trazendo notícias
O Exército cercava a região
Impossível passar
Um rio cheio de patrulhas
Lanchas
Atravessei o rio a nado
À noite
Eles chegaram bem perto
Vi os faróis
Mas consegui
Atravessei
Chegando aqui
Quedas quedas quedas

Alice:
Caiu uma companheira
Que sabia meu nome
Clandestinidade adentrei
“Meu nome é Sonia”
Fiquei na casa da Tixe
Jornalista com vida legal
Respondia cartas pra revista onde ela trabalhava
Em nome dela
Seção Coração Responde
Sofrimento humano
Desilusões do amor
Hipocrisia das famílias
Escondida no quarto do fundo
Luz apagada
Só com lamparina
Tarde e noite escrevia
O Coração Responde

Iucatã:
Você chegou a ser presa?

Alice:
Tive que ir
Pra casa de tios
Numa cidade próxima
Parente distante
Ajudei enrolar docinhos pra festa da prima
Estranhavam
Mas ninguém denunciou

Só depois
Num ponto
Entrei já senti o cheiro do cerco
Eu não sabia perceber se estava sendo seguida
Alguém me entregou
Caí

Iucatã:
Me prenderam na casa
Da minha irmã
Eu e sobrinhos
“Sou babá”
Eu disse
Convenci um mês

Ouvem-se cânticos cristãos sobrepostos ao som de tiros de metralhadoras.

Alice:
Na minha opinião
Começou a dar errado
Com tanto militarismo
Quando recrutavam
No movimento de massas
Gente despreparada
Cada um só pode contribuir
Na medida de sua capacidade

Iucatã:
Não sou tão radical
Mas guerra tem princípios
Ou você mata ou você morre

Alice:
Fora que tinha
Uma aristocracia
Intelectuais
E o machismo

Iucatã:
Temos visões diferentes
Mas o Patriarcado
De fato
Era bastante
Complicado

Alice:
Era tanto
Que a gente usava a favor
“Só entrei na organização
Porque Samuel me seduziu
Não sabia o que fazia
Juiz pense bem
Por acaso
Moça que nem eu
Respeito
Recato
Tenho cara
De comunista”?

Iucatã:
Não tem julgamento
No meio da floresta
Contestam sua força
Sua calça
Sua menstruação
Machismo nesse caso
Jamais a favor
Pra sobreviver
É só mais um
Empecilho

Alice:
Cada uma
Carrega seu fardo

Iucatã:
Quem decide o meu
O seu fardo?

Alice:
Nem eu nem você

Iucatã:
Sequestrada
Ninguém sabia de mim
Nem comida tinha
Vértebra de boi
Roía o osso
À noite eu cavava
No buraco do interruptor
Sussurrava com Crístofer

Alice:
Na ala das presas políticas
Todas queriam
Saber de ti
Crístofer

Em todos os pavilhões do presídio feminino, todas desejam Crístofer. Mas sou casado. Sou fiel.

Ouvem-se sussurros que dominam a cena e levam as duas embora.

Mulher Velha: Desconfiei, passou. Meu irmão era danado. Só ele ia saber que a gente correu da cobra no morrão. Chegou a nos picar. De criança, ele apanhava. Uma gritaria. Eu era mais velha, só chorava, eu me assustava. Quando meu irmão desapareceu, ninguém me explicou. Nunca mais vi nem ouvi falar… (silêncio)

… até chegar a primeira carta. Depois de alguns meses correspondendo com ele, reparei num carro de vidro escuro que ficava sempre estacionado em algum canto da minha rua com alguém dentro. Pouco tempo depois as cartas pararam de chegar. Assistente, por favor, traga agora a carta misteriosa.

Assistente: Ainda não é a hora

Mulher Velha: Mudei a ordem

Assistente (procurando a carta misteriosa): Ainda é pra fazer?

Mulher Velha: Como não?

Assistente (pega um boné de carteiro e, enquanto procura a carta, se dirige à frente do palco): Neste momento, caríssimes players, vocês vão assistir a uma cena de rua. Primeiro, um homem cruza com a jovem irmã de Crístofer, enquanto ela vai pra feira. Nenhuma palavra, nada além de um vago olhar. Uma volta no quarteirão, o homem veste boné e blusa de carteiro e de novo cruza com ela, voltando da feira com o carrinho carregado de legumes e verduras a duas quadras de distância de sua casa, conforme as medidas de segurança relatadas no levantamento da área. Com licença, senhora.

Mulher Velha: Pois não.

Assistente: Sou o carteiro.

Mulher Velha: Não me lembro de você.

Assistente: Comecei faz pouco tempo. Já conversamos uma vez.

Mulher Velha: Pode me ajudar a carregar?

