Dramaturgias do Tempo

Mãos Trêmulas

1.

Um coro de mãos. Movem-se. Dessincronizam-se. Costuram. Cozinham. Um corpo entra. Outro corpo. Estão distantes. São vistos de longe. A Velha caminha. O Velho caminha. Sabem um do outro, mas não se olham. O tempo entra em suspensão.

Não há pressa. A respiração é lenta. Veias expostas. Rios antigos. Sulcos na pele. Há um profundo presente em ato. A Velha caminha. O Velho caminha. Se aproximam. Quase não há futuro. Só há o que se vê. A Velha caminha. O Velho caminha. Estão mais próximos. Ela te vê, ele também. A Velha vê a todos, o Velho também.

2.

VELHADança comigo?

VELHO: O quê?

VELHA: Alcione?

VELHO: Os melhores encontros começam sempre com uma entrega e Alcione tocando.

3.

Narrativa simultânea

VELHA: Entrego as minhas mãos pra você. Uma voz bem antiga me disse em sopro que entregar as mãos a uma pessoa é oferecer o coração dos tempos inventados em vida. Quando a gente entrega as mãos para uma pessoa é porque desistiu de tudo e já não quer seguir, ou porque quer construir junto com as mãos dessa pessoa um futuro melhor. Toma. Segura em suas mãos as minhas memórias. Sessenta anos trabalhando com costura e o produtor disse que já não servem pra mais nada. Mãos de costureira têm que ser mais firmes que mãos de cirurgião.

Narrativa simultânea

VELHO: Entrego as minhas mãos pra você. Uma voz bem antiga me disse em sopro que entregar as mãos a uma pessoa é oferecer o coração dos tempos inventados em vida. Quando a gente entrega as mãos para uma pessoa é porque desistiu de tudo e já não quer seguir, ou porque quer construir junto com as mãos dessa pessoa um futuro melhor. Toma. Segura em suas mãos as minhas memórias. Sessenta anos trabalhando na cozinha. Mãos de quem cozinha têm que ser mais firmes que mãos de cirurgião.

4.

VELHO: Me entrega? 

VELHA: Tenho aflição 

VELHO: Me entrega? 

VELHA: Pra quê?

VELHO: Leio mãos 

VELHA: Não tem cara 

VELHO: De quê?

VELHA: De quem lê mão. Velho lento. 

VELHO: E quem lê mão tem cara de quê? 

VELHA: Eu que vou saber?

VELHO: Mas você disse que eu não tenho cara de quem lê mão.

VELHA: Disse.

VELHO: Então você deve saber quem tem cara de quem lê mão.

VELHA: Isso foi você quem disse. Não coloca palavra na minha boca, não.

VELHO: Me entrega? 

VELHA: Cuida bem delas? Entrega as mãos para o Velho. 

VELHO: Bonitas.

VELHA: Já foram firmes.

VELHO: Gosto como tá. Tá bom sempre como tá.

VELHA: A história dessas mãos é antiga. A mão nunca vem só, tem sempre as que vieram antes, abrindo caminho pras mãos que tão pra vir.

VELHO: Uma mão lava a outra e as duas a cara.

VELHA: Velho tonto.

Longo silêncio.

VELHA: E aí? O que minhas mãos te dizem?

VELHO: Dançam.

OS DOIS (cantam Alcione e dançam): Faz uma loucura por mim. Sai gritando por aí bebendo e chora. Toma um porre, picha um muro que me adora. Faz uma loucura por mim. Fica até de madrugada perde a hora. Sai comigo pra gandaia noite afora

VELHA: Agora faz o que quiser com essas mãos.

O Velho brinca com as mãos da Velha.

VELHA: Velho tarado. Só te peço uma coisa?

VELHO: Pede.

VELHA: Me faz gozar?

Amam-se. Silêncio profundo. Velha e Velho brincam com as mãos.

5.

VELHA: Gozar é bom. Me sinto sendo mar 

(…)

VELHO: Sororoca não é de rio, é peixe de mar.

VELHA: Tá bom. Desculpa, aí, dono do mar que sabe de tudo.

VELHO: Sei tudo, não. Tenho tanto pra aprender contigo.

VELHA: Velho respondão (…)

VELHO: Respondi sim.

VELHA: Você tá louco? Trabalhar de porteiro com mais de oitenta?

VELHO: Por que não? Agora tu também vai dizer que sou imprestável?

VELHA: Por que um ser humano com mais de oitenta anos é obrigado a trabalhar pra se sustentar?

(…)

VELHA: Te sustento. Muda pra minha casa. Tem vergonha, não.

VELHO: A gente divide tudo

VELHA: Cada um dá o que tem.

VELHO: Te conheço há tão pouco tempo.

VELHA: Olha bem pra mim? Aprendi a contar o tempo do jeito que eu quiser. Vem. Tu conhece mais quem nessa vida?

VELHO: Tô só. 

(…)

VELHA: Só eu e tu na casa inteira

VELHO: Casão. Que roupa linda. Tu veste a parede com roupa, é?

VELHA: Velho burro. É um figurino de teatro. Coloquei na parede, pra ficar com a casa chique.

VELHO: É de atriz famosa?

VELHA: Tu não conhece nada de teatro, que adianta falar.

VELHO: Tem certeza que vai querer esse velho tonto morando contigo?

