Primeiras Dramaturgias

Obra Branca

Um homem negro se coloca em frente ao público no ambiente que existe entre uma aula, uma palestra, uma reunião de terapia em grupo, um consultório psicanalítico. Um quadro branco, uma mesa, microfone, cadeiras vazias formando um semicírculo, copo d’água, uma garrafa de whisky e uma placa escrito “Respeite os Locais” compõem o espaço. É possível avistar um recipiente com muita argila branca a ser preparada, e recortes de roupas típicas como terno, camisa, vestido de noiva, batina de padre, regata, manto de rei, cueca boxer, roupa de bailarina, farda do exército, calças jeans, etc. Todos recortes brancos e muitas páginas de livros. Essa é a matéria- prima para a criação de uma obra branca. A obra será uma pessoa branca, um objeto de estudo criado em frente ao público no corpo desse homem negro, enquanto ele executa o que existe entre uma aula, uma palestra, uma reunião de terapia em grupo, uma consulta psicanalítica.

LANÇAR NAVEGAÇÕES

O homem negro prepara a argila branca com água de mar

Existem coisas que o povo branco criou e que me intrigam. Na lista de exemplos estão: Família, Shopping Center, Papa, Big Brother, Rede de farmácias, Binarismo e Serial Killer, não digo que gosto ou desgosto, só que, essas são algumas coisas que pra mim são difíceis de entender. Outras eu já entendo melhor.

Nos Estados Unidos o primeiro homem afro-americano a conquistar doutorado foi W.E.B. Du Bois, também um dos primeiros intelectuais a pesquisar a raça branca. Em um texto intitulado a “Alma dos Brancos” ele fala que:

“No alto da torre, onde me sento acima das altas queixas do mar humano, sei de muitas almas que jogam, giram e passam, mas não há nenhuma que me intrigue mais que a Alma do Povo Branco. Dela eu sou clarividente. Vejo nela e através dela.”

Nesse trabalho eu decidi investigar a branquitude, para iniciar essa primeira cena, chamada “Lançar Navegações”, eu preparo essa massa branca, para criar uma espécie de máscara/persona que vivenciará situações que em pesquisa elenquei como importantes para representar a raça branca brasileira. Essa pesquisa será encenada.

O espetáculo acaba quando eu finalizar a criação de uma pessoa branca, que aqui chamo de Obra Branca.

Pensei que para esse trabalho seria importante me colocar em um ponto onde conseguisse olhar pelo maior número de ângulos possíveis, me colocarei ao centro da narrativa. Portanto começarei aqui da minha mais íntima experiência em relação à branquitude: O meu sangue.

Dizem na família da parte materna que temos uma ascendência Italiana. O sobrenome de nossa família é Ponsado. Nunca em nossa família ouvimos histórias sobre antepassados brancos.

Em contrapartida, ouvi muitas histórias de bisavós levadas no laço. Mãe Vitória única parteira da cidade. Vó Helena casmurra, surda de doença, mas com ouvido aguçado pra tudo que era sagrado. Vô Fulô espantando o diabo no mato, e sempre levando seus dois fumos, o dele e o da Kaipora. A bisa que enterrava dinheiro. A avó que morreu de uma picada de bicho no dedo. A mãe e o pai que trabalharam em um sistema análogo à escravidão na infância. Tio Cila e tio Dudeca responsáveis pela festa de Reis da cidadezinha todos os anos…

Pausa.

Percebo duas ironias.

De um lado tantas histórias e nenhum nome.

Além do Ponsado, nossos sobrenomes são Nomes próprios de proprietários.

Cristiano parte de mãe e Nascimento parte de pai.

Tanta vida e nenhum lugar de origem.

Respiro.

Indígena e negro não são lugares de onde se parte.

N’gola?

Haussá?

Dijejê?

Guarany?

Ianomâmi?

Caiapó?

Tupinambá?

Indígena e negro não são lugares de onde se parte.

Do outro lado, nenhuma história, mas nomes próprios, e um lugar bem marcado. Um país de origem. Aliás, país é outra invenção do povo branco, que não entra na minha cabeça.

A outra ironia, foi o momento que pensei essa primeira cena, achando que o primeiro passo de uma colonização era o da criação dessa máscara que agora preparo.

