Dramaturgias do Tempo
A Metamorfose
Peça pesadelo patriarcal
Uma cama antiga, de madeira, com molas. Não há colchão, lençol, travesseiro – ela se deita diretamente sobre o estrado. Um foco de luz, recortado, vindo do chão, ilumina parte da cama.
Ao redor dela, um coro de homens e mulheres cujos rostos não podemos ver. Quando falam, não é em uníssono – há vozes dissonantes, ruídos, uma sensação de eco, interferência. O ideal seria que esse mesmo coro também executasse a trilha ao vivo. A trilha de um pesadelo.
O choro estridente de um bebê interrompe o sono da Senhora G, e ela se senta na cama, aflita.
SENHORA G: Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, a Senhora G encontrou-se em sua cama metamorfoseada numa mulher casada com filhos. Estava deitada de lado, um bebê nos braços. Sentia as pálpebras pesadas, as pernas formigando de exaustão, os tímpanos vibrando com o choro do bebê e de outras duas crianças, cujas vozes ressoavam como mais de mil.
CORO: Estou com fome. Meu uniforme não está seco. Onde estão meus sapatos?
SENHORA G: O quarto era o mesmo, mas estranhou a incidência da luz sobre a cama. (olhando diretamente para o foco de luz) Sua visão estava nublada, a cortina fechada, uma fresta iluminada entrava por baixo da porta. Era manhã, mas parecia lusco-fusco – quando não há luz natural bastante para seguir trabalhando, mas ainda está claro demais para acender luzes artificiais. Um limbo em que não há nada a fazer senão esperar, e que sempre a angustiara. Sobre a mesa ainda se encontrava a xícara de chá que bebera enquanto trabalhava em sua nova peça, exatamente como a deixara na noite anterior. Mas as páginas já escritas e o caderno de anotações tinham desaparecido. Olhou nas gavetas, atravessou o quarto até alcançar a pequena estante de madeira. As crianças continuaram atrapalhando enquanto ela percorreu com as pontas dos dedos, uma a uma, as lombadas dos livros que se lembrava perfeitamente de ter escrito, e não pôde encontrar seu próprio nome. As publicações seguiam aparentemente iguais: as mesmas capas, o mesmo número de páginas, a mesma gramatura de papel. Mas eram todas assinadas por um mesmo homem.
CORO: Querida, o que está acontecendo? Já não deveriam ter saído pra escola a essa hora? Não há nada na despensa. Não deveria ter feito compras?
SENHORA G: Voltou-se para a porta, livros nas mãos, e antes que pudesse pensar quem seria o dono da voz desconhecida, parou diante de sua própria imagem no espelho da penteadeira. Estranhou o cabelo muito longo, os olhos fundos, melancólicos, o quadril mais largo, os seios grandes quase escapando pelo decote da camisola de renda – que não se lembrava de ter comprado.
CORO: O diretor da escola telefonou, quer falar com alguém. Estou ocupado com a revisão dos originais, não conseguirei atender. Preciso que esteja lá às onze.
SENHORA G: Telefonaria para a editora, era isso. Quinze anos de pesquisa, horas sentada à máquina datilografando, não poderiam simplesmente desaparecer. Um breve telefonema, tudo seria esclarecido. A Senhora G pegou a bebê, a balançou, tentando fazer com que se calasse, alcançou a agenda de contatos na mesa de cabeceira com muito custo, encontrou o número, discou. Pediu para falar com o editor, da parte da Senhora G, e afirmou que ele saberia do que se tratava.
CORO: Sinto muito. Este nome não consta em nosso catálogo.
SENHORA G: Era impossível. Tinham um contrato de, no mínimo, dez anos. Ela poderia nomear todas as obras para que fossem verificadas, mais de uma vez, se o editor assim quisesse. Que ele, por favor, conferisse de novo.
CORO: A culpa não é nossa, Senhora G. A sua obra simplesmente não existe.
SENHORA G: Seria preciso ir até lá pessoalmente. Decerto, era alguma confusão. Com uma criança agarrada a cada perna, a Senhora G demorou a chegar até o cabideiro e pegar sua bolsa. Tentou afastá-las dizendo que sairia só por uns minutos, precisava resolver um assunto importante. O choro veio ainda mais alto. Ela tentou pensar em outro jeito de convencê-las, enquanto caminhava até a porta. Mas logo notou que não seria preciso. Não havia maçaneta do lado de dentro. Não havia sequer fechadura. Encostou a testa na madeira fria para respirar, e ao reabrir os olhos viu, saindo do pequeno vão entre o chão e a porta, uma folha de papel. Como ela não respondera, ele passara instruções por escrito.
CORO: Fazer compras. Reunião com a diretora. Agendar minha consulta médica para depois de amanhã.