Assistente: Hoje tô atrasado. Aproveitei que te vi, vim te entregar sua carta. Parece que vem do presídio.

Mulher Velha: Não é da sua conta de onde veio.

Assistente: Sigo meu caminho.

Mulher Velha: Pode deixar na caixa de correio?

Assistente: Não posso ir até lá no momento.

Mulher Velha: Tem jeito? (recebe a carta)

Assistente: Vai pela sombra.

Mulher Velha: Bom dia pro senhor também.

Assistente: Ah, senhora

Mulher Velha: Pois não?

Assistente: Pediram pra te entregar isso (entrega uma folha de senha com o mesmo código que Crístofer usava) Esconde pra ninguém ver.

Assistente tira o boné de carteiro e volta correndo pro retroprojetor.

Mulher Velha: Essa carta, amadinhes, um mistério. Ela mudou tudo. (Assistente projeta a transparência com o envelope) Logo reparei que o selo era parecido, mas não igual o das cartas que chegaram antes. O conteúdo também era diferente. Assistente, pode projetar a carta misteriosa!

Quando Assistente vai projetar a carta, o tempo chega a 00:00 no painel e soa um alarme que o assusta, levando-o ao desespero. Ele acaba desligando o retroprojetor da tomada e fica tudo escuro.

Mulher Velha: Jesus, meus amadinhes, jamais sabereis. Não ia dar pra ficar só nessa temporada mesmo. É preciso agir friamente quando surgem imprevistos. O suspense… as paixões, nem chegamos. Traição. Infelizmente. Assistente! Sem desespero, menino. Me desculpem. Te aquieta, menino! Senão amanhã fica sem almoço, miséria de filho.

O alarme para. Silêncio. O público percebe que o Assistente é filho da Mulher Velha e isso causa um constrangimento.

Assistente (sussurrando, à parte): Vem logo.

Mulher Velha (começa a recolher as cartas espalhadas pelo palco): Agora que ia começar. Já sentia a adrenalina.

Assistente: A gente pode estar correndo perigo.

Mulher Velha: Fica a dúvida. E o desejo.

Assistente recolhe o retroprojetor e as transparências e vai saindo de cena, junto com Mulher Velha. Apenas uma carta fica em cena: a tal carta misteriosa. Apenas a carta em cena durante algum tempo.

Silêncio.

2˚ ATO

Começa a se ouvir um som contínuo, que fica de fundo enquanto a Mulher Velha entra em cena novamente, tentando se aproveitar da escuridão para não ser vista. Não olha diretamente nos olhos do público: quem sabe, sem vê-los, também não será vista. Vai arrodeando a carta misteriosa. Antes de tentar pegá-la, ainda acreditando-se invisível, arrisca um olhar para o público e se sente flagrada em comportamento suspeito. Assusta-se.

Mulher Velha: Vem, meu filho!

O som de fundo se torna uma melodia, que sai de um instrumento tocado pelo Assistente. Ele entra em cena tocando e cantando uma música composta a partir de um poema de Crístofer. Mulher Velha o acompanha.

É tarde, o silêncio é minha prece
O amor desenganado na cidade desce
E nas ruas por onde caminho
Já enxergo rastilho de combustível.

É tarde, ouço passos invisíveis
Pego meu medo trato com carinho
E na véspera da adrenalina
Miro minha face clandestina.

É noite, o silêncio me endurece
Num suplício o meu verso se enfurece
A dor me paralisa
Nenhuma fibra vibra
E o peito se esvai em prantos terríveis.

É noite, já queimaram os fusíveis
Calúnias e grades me deixam aflito
Mas não vou deixar a culpa
Depois me estremecer com sua multa.

É de madrugada, o ar se fez medo
Não leva mais o canto em segredo
Mas já destrancado e agora andarilho
Recolho a tempo memórias falíveis.

É de madrugada reino dos indizíveis
Cantando baixinho me vejo em meu filho
Recuso a mão do silêncio que arde em mim
Por quem dá a voz e vida até o fim.
Crístofer

Assistente: Liberou o tempo!

Mulher Velha: O poema!

Assistente (trazendo o retroprojetor e projetando o poema de Crístofer): Quero ver quem é que tira a gente daqui

Mulher Velha: A música que vocês acabam de ouvir é um poema do meu irmão.

Assistente: Salve, titio! (projeta o poema)

Mulher Velha: Veio dentro do mesmo envelope que esta carta (aponta a carta misteriosa)

Assistente: A carta misteriosa.

Mulher Velha: E junto dos dois, um envelope menor, dentro do envelope maior.

Assistente (projeta um desenho de envelope): Minha mãe desenhou de memória.

Mulher Velha: E por que não temos mais este envelope pra mostrar pros amadissimes players?