Antes dela vem a minha fala, e é nela que lanço navegações ao mar, rumo ao desconhecido, como esses meus antepassados de muitos nomes e com pontos de partidas.

Nela faço uso da herança mais intacta do povo branco.

A de me colocar no centro de toda a narrativa.

Para concluir, Du Bois finaliza seu texto sobre a alma branca dizendo:

“Eu vejo essas almas despidas e por todos os lados. Eu vejo o funcionamento de suas entranhas. Eu conheço seus pensamentos e elas sabem que eu conheço, e isso as torna ora envergonhadas, ora furiosas… E ainda como elas pregam, e sustentam e gritam e ameaçam, curvando-se como agarradas a farrapos de fatos e fantasias para esconder sua nudez, eles vão se torcendo, voando pelos meus olhos cansados e eu os vejo sempre desnudos, feios e humanos.”

Início da obra, o homem negro começa a criar.

Nzumbi

No período de isolamento social eu fiquei preso em um gênero de filmes em específico, os filmes de terror, mas sendo mais específico ainda, filmes de zumbis.

Preciso de quatro pessoas voluntárias para participar de um jogo.

Queremos nesse jogo testar reflexos.

Então de um lado temos três pessoas que vão ser: seres humanos indefesos ou zumbi.

E do outro uma pessoa com uma arma que vai proteger-se do zumbi, e salvar seres humanos indefesos.

As três pessoas ficarão de costas e combinarão entre si, quem serão os seres humanos e quem será o zumbi, quando contar até 3, vão virar de frente para o atirador, quem for zumbi faz esse gesto, quem for humano faz esse outro.

E a pessoa do outro lado armada vai tentar proteger-se do zumbi e salvar os seres humanos indefesos.

1…2…3…

VALENDO…

Brincam algumas vezes.

Podem se sentar.

Quando vemos um zumbi, não pensamos duas vezes. Precisamos nos proteger e salvar seres humanos indefesos de um mal que anda mesmo morto, e se alimenta do nosso corpo, das nossas entranhas e bebe do nosso sangue. Um inimigo.

Percebi, em período de isolamento, uma fixação da raça branca em produzir materiais audiovisuais de zumbis. Como usufruía de um tempo livre, fui atrás da história do porquê dessa fixação… Pois bem…

1920
O escritor estadunidense William Seabrook escreve A Ilha da Magia, um livro que relatava entre outras coisas, a experiência de ter ficado de frente com um zumbi, em uma plantação de cana de açúcar no Haiti.

1930
Há a primeira produção cinematográfica de Hollywood com o novo monstro. White Zombie ou traduzido para português, Zumbi Branca, a trama gira em torno da tentativa de transformar uma bela americana, prestes a se casar, numa morta-viva sexualmente escravizada por um feiticeiro haitiano.

1960
George Romero estreia o seu aclamado A Noite dos Mortos Vivos, o filme surge para mudar o modo como zumbis seriam representados futuramente, agora eles são uma massa, que tem o único interesse de se alimentar e aumentar o seu bando. E traz um protagonista negro. Inclusive é um dos filmes que assisti no isolamento social.

1970-1980
O sucesso do filme de Romero foi tão grande que em seguida surgiram diversas produções com zumbis no centro da narrativa, a Espanha e a Itália também entraram nessa onda com produções onde a horda de monstros “descelebrados” precisavam ser mortos em grande escala.

1990
Essa década é marcada por um hiato em filmes desse tipo, mas em paralelo o gênero começava a ser revitalizado nos videogames com a produção do primeiro Resident Evil que permitia que pessoas passassem por uma situação semelhante ao nosso jogo aqui, em que agora o poder de matar os mortos-vivos está em nossas mãos.

2000-2020
Período conhecido como o Renascimento Zumbi. As super produções do gênero voltam com todas as forças. Foram mais de 50 produções até aqui, entre filmes, quadrinhos, séries e jogos eletrônicos.

Viram? Concordam que existe aqui uma espécie de fixação?

Logo me perguntei… Existe a necessidade da representação e reprodução de um adversário, um antagonista, um rival, um oponente que, salvo um filme, protagonistas brancos precisam matar em grande escala?