SENHORA G: Só então lhe ocorreu chamar o nome dele. Que não sabia oficialmente, mas, pelas capas dos livros, podia imaginar. Ainda assim, não fazia ideia de como se chamariam na intimidade. A Senhora G nunca se interessara por homens, não nesse sentido, mas intuiu que um apelido carinhoso seria eficaz para um momento como aquele. Tentou ser coerente com o que ele dissera, chamou-o de querido, com voz suave e baixa, perguntou logo depois se ele poderia, por favor, abrir a porta. Repetiu a frase algumas vezes, aumentando gradualmente o volume da voz, sem obter resposta. Provavelmente já havia saído para o trabalho. Após sentar as crianças na beira da cama, aconchegar a bebê nos braços da mais velha e pedir que ficassem quietas, ela correu até as cortinas e abriu-as. Estava disposta a sair pela janela, dar a volta pelo terraço e se pendurar na escada de emergência, se fosse preciso, para chegar à sala de estar e, enfim, à porta do quarto. Mas atrás das cortinas encontrou apenas a parede branca, ocupando o espaço da janela pela qual já tinha visto tantos horizontes. Parecia ter sido arrancada, magicamente, deixando atrás de si um quadrado de outro tom. Olhou para o quarto mais atentamente. Outros quadrados nas paredes eram a memória do que um dia foram quadros. Sobre os móveis, ilhas escuras cercadas de poeira pontuavam a ausência dos objetos que ela trouxera de viagens. Abriu cada gaveta semi-esvaziada e só encontrou camisolas. Chapéus e sapatos tinham desaparecido, bem como o casaco de lã preferido, herança da mãe. Alcançou outra vez a agenda, na mesa de cabeceira, folheou rapidamente os muitos compromissos anotados a lápis, até o dia anterior. Naquele dia, uma reunião de produção do novo espetáculo marcada para às dez e quarenta e cinco, e dali em diante, dias e dias do mais completo branco. A Senhora G procurou se acalmar. Telefonaria para Greta, pediria a ela que passasse ali antes da reunião, assim poderia ajudá-la, e iriam as duas juntas ao escritório. Greta não atendeu a sua ligação, mas ainda assim, não havia motivo para pânico: tão logo percebessem que ela não aparecera, tanto Greta quanto as outras colegas correriam até a casa, preocupadas, com certeza. Ao menos, telefonariam. Ela nunca faltava a compromissos. Muito menos a compromissos de trabalho. Ainda menos uma reunião que ela mesma tinha solicitado. Bastava esperar. Enquanto isso, poderia pensar melhor no que fazer. Encontrou o contato de um escritório de advogados que tinha consultado anos antes por conta dos direitos de tradução de uma das suas peças. Discou e pediu para ser direcionada a quem quer que fosse responsável por casos de plágio.
CORO: A senhora tem certeza?
SENHORA G: Era óbvio que tinha certeza. Poderia nomear todas as obras para que fossem verificadas, mais de uma vez, se o advogado assim quisesse.
CORO: É a sua palavra contra a dele, que tem as obras registradas.
SENHORA G: A Senhora G argumentou que ninguém faria uma acusação tão grave se não tivesse motivos. Insistiu para que ele, por favor, aceitasse o caso.
CORO: É impossível uma denúncia sem provas. Como garantir que a senhora não inventou tudo isso só para prejudicar um homem honesto?
SENHORA G: Testemunhas. A Senhora G tinha muitas testemunhas, que acompanharam a criação das histórias, os ensaios, as estreias, as longas reuniões com editoras antes das publicações, sugerindo que ela assinasse seus textos com um pseudônimo masculino a fim de aumentar a aceitação do mercado. Testemunhas que estariam em sua casa em breve para dar fim a esta situação ridícula. Bateu o telefone, tentou ligar para Greta outra vez, não teve resposta, folheou a agenda em busca do próximo nome. As crianças seguiam chamando, barulhentas, entediadas, ela não teria paz enquanto não encontrasse algo que as distraísse. Resolveu ensiná-las a brincar de telefonar. Entregou a agenda para as duas, orientou a mais velha a ler em voz alta o nome da pessoa para quem discava, e entregar a ela o aparelho caso alguém atendesse. Se não houvesse resposta, a mais nova deveria desenhar uma estrela ao lado do nome, para que tentassem de novo depois. As duas começaram imediatamente.
CORO: Ana. Estrela. Antônia. Estrela. Bento. Estrela.
SENHORA G: A bebê dormia sobre a cama, e a Senhora G aproveitou os poucos minutos de paz para rodar o quarto em busca de chaves, frestas e cigarros, e tentar lidar com os próprios pensamentos.
CORO: Célia. Estrela. Deise. Estrela. Estela. Estrela.
SENHORA G: Olhou as crianças com mais atenção. A mais velha tinha o nariz arrebitado e sardas. Era séria, concentrada. O cabelo castanho descia liso, mas a franja insistia em ficar em pé, o que a deixava com um ar levemente ridículo. A do meio tinha cabelos cacheados e bochechas coradas. Ria muito. Desenhava feliz, sem se importar com estar trancada em um quarto. Não pareciam em nada com ela.
CORO: Fátima. Estrela. Federico. Federico. Federico, mamãe.
SENHORA G: Há anos a Senhora G não falava com o próprio pai. Paralisou diante da criança de franja esquisita, braço estendido, olhar dramático, telefone na mão. Pensou por alguns segundos se o pai aceitaria voltar a falar com ela, agora que estava casada, e com um homem. Era possível. A situação era grave o bastante para apelar a isso. Ainda que fosse mentira. Ainda que ao se apresentar como mulher casada e mãe, ela estivesse, de algum modo, aceitando a situação. O que era inadmissível. Ainda que pressentisse que, tão logo começassem a conversa, o pai passaria a culpá-la. Era um homem rígido, que acreditava na punição como o mais eficiente dos métodos educacionais. Quase ouviu-o dizer que se estava ali trancada, havia um motivo. Que ela demorou tantos anos para escolher um marido, e quando o fez, escolheu errado. Como tudo que fizera na vida. Tirou o telefone das mãos da menina e bateu-o com força no gancho.