Assistente: O que terá acontecido com o envelope?

Mulher Velha: Primeiro: o poema. Meu irmão pediu para guardar e publicar um dia. Mas muito melhor do que uma publicação, que fica encostada à espera de almas errantes, é o streaming…

Assistente: O mainstream das ideias no império dos algoritmos…

Mulher Velha: A série: Cartas Prisioneiras. Que já ganhou mentes e corações neste pitching.

Assistente: A verdade, nada além da verdade, é o que trazemos pra vocês.

Mulher Velha: Segundo: o envelopinho. Vinha com um alerta: não deve ser aberto em hipótese alguma.

Assistente: E terceiro, enfim, o Coração Responde (projeta a carta e vai lendo muito rápido)

23 de janeiro, 1971
Presídio Marechal Fonseca
Coração Responde

Cara Mirna Adamastor,

Com um namorado assim, melhor se guardar da inveja e do mal-olhado. É raro quando acontece de se encontrar o amor. A ninguém interessa saber sobre suas carícias fartas. Não seja arisca nem orgulhosa demais com os homens, pois eles não sabem da vida. Em breve o reconhecerás pelo assovio, e o ar que soprará em tua nuca será menos cândido, envolvente e zeloso, apesar de teus encantos não serem menores. Casem logo, do contrário ficará a remexer numa indecisão abstinente. O destino se encarregará de achincalhar idealizações e firmará o laço conforme o referendado pela fé regida no apreço de Deus. 

As vilãs se aproximarão para agonizala e extinguir seu caro amor, mas não serás usurpada. Três vezes te tentarão, e três vezes, apesar disso, chorando, querendo e resistindo: dissolverás o nó de tua integridade e dirás: “Sou íntegra e respeito as emendas do eterno em vez das urgências”.

Este homem foi enviado para estancar tuas efemeridades e te acolher perene em abrigo. Cuide e confie nele. Oponha-se e se afaste delas.

Mulher Velha: A folha da senha ele me entregou em mãos. Filho, por favor

Assistente (cobre a carta com a folha da senha e lê em voz alta):

Irmã,
Nao conte a ninguém sobre as cartas. Risco de vida. Enviar envelope menor sem remetente destino Chile no endereço Vila Gonzales, Casa três, Apoquindo, Sántiago. Emergência. Vidas em perigo. Confio nelas.

Ouve-se um chiado de rádio sintonizando e Silaine surge em cena:

Silaine:
Emergência
Vidas em perigo
Humilhamos o inimigo
Propaganda armada
Nas expropriações
De grandes patrões
E das forças armadas
Covis
Dinheiro
Metralhadoras
Fuzis
Combate de igual pra igual
Financiar a revolução afinal
Pelo povo
Para o povo
Me chamavam de loira dos assaltos
Nojentos
Por causa da peruca
Na Rádio Nacional
Dissemos a que viemos
Ocupamos a antena
(ouve-se a vinheta da Rádio Libertadora)
Emitimos novo sinal

Rádio Libertadora (entra a voz de Uiara Xavier): Atenção! Está no ar a Rádio Libertadora!

Silaine: É ela!

Rádio Libertadora: Atenção! Está no ar a Rádio Libertadora!

Silaine: Uiara Xavier!

Uiara Xavier: De qualquer parte do Brasil, para os patriotas de toda a parte. Rádio clandestina da Revolução. O dever de todo revolucionário é fazer a Revolução! Abaixo a ditadura militar! Atenção! As gravações em fita das transmissões da Rádio Libertadora, podem ser ligadas aos sistemas de alto-falantes dos bairros e subúrbios e irradiadas para o povo, mesmo que para isto tenhamos que empregar a mão armada.

Voz da Liderança: Ao Povo brasileiro! Da cidade da guerra revolucionária, nela estamos empenhados com todas as nossas forças no Brasil. Nossos objetivos são formar um governo revolucionário do povo; expropriar os latifundiários; transformar e melhorar as condições de vida dos operários, dos camponeses e das classes médias; acabar com a censura; instituir a liberdade de imprensa, de crítica e de organização; retirar o Brasil da condição de satélite da política externa dos Estados Unidos e colocá-lo no plano mundial como uma nação independente.

Uiara Xavier: Organizações ultradireitistas assaltam, atiram bombas, matam, sequestram. Contudo, ninguém tem conhecimento de que o governo esteja perseguindo sequer um dos assaltantes ou terroristas do Comando de Caça aos Comunistas.