Meu próximo passo então foi olhar pra esses anos e pensar o que havia neles que fazia com que as pessoas brancas se sentissem com essa necessidade. Achei uma pesquisa que diz que…

1920
William Seabrook só conseguiu entrar no Haiti, porque na década de 10 os Estados Unidos iniciaram um processo chamado neocolonização, em que invadiam ilhas caribenhas, uma delas o Haiti. Lá encontraram, segundo palavras dos soldados da época, pessoas “primitivas” com crenças populares “exóticas”, uma delas, a chamada voodoo, onde existiam seres chamados Nzumbis, que significa “o espírito de um morto”, a crença vinha de pessoas que eram escravizadas em fazendas de plantação, que diziam que quando você morria, seu espírito voltava para a África, mas caso você cometesse suicídio, seu espírito estava fadado à continuar naquelas plantações. Virando Nzumbis. Para os soldados americanos não havia o que pensar. Inimigos.

1930
No mesmo ano que lançaram a Zumbi Branca, houve o fim da “ocupação” dos Estados Unidos no Haiti. O país norte-americano vivia sob regime de segregação racial. A trama de uma menina sequestrada e violentada por um homem negro não estava só no filme, mas no imaginário das pessoas brancas da época que enforcaram e lincharam centenas de homens negros. Inimigos.

1960
Direitos civis negros em pauta em toda a América. E existem especulações que associaram a violência e o preconceito contra o herói negro do filme de George Romero com traumas americanos recentes, como o Martin Luther King. Ben, o protagonista morre no final, ao ser confundido com um dos monstros. Inimigos. Vocês tem noção? O único protagonista negro em um filmes de zumbis, é confundido com um, e morto?

1970-1980
Explode a representação de monstros que andavam pela cidade, e que agora não tinham uma ascendência espiritual mas sim biológica, o que explicava a transmissão rápida dessa condição não-humana. Curiosamente em 1983 Michael Jackson, um artista negro, representava no clipe de Thriller zumbis que não eram destruídos, era uma horda de mortos vivos que d.a.n.ç.a.v.a.m.

1990
Um vácuo da representação desses monstros nas produções, talvez fosse difícil pensar em algo depois dos passos sincronizados da horda de zumbis de Michael Jackson… Até que…

2000-2020
Em 2001 surge uma nova ameaça para os Estados Unidos da América. Um homem de 44 anos nascido na Arábia Saudita teria planejado um atentado terrorista que teve êxito, a queda das torres gêmeas, Osama bin Laden, o inimigo número 1. O ano que marca o renascimento zumbi, é o ano que inicia uma guerra no Oriente Médio. A volta de seres representados como grandes inimigos. O zumbi pela ótica ocidental colonial branca é um alguém sem vontade própria, sem nome, incapaz de produzir pensamentos, ou falas, um ser preso em uma espécie de morte em vida, sem identidade, uma multidão com o mesmo rosto. Uma existência que é por si só uma ameaça a humanos indefesos. Um monstro, em quem se pode atirar, prender, explodir, matar, matar, matar, matar, matar, matar, matar, matar, matar, matar, assim repetidamente em grande escala, sem remorso, peso moral, ou culpa. Isso me lembra uma coisa…

TODA CULPA É BRANCA

Quem pode resumir a história do Édipo?

Quando o servidor, que sabia de todo o segredo por trás da formação familiar de Édipo, finda a sua fala de revelação, Édipo diz o seguinte:

Édipo: Oh! Ai de mim! Então no final tudo seria verdade! Ah! luz do dia, que eu te veja aqui pela última vez, já que hoje me revelo o filho de quem não devia nascer, o esposo de quem não devia ser, o assassino de quem não devia matar!

O que Édipo sente neste exato momento é o sentimento de culpa! Mas o que é a culpa?