O choro estridente da bebê recomeça.
Ouviu passos na escada, correu até a porta. Já devia ser hora do jantar. Voltou à estratégia de tratar o suposto marido com um carinho inexistente, e pediu quase entre lágrimas que ele tivesse compaixão, abrisse a porta, dissesse afinal o que queria.
CORO: Mandar as crianças para a escola no horário. Fazer compras. Organizar a lista de convidados pro coquetel de estreia na quinta à noite.
SENHORA G: A Senhora G não pôde conter a raiva quando leu o último bilhete. Pela primeira vez veio à sua mente a imagem dele circulando pelo teatro, recebendo os cumprimentos pela obra que ela tinha escrito. Imaginou um homem franzino, carrancudo, que sorria desajeitado a cada elogio que recebia por sua escrita inédita, sua universalidade, sua capacidade de criar personagens femininas com alma. As críticas no dia seguinte seriam maravilhosas, nenhuma menção a “outro trabalho de nicho” ou “mais um drama de mulheres”. As vendas de ingressos dobrariam, triplicariam, apenas porque outro nome aparecia nos cartazes. Arrepiou-se ainda mais quando pensou na possibilidade de ele ter mudado as obras. Correu novamente até a estante, abriu um dos livros, e confirmou seu grande pânico: a ideia central seguia a mesma, mas detalhes da história tinham sido mudados, e todas as protagonistas mulheres tinham sido transformadas em personagens masculinos. Virou-se para a porta e gritou que não iria admitir que ele fizesse isso com ela – mas da sua boca saiu somente um som muito baixo, quase um sopro. Voltou até a porta e bateu – nenhum som. Tentou novamente, gritaria o quanto fosse preciso, bateria com a força que fosse necessária, mesmo que seus nós dos dedos começassem a sangrar. Não pôde ouvir nada. A porta era macia, absorvia todo impacto. Um formigamento começou na ponta dos seus dedos, tomou o braço, ombros e costas. Sentiu seu corpo dormente, como se tivesse ficado imóvel por tanto tempo que agora os músculos não pudessem mais reagir. Olhou para baixo, viu pés enormes, inchados, afundando no chão, que ela ainda não tinha notado ter uma inclinação diferente. Tudo ao redor derretia. Acabou largada na cama, quase sem forças.
O choro estridente da bebê volta a chamar a atenção da Senhora G.
Ainda deitada, aninhou a bebê sobre si, para que se acalmasse, pediu que as crianças cantassem suas cantigas mais baixo, estendeu a mão até o telefone e ligou para a polícia. Cobriu com a mão o bocal do telefone, abafando a própria voz, e explicou o que estava acontecendo desde aquela manhã. Pediu que enviassem alguém, urgentemente. O marido estava em casa, poderiam comprovar tudo.
CORO: Esse endereço não existe.
SENHORA G: Pediu que procurassem pelo seu sobrenome.
CORO: Não há registro algum.
SENHORA G: Mesmo tomada pela repulsa, a Senhora G pediu que procurassem, então, pelo sobrenome dele. Sentiu sua respiração ofegante quando afirmou que era casada com um autor, um famoso dramaturgo, com muitas peças publicadas. Ela poderia nomear todas as obras para que fossem verificadas, mais de uma vez, se o policial assim quisesse. Que ele, por favor, procurasse de novo.
CORO: Sabemos quem é ele, Senhora G, todos o conhecem. Não há registro algum de que ele seja casado. Nem com a senhora e nem com ninguém.
SENHORA G: Mas existia um marido. Ao menos alguém que agia como 1. A Senhora G precisava fazê-lo desistir de seja que plano estivesse colocando em prática. Certa de que, se conseguisse descansar, uma solução surgiria no dia seguinte, como acontecia em todas as suas crises criativas, a Senhora G achou melhor dormir. Apoiou um travesseiro para que a bebê não caísse, chamou as outras duas meninas para a cama, estendeu o braço até o botão do abajur. Apertou-o várias vezes, mas ele continuou aceso. (Ela olha diretamente para a luz do espaço cênico.) Arrancou o fio da tomada, e ainda assim, a luz permaneceu. (Ela segue olhando.) O choro estridente da bebê a incomodava, interrompia seus pensamentos, não a deixava dormir. Virou de lado, tentando se ajeitar na cama, e viu que a poltrona do canto tinha desaparecido. Havia naquele quarto muitas incongruências. Não conseguia ver sentido em existir cortina, se não existia janela. No marido mandar bilhetes pedindo para preparar as filhas para a escola, se elas nunca saíam do quarto. Em haver sempre uma bandeja com comida sobre a mesa, e um bule com chá sempre quente, sendo que ninguém entrava.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
Deitou-se de bruços, a cabeça embaixo do travesseiro. Incomodavam muito a Senhora G as falhas narrativas da sua nova vida. Ela havia se acostumado a trabalhar minuciosamente cada detalhe de seus textos, a tal ponto que seu prazer pela escrita quase se perdia. Sabia que seria cobrada. Então, parecia profundamente injusto que houvesse menos coerência em sua vida atual que em qualquer história que ela tinha criado anteriormente.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
Levantou-se e foi até a mesa buscar lápis e um pedaço de papel, crente de que se escrevesse conseguiria entender melhor o que estava acontecendo. Os lápis e canetas também tinham desaparecido. Questionou se o tempo estava passando de outra maneira. Haveria tantas possibilidades de explorar esta ideia, quem quer que estivesse decidindo os rumos de sua vida não as estava aproveitando.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
Deitou novamente, cobriu a cabeça com o cobertor. Espantada com o fato de estar há vinte minutos narrando sua própria trajetória sem participar ativamente de um mísero diálogo, a Senhora G se perguntou a quem interessaria criar uma personagem e em nenhum momento deixar que ela falasse por si mesma. Sentiu sua respiração se abafar, puxou a coberta pra baixo, suada. Pensou que era extremamente incômoda a narração toda no passado, como se o fim já estivesse há tempos determinado. Uma das meninas se mexeu na cama, e ela levantou para ver se alguma coisa tinha acontecido. Sentiu necessidade de conferir se estavam bem. Colocou o dedo abaixo do nariz da mais velha, fixou os olhos no abdômen da do meio para confirmar se respirava. Se elas eram reais.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
Deitou novamente, olhou fixamente para o teto. A vida toda a Senhora G tinha tentado fazer com que suas personagens conseguissem se libertar.