Voz da Liderança: Para combater a ditadura não recebemos do estrangeiro nem armas nem recursos financeiros. As armas são obtidas no Brasil, são as armas capturadas nos quartéis e tomadas da polícia. Quanto ao dinheiro, é público e notório que os grupos revolucionários armados assaltam os bancos do país e expropriam os que enriqueceram e exploraram o povo brasileiro.
A guerra revolucionária que estamos fazendo é prolongada e exige a participação de todos, é uma luta feroz contra o imperialismo norte-americano. O que o povo deve fazer é esconder os guerrilheiros cassados pela polícia, não denunciar nenhum revolucionário; se alguém for ferido pela polícia ajudar a pessoa. O povo pode e deve ajudar a combater a ditadura.

Uiara Xavier: Tudo pela unidade do povo brasileiro! Abaixo a ditadura!

Som de sirene muito alto, tiros constantes e bombas, pontualmente.

Silaine:
Primeiro de tudo foi golpe
Cassação perseguição tortura
Por isso a luta armada
No início ainda silenciosa

Quando a propaganda armada se iniciou
Para a Liderança ainda não era a hora
Mas quando a primeira organização declarou
Expropriação é ação do processo revolucionário
Todos aderimos
O silêncio já não era prerrogativa
Dos revolucionários
Em seguida
A repressão mostrou os dentes
E a tortura fez seu império

Quando o Velho concordou
Com o sequestro do embaixador estrangeiro
Para a Liderança ainda não era a hora
Mas quando a ação começou
Todos consentimos
Naquela altura
A divisão das armas
Só nos prejudicava
Em seguida
A repressão espumou sangue
Caçou e torturou
Brutalidade
Cálculo científico
Quedas se sucederam
Até a morte de nossa Liderança

Quando o primeiro de nós suspeitou
Que Cabo Trúlio era cachorro

Mulher Velha: Já podemos chamar as próximas!

Silaine:
Ainda não acabei
(Mulher Velha e Assistente ficam perplexos, pois Silaine retrucou por vontade própria, não seguindo o script das cartas projetadas.)
Cabo Trúlio
Sádico cínico delator
A vanguarda revolucionária não acreditou em nossas denúncias
E não descobrimos
Em nossa própria organização
Quem nos traía
Medidas de segurança não evitaram
Que o Velho fosse entregue
E executado
Na véspera da guerrilha rural

Mulher Velha (olhando para Assistente): Ela…

Assistente: Também não…

Silaine:
A senhora tem alguma ressalva
Por causa desse assunto?

Mulher Velha: Todo mundo ficou sabendo que ele mudou de lado. Mas demorou um tempo. Eu nem conhecia ninguém… Cabo Trúlio…o que é que eu tenho a ver?

Silaine:
Seu irmão pediu
Pra enviar o envelope pro Chile

Mulher Velha: Fui eu que te chamei aqui! Querides players, peço desculpa

Silaine:
Seu irmão foi direto
Enviar pra lá
Sem olhar a mensagem.

Mulher Velha: Filho, por favor

Assistente (retira todos os fragmentos de cartas do retroprojetor, Silaine continua em cena): Lascou-se

Silaine:
A senhora poderia se pronunciar?
Todos aqui têm interesse (olha pro público)

Mulher Velha: Ficava olhando o carro estacionado cada dia numa esquina, pensando no buraco que tinha me enfiado – sempre amei Crístofer mas ele sempre foi encrenca

Silaine:
Então a senhora
Não enviou?

Mulher Velha: Não vem ao caso

Silaine:
Então a senhora
Leu a carta?

Mulher Velha: Vontade eu tive, mas isso não interessa pros negócios

Silaine:
Comportamento liberal
O avesso de seu irmão
A carta era um comunicado
Da nossa organização
À vanguarda revolucionária
Sobre a traição de Cabo Trúlio
Sabemos quantas mortes resultaram
De sua impunidade
Não saio daqui não
Enquanto não achar a brecha
Onde aconteceu
Interceptação

Mulher Velha (corre pro retroprojetor e desliga ele da tomada, ouvem-se sons de datilografia que levam Silaine embora): Você não pode mais deixar isso acontecer.

Assistente: Amadinhes do meu Brasil, é sobre isso!

Mulher Velha: Como é que ela sabia?

Assistente: Essa é a série que vai arrebatar corações: Cartas Prisioneiras

Mulher Velha: Será que ela ainda está viva?

Assistente: Ação, suspense, e – por que não? – paixão!

Mulher Velha: Será que é desaparecida?

Assistente (à parte, para a Mulher Velha): Assim ninguém vai dar moral pra gente

Mulher Velha: Sabe por que eu tive dúvida?

Assistente: A gente precisa do dinheiro

Mulher Velha: Eu estava grávida de quatro meses

Assistente: Tá vendo o que a fila da aposentadoria faz com as pessoas?