A minha especialidade não é a psicanálise mas… Freud acredita que a culpa está relacionada ao tabu. Tabus são todas as coisas que nos pareçam perigosas, misteriosas, proibidas, mas ao mesmo tempo sagradas. Ou seja, um tabu não pode ser tocado ou falado, mas deve sempre ser lembrado e temido. Profanar um Tabu, ou seja, transgredi-lo era um ato que exigia uma punição. Essa punição foi evoluindo, se sofisticando com o tempo, passando pelos olhos de Deus, pelas mãos da igreja, até chegar na nossa cabeça. Gerando assim, o sentimento de culpa, que segundo Freud, nada mais é do que a exteriorização da necessidade de uma punição. O que nos faz voltar à Édipo. Ou melhor ao mensageiro, que relatou a materialização da culpa de Édipo:

Mensageiro: Arrancando os colchetes de ouro que ornavam as vestes da rainha, ele os ergue no ar e os enterra nos próprios olhos, “assim eles não mais verão, disse ele, o mal que sofri, nem o que causei, assim as trevas doravante os impedirão de ver aqueles que eu não deveria ter visto, e de ignorar aqueles que, apesar de tudo, eu gostaria de ter conhecido!” Clamando essas palavras, sem descanso, com os braços erguidos, ele fere seus olhos, e os sangue corria das órbitas sobre sua barba. Não era um corrimento de gotas vermelhas, mas um jorro de sangue escuro que inundava sua face!…

O que Édipo inflige a si mesmo, ao descobrir sua própria identidade, me faz pensar: O que fazer com a culpa?

Cegar-se diante dela, ou afastar-se foi a solução que o Rei de Tebas encontrou.

Bom, o Freud nos traz outro dado importante, ele diz que passamos a culpa para frente, de geração a geração.

Eu vou pegar um outro exemplo que não o Édipo pra que as coisas fiquem mais claras ainda.

Suponhamos que meu tataravô fosse um homem branco, dono de uma fazenda, que escravizava pessoas, ou que minha tataravó, mulher branca, observava pessoas sendo escravizadas e sentia nisso prazer, ou mesmo, que observasse e sentisse pena, mas nunca fez nada com isso.

Suponhamos que lá no fundo, no inconsciente eles sabiam que os atos desumanizadores que eram direcionados às pessoas na condição de escravizada, não só desumanizava os africanos e indígenas, mas principalmente: eles, os agentes e observadores da desumanização.

Mas ali existia um tabu: O lugar do meu tataravô e minha tataravó nas relações raciais. O tabu era se perceber BRANCO, porque ao se entender dessa forma, eles assumiriam um lugar dentro de uma cadeia que eles ajudavam a alimentar. Logo, uma culpa.

Suponhamos que esse tabu e essa culpa, seja passada pro meu bisavô, pro meu avô, e pro meu pai, até chegar em mim.

Agora eu pergunto: Assumindo-me então Branco dentro das relações raciais, e quebrando esse tabu secular. Eu sinto a culpa acumulada de meus e minhas antepassadas? Como Édipo, sinto culpa ao trazer à luz, a minha identidade?

Mensageiro: Ele grita que lhe abram as portas; que mostrem a todos os tebanos o parricida, o filho que… Suas palavras são desprezíveis para repetí-las. Quer sair, em rumo do exílio; não quer continuar no palácio depois da maldição terrível que ele mesmo proferiu. No entanto, ele precisa de um guia, e de um apoio, pois seu mal é grande demais para que sozinho o suporte. Tu mesmo irás julgar. Acabaram de abrir o ferrolho de sua porta. Verás um espetáculo que causaria dó até mesmo num inimigo…

As portas do palácio são abertas, o homem negro acrescenta Édipo de órbitas vazias e sangrentas à obra.

Édipo 1: A rua é sobre parceria, se você não tiver parceiros, se não aprender a se agrupar, você tá fudido. É preciso ter um cigano dentro de você, porque eu leio a intenção das pessoas, mesmo antes de falar com elas, eu sei pra quem eu peço comida, em que buteco eu posso pedir pra entrar e mijar, cagar. Eu sei até onde tomar uma ducha, fazer barba, e cortar o cabelo. Eu tenho uns parceiros que gostam de colar comigo, pra ver se aprendem a ter o cigano dentro deles, mas eles não conseguem. Eu sou o único que consigo cagar nos botecos. Na leitura que meu terceiro olho faz, é como se as pessoas de certa forma me dissessem: O que você tá fazendo aí? A gente não pode estar nesse lugar! Já pros meus parceiros… Eu não entendo… Bom, acho que o cigano não baixa neles.