Não se tratava de criar finais felizes, mas saídas possíveis – ao menos no campo do imaginário, ter a chance de ganhar certas batalhas. Virou de lado novamente, abraçou o travesseiro com urgência. Só uma pessoa sádica entregaria a uma audiência a trajetória de alguém fadado a nunca reverter sua própria situação, disso ela tinha certeza.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
As crianças acordaram, se aproximaram dela na cama, buscando colo e abraços. Já devia ser manhã. A Senhora G tratou de logo arranjar algo para fazerem, pediu que dissessem, em sequência, todos os objetos que estavam vendo. Inventou uma melodia, e informou que repetiriam o jogo todas as manhãs.
CORO (numa melodia infantil): Cama? Tem. Mesa de cabeceira? Tem. Agenda? Tem. Telefone? Tem. Tapete? Tem. Cortina? Tem.
SENHORA G: A bebê seguiu chorando, e a Senhora G demorou a entender que aquele choro específico significava que deveria oferecer o peito. Mesmo que nada saísse, era um jeito dela se acalmar. Não fazia sentido, mas mesmo assim continuou fingindo amamentar, e culpou-se pela sua falta de instinto materno.
CORO (na mesma melodia): Mesa? Tem. Bandeja? Tem. Bule? Tem. Xícara? Tem. Pão? Tem. Biscoito? Tem.
SENHORA G: Enquanto embalava a caçula, concluiu que tudo que podia fazer era manter-se lúcida. Quando enfim abrissem a porta, ela precisava ter provas, e um entendimento nítido da situação a ponto de sustentar sozinha, diante de qualquer júri, que ela era a vítima.
CORO (melodia): Máquina de escrever? Tem. Penteadeira? Tem. Espelho? Tem. Estante? Tem. Livros? Tem. Guarda-roupa? Tem. Cabideiro? Tem. E acabou.
SENHORA G: A Senhora G nunca fora metódica – pelo contrário, era fascinada pelo caos criativo, adorava se perder entre as mil ideias que sua imaginação fértil produzia. Só não perdia prazos e compromissos porque Greta estava sempre atenta, ajudando-a a cumprir com todas as burocracias. Mas agora sentia que seria necessária uma rotina severa, e muita organização, para que não enlouquecesse. Algo nesta nova vida precisava ser controlado por ela mesma.
CORO: Preparar o jantar. Passar minha camisa para a reunião da tarde. Comprar travesseiros mais confortáveis. Buscar meus sapatos novos.
SENHORA G: Assim que o marido se aproximou, a Senhora G foi até a porta e, tirando de propósito a boca da bebê do seu peito, fez com que voltasse a chorar. Pediu que as duas mais velhas gritassem o nome do pai, ao que obedeceram prontamente. Enquanto ele seguia mandando bilhetes, se aproximou da porta e, com toda a delicadeza de que foi capaz, argumentou que ‘as pequenas’ sentiam falta dele, já não se lembravam do seu rosto, e ele, obviamente, não gostaria de ser esquecido. Aguardou uns segundos, ouvido colado à porta, e viu o novo bilhete.
CORO: Dizer às crianças que o pai as ama muito.
SENHORA G: Guardou-o na primeira gaveta da cômoda. Catalogaria os papéis, organizando-os por ordem alfabética, de acordo com a ordem dada. Batizou a primeira gaveta de “manter o ego dele em dia”, a segunda de “afazeres domésticos”, a terceira chamou de “parecer agradável”, e a quarta estava reservada a “funções sexuais” – que a Senhora G esperava não ter que cumprir nunca. A esta altura, as crianças tinham voltado à brincadeira do telefone, e dessa vez era a filha do meio quem estendia o braço para a Senhora G, acompanhado de um sorriso, como se ela estivesse cumprindo a missão mais difícil e mais satisfatória do mundo.
CORO: Greta. Greta, mamãe.
SENHORA G: A Senhora G agarrou o aparelho de telefone imediatamente.
CORO: Quem deseja?