Mulher Velha:
Olhava a carta, lembrava:
O último neném que eu peguei
No colo foi Crístofer
Na época ainda achava
Que era uma menina
Meu irmão sumido e encontrado
A infância de meu irmão
Não existiu
O pai um bruto
Que em sua raiva também sofria
A mãe confusa
Cuidando das marcas de surras
Ainda latentes na memória
Em mim não sei
Quem vai nascer
     Que criança vai ser
     Que mundo vai viver
     Se eu correr perigo
     Não sou só eu
     Que posso entrar bem
Era você também, meu filho.
Era de você que eu estava grávida.

Assistente caminha em silêncio até a tomada e religa o retroprojetor. Começa a projetar fragmentos de cartas que não estavam no script. Diversos sons disputam entre si para dominar a cena, juntamente com as vozes de Silaine, Iucatã e Alice. No fim, vence a de Iucatã, que surge em cena. Ao fundo, ouve-se um choro de bebê.

Iucatã:
Nem te conto
Presa com barriga de 7 meses
Parto desapropriado
Como tortura
Mas armei o que pude
Deixei os óculos em casa
Não enxergava nada
Cabeças separadas do corpo
Não identifiquei ninguém
Chorava
Fazia a mamãezinha sensível
Como doía
Consegui registrar a criança
Parir e ficar
Mãe
Outras foram roubadas
(som de grades e correntes. Alice surge em cena.)
Diziam
“Se for branco, homem e saudável
A gente pega
Criança tem que ter condições
Nem pra ser mãe
Comunistas miseráveis servem”
Mas eu sou
Filha de comunistas
Sou saudável!
E lúcida!

Alice:
“Quem é que vai
Viver no mundo
Que a gente vai criar?”
Ouvia-se muito isso
Em pleno AI-5
Repressão comendo solta
Revolução voando longe
Acima de tudo
Sonhos devastados
E lá fora o silêncio
Pra mim o certo seria abortar
Me compadeço
Porque a única dona do corpo da mulher
É a mulher
Mas naquelas circunstâncias
Até hoje
Não condeno
Mas não concordo

Iucatã:
Descobriram que eu era a tal Iucatã do Araguaia
Me mandaram pra Brasília
Mesmo na prisão
Senti ter um filho uma coisa gostosa
Parece impossível pensar nisso
Cercada com metralhadoras
Eles tentam acabar comigo
E nasce mais um
Aqui onde tentam me eliminar
Acabar com as pessoas
A vida continua
Sentia o nascimento do meu filho
Como se estivesse se libertando do útero
Um sinal de liberdade
Meu filho livre

Mulher Velha: Agora precisamos parar um pouco. A Mulher Velha, como vocês viram, deve o aluguel há meses. Seis meses, é o que ela conseguiu negociar antes da ação de despejo.

Assistente: Agora ela tenta, sem sucesso vender a própria vida, que não é dela, porque não se considera importante nem interessante pro mundo do business.

Mulher Velha: Não há espaço pra pessoas comuns. De toda a fé que ela tinha, sobrou só culpa e frustração.

Assistente: O passado, presente se confundem, e do futuro… ninguém sabe.

Mulher Velha:
Meu filho livre!
Olha o tamanhão dele aqui hoje
Como é que eu ia deixar
Meu filho no esquecimento?

Alice:
São situações absolutamente diferentes
Quanto umbigo
Presta atenção
Não é tudo sobre você

Fixa-se uma carta de Crístofer projetada.

Se eu engravidasse, seria um paizão. Que não tivemos.

As três vozes se sobrepõem em discursos simultâneos e emaranhados.

Silaine:

É sobre Zilda (Zélia) / Nascida em Recife / Dirigente da Liga Feminina da Guanabara / Até ser banida em 1964/ Uma das pioneiras da Ação Libertadora Nacional / Após décadas integrando o Partido Comunista Brasileiro / Responsável pela logística de viagens a Cuba na ALN / Coordenando uma rede internacional clandestina de viagens / Travessia de fronteiras / Treinamento e contato do estrangeiro com a organização / Seus dois filhos e sua filha também eram guerrilheiros / Alguns dos mais aguerridos combatentes / Cuidava da segurança de Marighella no último período de sua vida / Companheira na luta e no amor / Uma das três maiores dirigentes da ALN / Presa em 1970 / Após sofrer inúmeras torturas conseguiu forjar sua fuga / Simulou um surto psicótico / Foi enviada para um hospital psiquiátrico / De lá conseguiu escapar se aproveitando da festa de 1º de maio / Vivendo no exílio / Só retornou ao Brasil em 1979 / Morreu aos 90 anos com dores nos joelhos por causa do pau-de-arara/ Mas relatando ao mundo sua experiência / Defendendo até o último dia a memória das organizações revolucionárias que resistiram à violência da ditadura.