Édipo 2: Dia desses postei em meu facebook uma foto do novo galã que tá em alta. Postei e disse, gente como pode? Olhar esse homem e não desejá-lo? Embaixo senti a necessidade de justificar que eu não entendia se aquilo podia de certa forma ser racista, por se tratar de um homem negro. Vejam, eu deixei explícito que eu não sabia. E de fato não sei. Algumas pessoas, negras, me excluíram imediatamente. Vejam, eu não entendo. No ano passado, postei uma foto com vários galãs, e nenhum deles era negro, justamente com medo de ser acusada que objetificava aqueles corpos, algumas pessoas, negras, me excluíram imediatamente. Sendo sincera penso: Não existe opção de me relacionar com homens negros? Vejam, deixo bem explícito: Eu, de fato, não, sei. Será que devo excluir minha conta do facebook?

Édipo 3: No dia 19 de agosto deixamos finalmente as costas do Brasil. Dou graças a Deus, e espero nunca mais visitar um país de escravos. Até o dia de hoje, sempre que ouço um grito distante, lembro-me vivamente do momento doloroso que senti quando passei por uma casa em Pernambuco. Ouvi os mais angustiosos gemidos, e não tenho dúvida nenhuma de que algum miserável escravo estava sendo torturado. Entretanto, sentia-me tão impotente quanto uma criança, até mesmo para dar demonstrações.

Esse último Édipo, é na verdade o Charles Darwin, em 1836, sobre uma visita ao Brasil, em uma de suas expedições pelo mundo, coletando informações sobre pedras, plantas e bichos. Pedra, planta e bicho nos países do outro.

ELES NÃO TEM A KAIPORA

O homem negro aqui já é um rascunho da obra final. Um rascunho branco.

Darwin e os estudiosos, viam o “novo mundo” com olhos de interesse. Havia ali, um outro, seres humanos marcados esteticamente por uma diferença óbvia, fenotípica, e uma cultura completamente estranha. Nova. Exótica.

O outro, como ouvimos ao falar dos Nzumbis, surgem da necessidade de uma projeção da raça branca em uma figura diferente, com hábitos errados e necessidades primitivas. desde a visita de Darwin atrás de novas pedras, plantas e bichos, passando por William Seabrook nas plantações do Haiti, até chegar nos estudiosos de hoje, existe uma curiosidade sobre a outra cultura. A que não é a sua. Existem elementos dela, que inclusive podem ser incorporados, apropriados. Se tornam adereços. Histórias infantis. Peças de museu. Jarros de flores. Filmes de terror. E jogos de videogame.

A bell hooks diz:

“Dentro dos debates recorrentes sobre raça e diferença, a cultura de massa é o local contemporâneo que ao mesmo tempo declara publicamente que existe prazer a ser descoberto no reconhecimento e na apreciação da diferença racial.(…) Dentro disso, a etnicidade se torna um tempero, conferindo um sabor que melhora o aspecto da merda insossa que é a cultura branca dominante.”

O que ela quis dizer com isso?

Que pessoas brancas não tem a Kaipora.

Enquanto o progresso branco avança sobre o pouco de mata verde que resta.
Derrubando com braços de gorilas gigantes e metalizados
Bocas de onças e jaguatiricas famintas e robotizadas
E o bico de corvos imundos, pois não pertencem ao natural.
Meu avô, Floriano Cristiano Ponsado, nem assobiava dentro da mata.

Morada da Kaipora.

O que nem Freud, nem Darwin viam de debaixo do guarda-chuva Ocidental
É que nas terras de acá. Só chove se Kaipora chorar.

E Kaipora só chora de felicidade.
Portanto merece o respeito.
Obviamente não por ser Tabu.
Ela pode e deve ser lembrada.
Mas cuidado…
Edna minha vizinha, foi um dia na casa de minha mãe e disse:

“Menina, agora um negócio que eu tenho medo é a mata!
Acredita que Menina de Fulana, pras bandas das matas de acá, foi pegar fardo de lenha e brincando, disse: “Kaipora se você existe, faz a gente se perder.”
Pois bem, num deu 10 minutos e elas num achavam o caminho da volta. Chegando em casa, o marido de fulana diz: Faz 10 horas que vocês saíram e vocês voltam sem a lenha?”