SENHORA G: Estranhou a voz masculina, mas respondeu calmamente que precisava falar com Greta, da parte da Senhora G.
CORO: Não conheço ninguém de sobrenome G. É alguma amiga da época de solteira? Ela não pode falar agora, está ocupada cuidando do bebê.
SENHORA G: Greta não tinha filhos. Nunca havia se casado. Trabalhavam juntas há muitos anos, a Senhora G conhecia a rotina e a vida dela como ninguém.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
Voltou a embalar a bebê, mecanicamente.
O choro estridente da bebê interrompe o fluxo de pensamento da Senhora G.
Demorou a perceber que ela não estava chorando. O som vinha do corredor. Aproximou o ouvido da porta, fechou os olhos, procurou se concentrar. Ouviu uma voz feminina, ao longe, em tom choroso.
CORO: As pequenas sentem sua falta, já não se lembram do seu rosto.
Você não gostaria de ser, assim, esquecido. Por favor, querido, abra a porta.
SENHORA G: A Senhora G não foi capaz de reconhecer se aquela era sua própria voz ou a de uma outra mulher. Deitou-se, o rosto junto ao vão, e com custo conseguiu ver os sapatos dele, caminhando ao longo de um imenso corredor. Depois, a mão de dedos longos e com uma larga aliança de ouro colocou um bilhete por baixo de uma porta. Em seguida fez o mesmo em outra porta, à esquerda da primeira. A Senhora G sentiu a respiração se alterar, ralou a bochecha direita no tapete rústico tentando enxergar melhor, mas o vão era estreito demais. A cada porta, a cada bilhete, uma nova criança chorava, uma nova voz feminina pedia, implorava, clamava por ser libertada. Esfregou os olhos com força – quando olhou outra vez, não viu um, mas uma multidão de sapatos masculinos de couro, perambulando ao longo do que parecia um interminável corredor, com incontáveis portas de madeira, atrás das quais pareciam existir todas as mulheres do mundo. Todas tentando em vão telefonar para as melhores amigas, todas passando noites em claro sem ouvir os próprios pensamentos por conta do choro estridente de um bebê, de um abajur que nunca se apagava ou de uma criança de franja em pé que respirava descompassada e a enchia de preocupação. Não sabia se estava sonhando ou acordada, delirando ou lúcida, mas sentiu que aquela cena era forte demais para passar despercebida. Precisava escrevê-la. Enquanto a sensação era palpável, enquanto era capaz de traduzir em palavras o espanto que sentia. Viraria quem sabe um conto, uma peça, um romance, uma crônica – talvez não virasse nada, fosse só mais uma tentativa de sobreviver. Sentou-se à máquina, que milagrosamente permanecia sobre a mesa. Não havia tinta: por mais que escrevesse, o papel continuava branco. Mas não desistiu. O encostar de dedos nas teclas, às vezes lentamente, outras mais rápido, às vezes com força, outras com suavidade, era a única coisa naquele quarto que soava familiar. Fechou os olhos, deixou-se levar pelo som da sua escrita imaginária. A melodia do quase livro sendo quase escrito por uma quase mulher. Não demorou para que as crianças a interrompessem, querendo fazer seu próprio barulho. A Senhora G permitiu. Pela primeira vez a bagunça constante delas não a incomodou.
CORO: Mamãe, posso sentar junto com você?
SENHORA G: Decidiu dar a elas nomes. Ainda que inventados, provisórios, ainda que isso significasse, de certa forma, assumir-se como mãe delas. Não eram suas filhas. Mesmo que fossem: mereciam mais do que serem apenas as filhas de alguém. Mereciam uma identidade. Seriam suas aprendizes. Seriam sua motivação pra nunca se esquecer daquilo em que acreditava. Contaria suas histórias a elas todas as noites, até que memorizassem palavra por palavra. E então, esperaria que crescessem: em pouco tempo, seriam independentes, cheias de sonhos e vontade de viver. Quando a porta se abrisse, construiriam um mundo novo. Quando fossem adultas, a Senhora G seria livre outra vez para escrever suas histórias quando, onde e como quisesse. A mais velha se chamaria Dora, a do meio, Alice, e a bebê, Milena. As três dormiram aconchegadas umas sobre as outras na cama, a Senhora G voltou a dedilhar a máquina, sem pausa, até que dedos e braços cansaram, e as teclas ficaram pesadas demais. Quando notou, batia as pontas dos dedos sobre a madeira da mesa, pois a máquina tinha desaparecido. Não se espantou. Já não esperava muito de quem quer que estivesse conduzindo sua trama. Imaginava que tudo ao seu redor desapareceria, até que ela mesma desaparecesse. Olhou as palmas das mãos e viu-as já sem linhas, as pontas dos dedos sem digitais, mas não se arrependeu, nem por um minuto. Era já a segunda noite que não dormira, começou a questionar se estava enxergando direito. Virou-se e viu, deitadas na cama, pelo menos dez crianças, idades e tamanhos diferentes, todas de vestidos rendados e sapatos de verniz. Uma a uma, foram despertando, chorando, dando bom dia, chamando, levantando, tentando se agarrar a uma de suas pernas na cadeira da escrivaninha.
CORO (mesma melodia infantil da sequência anterior): Cama? Tem. Mesa de cabeceira? Tem. Agenda? Não tem. Telefone? Não tem. Tapete? Tem.