É sobre Iara (Clara, Glaucia, Isa) / Nascida em São Paulo De origem judaica / Casou aos dezesseis / Separou do marido / Depois de alguns anos / Para escândalo da época / Formada em psicologia / Iniciou carreira na academia / Mergulhou de cabeça no trabalho político / Participou dos atos contra acordos MEC-USAID / Defendeu a liberdade da mulher em todos os sentidos / No debate político / No trabalho / Nas roupas / No casamento / No amor e no sexo / Questionava a falta de cuidado com a estrutura psicológica dos guerrilheiros / Participando de inúmeras ações / Chegou a integrar a base de treinamento da Vanguarda Popular Revolucionária no Vale do Ribeira / Ao lado de seu companheiro Lamarca / Onde sofreu boicote dos homens / Ainda assim provou sua capacidade / Saiu da área de treinamento acreditando estar grávida / Sonho que há muito alimentava / Intelectual reconhecida entre seus pares / Demarcou a posição da guerrilha rural / Recuar das ações armadas dispensáveis nas cidades / Rompeu com a VPR / Ingressou no MR-8 / Enviada para Salvador, sem Lamarca / Sendo a mulher mais procurada do Brasil / Foi lá onde acabou cercada pelo exército / Que não sabia que ela estava na casa / Encurralada no quarto de fundos / Iara quase passou despercebida / Não fosse um menino que entrou no prédio já evacuado / E a flagrou / Ela disparou o tiro derradeiro contra si mesma / Fugir da tortura e da possibilidade de delação / No momento em que as forças repressivas estavam prestes a captura-la / Aos 27 anos.

Iucatã:

É sobre Helenira (Fátima) / Nascida no interior de São Paulo / Integrante do Partido Comunista do Brasil / Formada em Letras na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo / Uma das principais articuladoras do movimento estudantil / No final da década de 60 / Chegou a ser vice-presidente da União Nacional dos Estudantes / Praticante de basquete e atletismo / Foi presa pela primeira vez pichando / “Abaixo as leis da ditadura” / No muro do Mackenzie em frente à sua faculdade na Rua Maria Antônia / Uma das mulheres negras que resistiu à ditadura / Presa novamente como delegada no congresso da UNE em Ibiúna / Jurada de morte pelo delegado Fleury / Conseguiu o habeas corpus pouco antes da promulgação do AI-5 / Entrando de vez na clandestinidade / Morou em várias regiões da cidade de São Paulo e do país / Antes de ser enviada para o Araguaia / Onde integrou o Destacamento A da guerrilha / Que depois de sua morte recebeu o seu nome / Vítima do racismo e do ódio de classe / Assassinada a tiros de metralhadora e sequestrada pelo Exército / Enquanto montava guarda num ponto alto da mata / Para companheiros atravessarem a região sem surpresas / Morreu aos 28 anos / Marcando para sempre a luta de quem deseja e age por um mundo livre e justo / Seus restos mortais não foram localizados até hoje / Sendo uma das desaparecidas políticas cuja memória o Estado despreza até os dias de hoje.

É sobre Inês / Nascida no interior de Minas Gerais / Integrante da VPR e da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares / Participou do Sindicato dos Bancários e do movimento estudantil / Iniciou a militância no PCB / Fez parte do Centro Popular de Cultura da UNE / Até entrar na POLOP / Aderiu à posição da luta armada / Após uma série de debates internos / Fundadora do Comando de Libertação Nacional / Que posteriormente se integrou à VAR-Palmares / Na divisão da organização ficou com a VPR / Junto com Herbert Daniel / Ele bixa ela bi / Enfrentando restrição e preconceito / Lutando pela sua liberdade pessoal / Dispunha a própria vida pela liberdade da coletividade / Participou do sequestro do embaixador suíço / Integrou o comando da organização a partir de 1971 / Isolamento e dificuldades da luta armada a levaram / A escolher o caminho do exílio / Mas antes de sair do país / Foi traída e capturada / Sendo a única sobrevivente da Casa da Morte em Petrópolis / Quebrada pela tortura / Para despistar a repressão / Inventou pontos inexistentes / Tentou o suicídio / Viu Cabo Anselmo na prisão / Informou a organização / Levando às primeiras suspeitas sobre sua lealdade / Última presa política liberta no Brasil / Suas denúncias revelam partes da história que jamais saberíamos.