Imagina uma vida sem Kaipora? Vida de se sentir muito grande?
Sem nada pra bater cabeça?

Ser maior que mistério da natureza. Maior do que a natureza? Não ser natureza?

Imagina? Achar que planta em casa é enfeite?

Escreve no quadro branco.

“Omama não nos deu nenhum livro mostrando os desenhos das palavras de Teosi, como os dos brancos. Fixou suas palavras dentro de nós. Mas, para que os brancos as possam escutar, é preciso que sejam desenhadas como as suas. Se não for assim, seu pensamento permanece oco.”
(Davi Kopenawa)

O mais louco é que eu posso falar, escrever, desenhar, fazer esse teatro que talvez eu não dê conta de dizer o que a intenção quer acertar.
Inclusive falar, falar, falar é coisa de quem não tem Kaipora.

Agora, imagina isso na boca deles? É bem capaz de virar história em um daqueles livros que dizem que são para infância e subestimam as crianças deles. Ou mais… Já pensou a produção em massa de jogos eletrônicos pras crianças deles matarem Kaiporas? Ou na Vila de uma Madá, todos fazendo um círculo de uma sagrada Kaipora, honrando e incluindo as raízes soltas de uma memória essencialmente brasileira. Sendo o Brasil, uma péssima invenção de quem não tem Kaipora?

Anexo_1: Áudio da mãe

“Oi Rafinha, boa noite Rafinha (risos) Oh rafa, eu vou te falar uma coisa meu filho, se seu avô tivesse vivo, ele ia contar tanta história pra você, tanta lorota (risos), ele ia falar senta aqui Rafa, que eu vou te contar. E ele ia contar da Kaipora, do Saci pererê, da Mãe dele que foi pegada no mato, ficou amarrada três dias (risos). Ele tinha essas histórias, pai. Que a mãe dele foi pegada no mato, ele contava que a mãe dele morreu, por causa de uma dor de dente, porque naquela época não tinha remédio né meu filho? Mas esse negócio da Kaipora, oxi, isso aí desde que eu era criança, o povo dizia que via, eu num vou dizer que eu vi né Rafa, porque eu nunca vi. O que eu vi, que eu posso dizer que eu vi, que eu tava junto com ele, foi quando a gente passou lá na encruzilhada, que jogaram areia na gente, isso aí eu presenciei, que eu tinha ido buscar os porcos, mais ele de noite. Eu esperava o Sol entrar e a gente ia de noite buscar os porcos, pra não trazer no Sol quente, porque diz que machucava os porco, aí quando nós passou, jogou areia, Tchá. Eu garrei nele, falei, vixe pai o que é isso (risos) Ele falou: Não minha filha, isso aí, num esquenta a cabeça não, aí é Zé Cristiano, que era o pai dele que tava seguindo nós. Tu acredita? Aí mesmo assim, eu garrei nele. Entendeu? Mas esse negócio da Kaipora, isso já existia né Rafa? Há muitos anos.”

CULPA 2

Eu gostaria de voltar na questão da culpa…
Um tempo depois que escrevi o texto que foi encenado há uns minutos atrás, uma pergunta ficou ecoando em minha cabeça: Existe culpa racial em mim? (pausa)
Eu estava em meio à pandemia e fui a uma praia afastada. Eu e minha companheira nos hospedamos em uma pousada em frente ao mar.

Na primeira noite saimos para caminhar pela areia, e em uma parede havia uma placa, nela estava escrito: “RESPEITE OS LOCAIS.”
Eu parei em frente à placa e falei “Há algo nessa frase que não encaixa. Você entende?”
Ela me disse: “Acho que diz respeito aos caiçaras.”
A frase dormiu na minha cabeça naquela noite.
Essa introdução foi pra dizer na verdade de um sonho que eu tive dias depois, quando já havia retornado para casa. No sonho, eu estava na mesma pousada.
E acordava assustado por conta de um barulho forte.
Olhei ao redor e não entendia o que estava acontecendo, acordei minha companheira que também se levantou assustada.
Identificamos o motivo do barulho.
Haviam invadido a pousada.
Não tínhamos reação.
Estávamos paralisados.