SENHORA G: Mandou que seguissem com a rotina matinal: comer, pentear-se, trocar as roupas usadas por outras, limpas, que apareciam magicamente nas gavetas. Quem estava narrando não conhecia a dinâmica de uma casa, não fazia ideia das pequenas tarefas do dia a dia necessárias para uma vida familiar acontecer.
CORO: Cortina? Tem. Mesa? Tem. Bandeja? Tem. Bule? Tem. Xícara? Tem. Pão? Tem. Biscoito? Tem. Máquina de escrever? Não tem. Penteadeira? Tem.
SENHORA G: Pelas suas contas, era só o começo do terceiro dia, mas tudo passava em câmera lenta, como se essa rotina estivesse a se repetir por anos e anos. Pediu a Dora e Alice, que pareciam ter envelhecido pelo menos três anos cada uma, que ajudassem a sentar as crianças mais novas na beira da cama, e a manter as bebês quietas, no que não teve muito sucesso.
CORO: Espelho? Tem. Estante? Tem. Livros? Não tem. Guarda-roupa? Tem. Cabideiro? Tem. E acabou.
SENHORA G: Improvisou com o espelho da penteadeira, soprando até deixar a superfície embaçada, para depois desenhar letras com a ponta dos dedos. Evitou olhar seu próprio reflexo, há muito não se reconhecia, tentou não pensar nisso. Ensinou às crianças seus nomes, que acabara de inventar. Mariana, Giulia, Camila, Clara, Luísa, Inês, Andrea, Viviane, Caroline, Gisele, Vitória, Denise, Vanessa, Lurdes, Cristina, Natália, Gabriela. Faltavam ainda cinco nomes, não se lembrava de nenhum outro, os que vinham à sua cabeça não combinavam com os rostos delas, precisava de nomes que combinassem com os rostos delas, precisava fazer, delas, pessoas. Todas gritaram que tinham fome. Devia ser hora do almoço – as filhas eram a única maneira da Senhora G deduzir as horas. Sentou com elas à mesa, fingiu amamentar duas bebês enquanto se perguntava de novo como tanta comida aparecia. Perguntou-se quais das mulheres trancadas nos outros quartos estariam cumprindo essa função, fazendo sua parte para que a narrativa incoerente de autoria desconhecida continuasse. Como estariam suportando, quais seriam suas cores, tamanhos, línguas, escolhas de vida, qual o tamanho dos seus quartos, se estariam mofados, quebrados, destruídos, haveria camas, quais seriam seus deuses, saberiam ou não da existência dela.
Antes que comessem, um bilhete entrou pela porta, e cinco das filhas maiores apostaram quem gritaria a palavra ‘Pai’ mais alto. A Senhora G não conseguia entender por que eram tão boazinhas. Esperava que reclamassem, que se rebelassem contra ela e suas ordens, discordassem dos bilhetes, demonstrassem ao menos em parte toda a vocação para a contestação que ela mesma tinha quando pequena. Mas corriam felizes, levavam pilhas de bilhetes para as gavetas, já transbordando de tão cheias. Quando finalmente uma menina de olhos negros e tranças laterais, que ela não fazia ideia de como se chamava, entregou a ela um bilhete, a Senhora G percebeu que não estava escrito com a mesma letra das primeiras ordens do marido – mas com grafias diversas, enviados por pessoas que ela sequer imaginava quem eram.
CORO: Emagreceu? Não tem se cuidado? Ninguém penteia essas crianças? Não acha que está educando as meninas do jeito errado? Por que não sai?
SENHORA G: A Senhora G comparou letras, mexeu em todas as gavetas e culpou-se pela negligência. Não sabia a data dos bilhetes, era impossível concluir se o marido continuava a enviá-los, ou se tinha ido embora da casa. Jamais sairiam. Os papéis tinham razão: se ela realmente quisesse sair, não teria se distraído com jogos infantis. Não estaria trancada num quarto há dias, completamente desmotivada. Já teria, no mínimo, se chocado contra a porta até derrubá-la. Mas ela praticamente gostava da sua nova vida. Apertou com força um dos bilhetes, que se rasgou entre seus dedos, se culpou pela agressividade. Havia destruído uma prova. Inadmissível. Cogitou, por um milésimo de segundo, rasgar cada bilhete, separar minuciosamente uma letra da outra, e voltar a escrever sua própria história. Manteria suas palavras em um lugar seguro, abrigado do vento, longe do bule de água quente, coladas na parte de baixo do guarda-roupas, com uma massa improvisada a partir de pedaços de pão mastigado. Se conseguisse formular uma frase, uma única frase que tivesse seu estilo, dissesse o que ninguém além dela seria capaz de dizer, provaria sua originalidade, a farsa chegaria ao fim, deixaria de responder à vontade de outra pessoa. Mas não se lembrava mais como fazer poesia. Estava cansada. Ela não podia se permitir se esquecer de si. Mesmo quando todos se esquecessem dela, se ela mesma ainda se lembrasse, haveria uma chance. Ajoelhou junto a uma das crianças, pediu que dissesse seu nome. Que a chamasse, por favor, para ela saber que existia.
CORO: Mamãe.
SENHORA G: Aquele não era o nome dela. Agarrou outra menina, pediu, chorou, implorou que dissesse o nome dela.
CORO: Mamãe.