Alice:

É sobre Maria da Conceição (Joana) / Nascida no sertão alagoano / Viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro / Foi casada com um funcionário da Receita Federal e mãe de quatro filhos / No final da década de 60 sua casa recebia reuniões de vários setores da militância / Onde começa a se aproximar e ganhar simpatia pelo movimento / Se envolve cada vez mais / Até procurar seu filho Clemente para entrar na Ação Libertadora Nacional / Teve o desprendimento revolucionário necessário / Obedecer ao filho em plena guerrilha urbana / Seguindo mais as leis da guerra do que as da família tradicional / Na qual havia sido criada / Se encontrou com Marighella dois dias antes de sua morte / Num dia de Finados / Solicitou autorização para treinar em Cuba / Fez treinamento de enfermagem de guerra e guerrilha urbana aos 52 anos / Voltando ao Brasil cuidou de feridos / Resistindo no país / Mesmo depois da saída de seu filho para o exílio / Presa e torturada não entregou ninguém / Por sua determinação de mãe / E também por compromisso com a segurança / De seus companheiros até as últimas consequências.

É sobre Maria Lucia (Maria) / Nascida no interior de São Paulo / Integrante do Partido Comunista do Brasil / Junto com seus dois irmãos / Que como ela participaram da guerrilha rural no Araguaia / Na juventude participou do movimento secundarista / Se formou no Magistério / Atuou como professora primária da rede municipal no bairro de Vila Cachoeirinha / Em São Paulo / Enviada para preparar a guerrilha no Sul do Pará / Seguiu no magistério / Ensinando crianças da região / Participando de atividades de plantio / Com grande respeito da comunidade local / Integrou o destacamento C / Fazendo contatos com a massa / Até ser entregue por um camponês / Que passou para o lado dos militares / Teve sua vida ceifada por um tiro / Caindo num cerco militar / O destino de seu corpo ficou desconhecido por décadas / Uma das primeiras desaparecidas a ter o corpo identificado em 1996 / Tornando-se símbolo da luta por memória verdade e justiça.

É sobre Thereza (Jaci) / Nascida no Rio de Janeiro / Atriz e dramaturga / Integrante do Teatro Experimental do Negro no Rio de Janeiro / Depois em São Paulo / Em plena década de 70 / Encenou a peça E Agora Falamos Nós / Um dos primeiros grupos inteiramente negros da cena teatral / Ligada ao Partido Comunista Brasileiro / Encarregada de recrutamento e formação ideológica dos jovens / Foi presa e teve que sair do país / Participando das lutas de libertação de Guiné-Bissau e Angola / Onde trabalhou também como educadora / Retornou ao Brasil / Publicou uma autobiografia antes de morrer / Aos 72 anos.

Assistente continua a projetar alguns fragmentos de cartas.

Irmã,
Tudo isso estranho, no início pra mim também. Agradeço pela ajuda. Foi só dessa vez. Elas precisavam. Nem deviam estar presas.


Mulher Velha: É sobre elas! Não sobre mim! Eu não passo de uma preconceituosa. Nada sei, nada saberei. Não resisti! Não tive fé suficiente. Esse limite, era por causa da fé? Perdi! Duvidei. Eu olhei! Li a carta que tinha dentro do envelope antes de enviar. Cedi à pressão. A tentação. Fui eu! Minha culpa! Minha máxima culpa! Vocês me devolveram meu irmão, e foi assim que eu paguei. E vocês? Qual o nome de verdade de vocês? Pelo amor de Deus não me diz que vocês são desaparecidas também.

Silaine:

Uma parte de mim
É desaparecida
A outra é vida
Sem arrependimento
Voz latente em
Memória de quem
É parte da gente
Não deixarei
Minhas companheiras
Meus companheiros
No esquecimento

Meu nome?
Lia / Maria Amélia / Ísis / Maria do Carmo / Cida / Maria Alice / Zilda / Maria Sarmento / Iara / Guiomar
Meu nome?
Ilda / Maria Lúcia / Isa / Helenira / Elza / Heleny / Zélia / Sirlene / Lúcia Maria / Lourdes / Ruth / Ilma
Meu nome?
Inês / Dulce / Carmela / Encarnación

Iucatã:

Uma parte de mim
É sobrevivente
A outra insurgente
Entre as duas
Não existe conflito
Não sou um mito
Sou parte da gente
Que em armas pegou
Contra o silêncio
Exploração violência
E empobrecimento

Meu nome?
Maria Augusta / Dilma / Glaucia / Vilma / Clara / Tânia / Moema / Ana / Iracema / Luzia / Eliana /
Meu nome?
Olivia / Darci / Arlete / Linda / Ozenilda / Robêni / Lisete / Walderês / Sonia / Vera / Marília / Soledad / Crimeia
Meu nome?
Denise / Thereza / Rose

Alice:

Uma parte de mim
Tem fé
Outra não arreda pé
No seio da luta
A consciência justa
Amor ao próximo
Quem me guiava
O anti-negócio
Raiva e angústia
De quem se assusta
Com um lamento