Um barulho forte na porta do quarto.
Estavam forçando a maçaneta para entrar.
Entraram.
Na nossa frente, havia duas pessoas.
Atrás delas, a pousada ruía em chamas e sangue.
Empunhavam uma arma.

Miraram em nossa cabeça.
A arma, um arco.
O projétil, uma flecha.
O olhar, uma pergunta…
“O que vocês estão fazendo aqui?”
Ouço o barulho do arco tensionando cada vez mais.
Um assobio.
Acordo de sobressalto.
Ofegante.
Com uma flecha no peito.
Na cabeça…

Uma placa:
“RESPEITE OS LOCAIS.”

REDENÇÃO DE CAN E A MISCIGENAÇÃO

Vamos voltar à minha apresentação?
Lá no início, eu havia dito a frase “Portanto começarei aqui da minha mais íntima experiência em relação à branquitude: O meu sangue.”

Esse texto foi escrito em dois anos de pesquisa, e esse trecho foi a primeira coisa que surgiu, veio da vontade de pautar branquitude, mas ainda sem saber direito como. Sem ter ferramentas para elaborar.
Essa minha frase contém um equívoco. Uma ingenuidade. É um erro.
Mas antes de falar sobre isso gostaria de compartilhar com vocês uma obra de arte. “A Redenção de Can”.

O Rascunho Branco reproduz o quadro se colocando no lugar da criança/redenção da obra.

Basicamente esse quadro diz uma maneira de redimir Can, o personagem bíblico amaldiçoado a ter sua descendência marcada pela cor negra e a sina de ser escravizada.

Mas Can não se redimiu.

Porque, esse foi meu erro no início. A divisão racial criada pelo homem branco, nasce com a benção divina, nos braços da igreja, passa pela unção biológica, mama no seio dos cientistas, até que se denote que ela é cultural, geográfica, estética, não sanguínea ou biológica.
Não se nasce branco.
Torna-se, no contato com a retina do mundo.
Can não se redimiu.
Can não se redimi.
Can nunca foi amaldiçoado.
Eu gostaria de refazer a minha fala inicial, dois anos depois que eu a escrevi.
“Portanto finalizarei aqui, a partir da minha mais íntima experiência em relação à branquitude: O meu TRAUMA.”
Obra Branca finalizada.

FALA DO OBJETO DE ESTUDO OU
AQUI, PEDRAS, PLANTAS E BICHOS FALAM

A Obra Branca, completamente criada, se posiciona em frente a uma câmera, sua imagem ecoa pelo espaço, começa a gravar.

Obra Branca: Decidi gravar aqui nessa sala, uma espécie de confissão, uma mistura de apelo e testamento destinado a alguma filha que ainda não tenho, ao meu irmão mais novo, para minhas alunas, para os educadores do museu que devo trabalhar, ou para os chefes de obra de onde sou ajudante, para a moça do RH na empresa em que sou gerente, para a mulher que faz a merenda na escola onde estudou meu filho que também não tenho ainda, gravo para a atendente do mercado da rua de casa, para ela e para a dona do mercado da rua de casa, para minha amiga do grupo de estudos queer, pro meu mano da rua de trás que sempre me ajuda e cresceu comigo, meu namorado, minha esposa, e companheire, minha mãe e meu padrasto. Para que não fique mais confuso do que já será, chamarei todo esse conglomerado de destinatáries, de Você.

Bom, eu faço esse vídeo por um ímpeto de coragem que não consegue combater a maior das minhas covardias. Eu gravo porque não consigo dizer isso na sua frente, não em voz alta, não olhando em seus olhos. Tenho medo. E se minhas palavras perfurarem algo em ti, e te quebrar? E se você ainda não estiver pronta pra ouvir o que eu gravarei? E se eu não tiver pronto pra dizer isso, na premissa que alguém ouça, e eu quebre. Ou fure meus próprios olhos em recusa ao que surgirá, e fuja pra bem longe, onde tentarei esquecer de tudo.

Veja, Você, é difícil o que falarei, pra mim, por isso pareço tão relutante.
O ímpeto de coragem agora é frio e não aquece a garganta.
Vou tomar um gole desse whisky 26 anos que ganhei de aniversário.