SENHORA G: Numa última tentativa desesperada, a Senhora G segurou uma das bebês em frente a seu rosto, com os braços inteiramente estendidos, e clamou. Que dissesse. Seu. Nome.
CORO: Mã. Mã.
SENHORA G: Havia se preocupado tanto em dar nome às filhas, ensiná-las a serem elas mesmas, e esquecera de fazer o mesmo por si, enquanto havia tempo. Agora, nem mesmo ela se lembrava de como se chamava. A Senhora G quis gritar que aquela não era a vida que tinha escolhido. Mas não pôde. Assustaria as crianças, e a única certeza que ainda tinha era a de que as amava. Apesar de tudo, as amava, amava, amava.
CORO: Organizar os livros na estante em ordem alfabética. Trocar os tapetes e as cortinas da sala. Lustrar a prataria. Que sejam felizes.
SENHORA G: A nova leva de bilhetes trazia as ordens e julgamentos de sempre e também os mais sinceros parabéns à mãe da noiva. O quarto tinha agora mais de trinta crianças. Não havia nomes suficientes. As folhas não paravam de chegar. O guarda-roupas sumiu, um mar de papéis catalogados tomou o quarto, todos com um dos lados coberto por demandas que ela não pôde cumprir, e o outro vazio, dos versos que não pôde criar. Mesmo que alguém permitisse que ela e as filhas saíssem, não seria possível: as ordens travariam a porta. Logo tomariam todo o quarto, sufocando-as. Correu por entre as filhas procurando por Dora.
Segurou o rosto de uma, olhou-a nos olhos, não a reconheceu. Fez o mesmo com a filha seguinte. E de novo. E de novo. Elas corriam por entre os bilhetes, davam voltas em torno da cama, adorando o desnível entre os pontos do percurso, mergulhavam nas ordens que lhe eram dadas como em uma grande piscina, enquanto a Senhora G tentava desesperadamente perceber se alguma delas tinha sumido. Não podia deixar que sumissem. Eram sua responsabilidade. Não poderia ser o tipo de mãe que não cuida das próprias crias. As meninas achavam que estava se rendendo à brincadeira, riam alto, davam gritos de satisfação. A Senhora G sentiu-se feliz por vê-las tão felizes, perguntou se não era maravilhoso que elas tivessem tantas tarefas divertidas a cumprir, juntas.
CORO: Não é maravilhoso termos tantas tarefas divertidas a cumprir juntas?
SENHORA G: Aquela não era a voz da Senhora G. Ela jamais diria aquilo, sabia o que aqueles bilhetes representavam. Jamais correria pelas montanhas de ordens, divertindo-se, jogando bilhetes para o alto.
CORO: Eram eles, além de suas filhas, as únicas razões pelas quais ainda existia.
SENHORA G: Ela não diria aquilo. Jamais diria. Não queria, mas deitou no chão abraçada aos bilhetes. Gostando deles. Seu corpo se movia sem que ela autorizasse. Pensava em uma ação e assistia, distanciada, o seu corpo executar outra. Começou a chorar. Chorou por horas. Os bilhetes empapados, o gosto de lágrima misturado à tinta de caneta. Já que era obrigada a chorar, queria ao menos fazer isso alto, colocar pra fora o que sentia – e se tivesse conseguido, teria dado um único grito, de no máximo vinte segundos. Mas seu choro silencioso, constante, contido, miúdo, durou a manhã toda. Gotejava sua tristeza aos poucos. Para não assustar as meninas.
CORO: Mamãe, por que está chorando?
SENHORA G: A Senhora G respondeu que não estava, que tudo estava bem, que ela voltasse a brincar. Levantou, tentando se recompor, e ao olhar no espelho, viu sua imagem intacta. Os cabelos arrumados, como se acabasse de sair do salão. A pele reluzia, olhos maquiados, bochechas coradas, lábios vermelhos. Parecia perdida, mas inocentemente sedutora. Não era ela – era alguém presa no outro lado do espelho. Sentiu-se vigiada. Tinha consciência de cada gesto seu, fazia tudo para agradar a alguém, que não conseguia ver, mas sabia que estava ali.
A Senhora G olha diretamente para a plateia.
Que a observava. Assistia. Julgava. Validava. Ela só existia para que alguém pudesse dizer a ela que ela tinha o direito de existir. Por mais que se recusasse, suas ações eram sensuais, lânguidas.
A Senhora G luta, sem sucesso, para controlar suas próprias ações.
Apoiava-se nas pontas dos pés e movia os olhos baixos, a boca sempre úmida. Tinha a pele muito lisa, o rosto muito jovem, sem marcas. A cintura estreita, peitos pequenos, coxas finas. Não tinha pelo algum no corpo.
CORO: Quero ser como você, mamãe.
SENHORA G: As imagens se confundiam diante de seus olhos, já não conseguia perceber se estava olhando o próprio reflexo ou Alice, agora a mais velha entre todas as crianças no quarto, que não devia ter mais do que doze anos. Então, era assim ter a vida narrada por um homem. Aceitar tudo e culpar a si mesma por ter permitido que outros cometessem injustiças contra ela. Se não estivesse trancada em um quarto, certamente acabaria assassinada, violentada, esmagada em uma linha de trem.
CORO: Mas aprenderia tanto com isso!