Meu nome?
Idinaura / Flavia / Isaura / Antonieta / Sandra / Edith / Jessie / Conceição / Bety / Nair / Regina / Dagmar
Meu nome?
Maria Amparo / Maria Lygia / Lídia / Diva / Albertina / Silvia / Rosa / Selma / Norma / Sandra / Aurora / Leslie / Suzana
Meu nome?
Ana Maria / Jane/ Perpétua

Mulher Velha:
Não sei como elas viviam
As cartas diziam por cima
O resto é imaginação
Alguns fragmentos
Fui eu que escrevi
Não conhecia elas
Mesmo assim trouxeram
Meu irmão de volta que tinha desaparecido
E elas que desapareceram
Querem que elas desapareçam
Sobreviventes

Nem me aposentar eu consigo
Vou ser despejada
Não presto nem pra passar uma cartinha
Quem dirá uma série inteira
Não sei como faz essa merda
Nem sabia que existia
Essa bosta de ditadura
Porra
Até hoje não entendi direito o que foi
     Caralho cu buceta
Quem me responde, coração
Quem é que responde?

Não consigo imaginar a dor da tortura
Foi alguém que entregou vocês?
Vocês sofreram?
Vocês sobreviveram?
Eu não aguentaria
Depois a culpa era capaz de me matar

Cartas Prisioneiras
Filho, a mamãe precisa sair
Pra ir no correio
Você vai ficar sozinho
Se comporta direitinho?
Cortina fechada
Luz apagada
Se alguém aparecer na porta
Você se esconde
Filho
Como a gente faz pra sair daqui?

Silêncio.

Mulher Velha: Como faz pra sair daqui mesmo?

Assistente: O Assistente não sabe como responder sua mãe.

Mulher Velha: Nem ela nem ele têm nenhuma certeza do futuro.

Mulher Velha e Assistente: Agora precisamos terminar a peça.

Assistente: Não tem saída, mãe.

Mulher Velha: Como a gente entrou?

Assistente: Vem cá comigo. (vão saindo juntos)

Silaine:
Medo e depressão

Iucatã:
Fome e privação

Alice:
Dor e injúria

Silaine:
Todas nós sofremos
Cada uma de uma origem

Iucatã:
Pensamos muito bem
No caminho que estávamos tomando

Alice:
Pensamos até hoje
Pois vivemos
E quem morreu
Pouco a pouco ressuscita

Assistente continua a projetar trechos de cartas.

Irmã,
Quando quiser, pode vir me visitar. Agora já é possível.

Mulher Velha:
Meu filho
A gente vai pra casa da minha prima

Assistente:
Não sei se a senhora viu
Ali na esquina
Tem uma ocupação
Distribuindo cesta básica.

Assistente projeta a última carta.

Irmã,
Sem palavras alegria de falar contigo, ter conseguido te ver. No meio da dor sobrevivemos. Você está linda. Não mudamos muito de criança até hoje.

Silaine:
Não nos intimidaram pelo medo

Alice:
Não nos intimaram à traição

Iucatã:
Não nos impuseram o desaparecimento

As três:
Aqui estamos. Venceremos

Mulher Velha:
Gostei dessas moças

Assistente:
Eu também

Mulher Velha:
Tinha uma delas no velório do seu tio.

Assistente:
Como a senhora sabe?

Mulher Velha:
Não tinha muita gente
Ela gostou quando troquei a placa no túmulo
O nome dele é Crístofer.

Assistente corre de volta e projeta o último fragmento. Deixa ele em cena.

Não deixamos de ser irmãos.

Mulher Velha e Assistente saem de cena.

Nota da Autora

Esta peça foi escrita a partir de entrevistas de história oral de vida realizadas no ano de 2019 com Amelinha Telles, Ana Maria Ramos, Cida Costa, Crimeia Almeida, Guiomar Lopes e Leo Moreira Sá, além dos diálogos com a pesquisadora Maria Claudia Badan Ribeiro.

A intenção não foi reconstituir os depoimentos na íntegra, mas sim criar o texto livremente a partir deles e de tantas outras referências, entre livros de testemunho sobre a época, documentos, reportagens, filmes e músicas.

A personagem Silaine foi construída a partir das memórias de Amelinha, Cida e Guiomar.

Iucatã, a partir das memórias de Crimeia.

Alice, a partir das memórias de Ana Maria.

As referências para o personagem Crístofer vieram do livro A Queda para o Alto, relato autobiográfico do poeta Anderson Herzer, e das memórias compartilhadas por Leo.

Agradeço imensamente e dedico esta peça a todas as pessoas que colaboraram com seus relatos, afetos e perspectivas críticas sobre um período tão tumultuado e deturpado em nossa história: a ditadura civil-militar. É cada vez mais urgente debater o abismo que ela instituiu no Brasil.