Vira.

A gente precisa se aceitar! (grita)
Veja, é ridículo dito assim.
Mas precisava dizer no espaço de uma respiração.
Falo isso destinado a Você, porque se digo isso a qualquer uma outra pessoa, pareceria mais uma tentativa de entrar em uma área que não nos pertence.
E não é isso.
E sim, é ridículo, porque não passa de uma gravação trancada em quatro paredes que pode ser o quarto dos fundos da minha casa, o quintal da minha avó que benze toda a rua, ou o meu escritório vazio, à noite, depois que a última funcionária já se foi.
Mas preciso dizer, e de alguma forma colocar pra fora.
Você, devemos nos aceitar.
Eu tô confuso, não sei se a palavra certa é essa.
Esses dias ouvi que racismo e infância não deveriam caber em uma mesma frase. E isso me quebrou Você, me quebrou porque eu não entendi. E de alguma forma sinto que deveríamos saber o significado disso, sabe?
Você, a branquitude é um roteiro. Pra alguém isso tudo vai dar merda. Mas a gente insiste em respeitar cada fala, entonação, indicação de ação, plot twist.
Até aqui, o mundo tem sido um mar, leve, que não pesa o nosso nado. Mesmo que o nado seja por si só pesado.
Você, até aqui o mundo tem sido o quintal de nossa casa. Uma extensão da gente. Mesmo que não tenhamos uma casa.
O mundo pra nós vem sendo uma lua exótica na órbita de Júpiter, completamente desconhecida e inexplorada, e nós somos uma rota de colisão.
A gente tá perdido, Você.
É como se fôssemos um amontoado de passado, e orgulho de algo que eu não sei explicar. Eu faço rodeios, porque, de certa forma, não consigo dizer o que penso.
Não em voz alta. Não pra você.
Talvez essa gravação chegue, apenas como uma intenção.
Porque novamente esfria minha coragem.
E novamente tomo um gole do whisky 26 anos pra conseguir te mentalizar e dizer o que precisa ser dito no espaço de uma respiração.

Vira um gole de whisky.

Eu reconheço a minha raça.
Eu reconheço a nossa raça.

A raça das rainhas de cabeças decoradas, e decepadas. A raça das lepras, varíolas, gripes, e pandemias, a raça de toda má sorte do corpo. Das bombas atômicas, energia elétrica, cocaína, museu, teatro, câncer, família, shopping center, papa, big brother, rede de farmácias, binarismo e serial killer.

A raça de Freud, Jung, Foucault, Platão, Einstein, Pitágoras, Aristóteles, César, Hitler, Afrodite, Madre Teresa de Calcutá, Donald Trump, Abraham Lincoln, Jorge Amado, Pedro Álvares Cabral, MC Pikachu, Joana D’arc, Bjork, Charles Darwin, Charles Chaplin, Karl Marx, Margaret Thatcher, Engel, Jair Messias Bolsonaro, Dilma Rousseff, Rogério Ceni, Roberto Carlos, Carla Perez, Simone De Beauvoir, Thammy Miranda, Olga Benário, marechal Artur da Costa e Silva, padre Marcelo Rossi, Xuxa, Airton Senna, Vivaldi, Albert Camus, Britney Spears, Santo Agostinho, Chico Xavier, Rita Lee, Chet Baker, a moça do comercial de margarina, Madonna, Anne Frank, Harry Potter, Hillary Clinton, Zeus, Mãe Dinah, Zé Celso, Silvio Santos, Greta Thunberg, José Bonifácio, Carlos Maia, Sasha Velour, Joelma, Odin, Frea, Sandy, aquelas três do Rouge, e as quatro das Spice Girls, todos os N’Sync e Backstreet Boys. Clarice Lispector, Chacrinha, Datena, Superman, Ken, Barbie, Walt Disney, Fidel Castro, Oscar Schmidt, Angélica, Chapéuzinho Vermelho, Meryl Streep, Marilyn Monroe, Roberta Close, Elvis Presley, Rainha Elizabeth, Neil Armstrong.

Você, Você, Você, Você, Você, Você, Você, Você,

Silêncio.

Eu.