SENHORA G: Sentiu uma dor aguda, no seio direito, que depois se espalhou por todo o abdômen. Viu com espanto, pelo espelho, seus seios crescerem ainda mais. Viu outros seios surgirem, saltando pra fora da camisola, que logo se rasgou para abrigar oito deles, alinhados, como uma cadela. A cada um se colou a boca de uma das crianças, pesando sobre ela, sugando com voracidade. Foi derrubada no chão e lá se deixou ficar, soterrada pela multidão ávida por tomar seu corpo como se ela não fosse a dona dele.
CORO: Eu acolheria muitos mais. Teria outros. Abraçaria e alimentaria todas as crianças do mundo. Só assim a vida faz sentido. Esta é a única vida possível.
SENHORA G: A Senhora G não conseguia evitar o sacrifício. Não podia dizer não para o que era esperado dela. Seria ingrata. Era uma benção. Enquanto as muitas bocas a sugavam, pôs-se a dizer palavras, num fluxo intenso, colocando pra fora o vocabulário de uma vida. Falou, falou, falou palavras sem sentido, tanto quanto pode. Até que tudo se esgotou, e ela soube que não falaria nunca mais. Sentiu -se completamente vazia. Ainda caída, olhou para a porta, que agora tinha dois vidros, um em cada lateral. Através deles, viu dois vultos de homens, os dois muito altos, um engravatado, o outro com um robe estampado e brilhante, os dois com chifres grandes, reluzentes, olhos brilhantes e vazios. A olharam atentamente, suas cabeças animalescas balançaram em concordância, e então, a porta sumiu. Achou que viriam até ela, mas não foi o que aconteceu. Sumiram também, e com eles sumiram o espelho, a comida, a cama, os bilhetes, as paredes. Já não precisavam mais dela. Era necessário ceder o quarto para outra ocupante. Talvez uma das meninas. Talvez as filhas das filhas das meninas, ainda com tanto a contribuir. Viu os rostos das filhas, agora adultas, em torno dela, sentiu a mão de uma deslizando pela sua bochecha, antes de todas também desaparecerem. Podia ouvir apenas suas vozes, ao longe.
CORO: Ela ficaria feliz em nos ver aqui. Foi por puro amor que ela se sacrificou por nós.
SENHORA G: Ao redor da Senhora G, somente o branco, um vazio resplandecente, sem eco, sem fim. Talvez morrer fosse assim. E talvez ela precisasse morrer, para que enfim seu corpo não pudesse mais ser trancado. Talvez precisasse ser cristalizada em uma imagem. Virar um símbolo. Uma metáfora cujo significado era difícil de entender.
CORO: Se dedicou tão somente àqueles que amou. Cumpriu sua jornada. Devemos seguir o exemplo dela.
SENHORA G: Agora poderia correr para onde quisesse, mas seu corpo respondia somente às rubricas. Suas decisões não eram suas. Talvez, pela vida toda, nunca tenham sido. Talvez ela apenas tinha tido sorte, de ter sido controlada por alguém menos cruel – até aquela fatídica manhã.
Um belo dia, decretou-se o fim do domínio de um Deus, e no dia seguinte, outro passou a reinar. Como na peça que ela começou a escrever, mas desaparecera na primeira manhã, e provavelmente seria o próximo sucesso da carreira dele.
CORO: Uma mulher pacífica, amorosa. Sempre escolheu servir.
SENHORA G: Ainda pensou em tentar resistir, ser uma personagem que não está seguindo o rumo certo. Ela tivera tantas crises com isso, poderia talvez provocar o mesmo nele. Manter seu interior inacessível. Mas logo entendeu que ele acreditava demais em seu talento para, como ela, questionar a própria obra. Imaginou, com esperança, que talvez ele a faria agora adormecer para, ao acordar, perceber que tudo não passara de um sonho. Não seria um final surpreendente, mas ela não reclamaria. Estava cansada de reviravoltas e surpresas. Queria um final medíocre, previsível, como a vida dos homens escritores que conhecia. Sem ter como fugir, obedeceu às rubricas que a mandavam fechar os olhos
A Senhora G fecha os olhos.
e pensou que não precisava ter sido assim. Que ela poderia ter viajado com suas meninas, conhecido ruínas na Grécia enquanto o marido fazia o jantar, vê-lo brincar com elas no jardim enquanto ela lançava seu novo livro em um café nos arredores de Bagdá. Poderia ter escrito mil contos sobre mulheres dormindo abraçadas a jaguares na Floresta Amazônica, enquanto ouvia as filhas a chamarem pelo seu próprio nome.
Poderia não ter filhas, mas ajudar a criar filhas de outras mães em uma casa enorme cheia de mulheres. Ou viver sozinha em uma casa cheia de portas. Portas com maçanetas. Portas sem chaves. Portas grandes, pequenas, giratórias. Portas de elevador. Portas de vidro, através da qual pudesse enxergar muito longe. Todas abertas. Um mundo inteiro feito só de saídas. Poderia ter vivido uma vida realmente sua. As lágrimas tomaram o rosto da senhora G e ela suspirou baixinho, mesmo com a garganta cheia de palavras furiosas precisando explodir em gritos muito altos. Chorar era tudo que lhe era permitido fazer.
As luzes caem em resistência.
As últimas luzes caíram em resistência no exato momento em que a Senhora G lamentou que ele tivesse escrito um final assim. Tão idiota.
Maio de 2022