VELHA: Fecha a porta. 

(…)

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

6.

VELHA: Eu costuro pra teatro há mais de sessenta anos. Mais de sessenta anos. Já fiz peça triste, peça de comédia, de drama, tragicomédia, tragicomédia dramática musical. Até ópera. Senti que cada vez menos iam me chamando. Reclamavam que eu demorava, que o corte não ficava reto como antes e que os pontos ficavam soltando. Eu tinha acabado de entregar uma encomenda de 12 saias plissadas, 8 bufantes e 7 drapeadas, acho que eram para um musical. De repente o produtor começa a gritar na porta de casa, atrapalhando a música da Alcione. Sempre trabalho ouvindo ela. Eu vou até a porta, ele está com todas as saias que eu entreguei em sacolas, me empurra, entra na minha casa. Ele anda de um lado para o outro, fumando e gritando. Ele disse assim: “Eu apostei meu emprego te chamando. Olha pra essas saias. Tudo torta, cheia de falha, olha essa bufante. Amiga, essa produção vai estrear no Teatro Municipal, entende o que é isso? Você já foi no Teatro Municipal? Sabe o que é o Teatro Municipal?”. Minha mão começou a tremer mais, eu coloquei elas nas minhas costas, não queria que ele visse. Eu expliquei que podia refazer, que em sessenta anos, nunca ninguém tinha reclamado. Ele gritou mais alto. Dizendo que não tinha jeito e que ele não ia pagar o restante, pra poder procurar uma costureira melhor e mais rápida que eu. Eu fiquei tonta. Tudo girou. O pouco que ele adiantou foi para os tecidos. Eu ainda tinha conseguido pegar fiado uma parte. Eu precisava do resto pra quitar a dívida do aluguel, a proprietária disse que logo ia me notificar pra despejo. Pedi um copo de água pra ele. Tive ânsia de vômito. Vomitei no carpete verde que tenho. Indiquei com a minha mão, tentando pedir pra ele pegar um copo de água. Minhas mãos estavam tremendo mais ainda. Ele se assustou com a minha mão. Deve ter achado que eu estava tendo um treco. Pedi água de novo. Eu sempre tive orgulho das minhas mãos e naquele momento tive muita vergonha delas. Ele ficou sem saber o que fazer. O ar começou a faltar. Ele percebeu. Ele disse qualquer coisa que não entendi. Eu disse me agarrando bem forte no fio de ar que tava dentro de mim. Tô pra ser despejada. Ele foi embora. Eu fiquei sozinha. O ar faltando. Não lembro o que aconteceu. Só sei que acordei horas depois e eu estava no chão. Um cheiro azedo no carpete. Olho para as minhas mãos. Elas tremem. Eu choro. A Alcione continua tocando. Ela entende bem o que passo. Conheci meu Velho nesse mesmo dia.

7.

VELHO: Quem é?

VELHA: É minha irmã. Em 1964.

VELHO: Lembra você.

VELHA: Morreu nesse ano, 1964. A gente se dava super bem. Morreu no parto da terceira filha.

VELHO: E esse?

VELHA: Meu primo. Eu tentei contato com ele por anos, sei que morou na rua por muito tempo, dizem que de 1984 até 2018, quando encontraram ele morto de frio em frente a uma daquelas lojas de departamento.

VELHO: E essa criança aqui?

VELHA: Não é criança não, é minha avó.

VELHO: Jura? Com esse tamanho?

VELHA: Ela tinha 1.52. Subia num banquinho pra lavar a louça.

VELHO: Se foi?

VELHA: Essa aí não lembro o ano. Eu acho que eu nem tinha nascido. Sei que foi no dia 22 de abril. Sei porque meu pai dizia, minha mãe se foi no dia que roubaram o Brasil.

VELHO: Sobrou ninguém?

VELHA: Prima, 1968. Irmão, 2013.

VELHO: Memória boa.

VELHA: Os outros é que dizem que tô mal da cabeça e das mãos.

VELHO: Tudo invejoso.

VELHA: Meu tio, 1969, assassinado pelo estado brasileiro.

VELHO: Muita morte.

VELHA: E tu? Sozinho no mundo?

VELHO: Tudo morto. Sozinho que nem Baiacu.

VELHA: Também tô só.

8.

VELHO: Meu último trabalho foi num restaurante nos Jardins. Eles já tavam reclamando que minha mão tava mole demais, devagar demais pra pressão da cozinha. Eles foram me tirando das funções que eu mais gostava, no último dia que trabalhei, restaurante lotado, dois ajudantes tinham faltado, me colocaram pra montar os pratos, eu tava até que fazendo rápido e no meio da coisa toda me deu uma fraqueza nas mãos. Tava segurando dois pratos já prontinhos, um de magret de pato e outro de carré de cordeiro, minhas mãos ficaram tão fracas que deixei os dois pratos despencarem no chão. O chef ficou louco da vida, começou a gritar comigo, o suor da minha testa pingando, ele gritando, os colegas de trabalho meio que rindo de mim e eu falava baixinho: Eu posso explicar. Eu posso explicar. Eu segurei a faca com as minhas mãos tremendo e muita coisa girou na minha cabeça. O chef gritando, os colegas rindo e o suor pingando. Eu segurando a faca… e de repente… eu senti um líquido quente escorrer da minha perna, coloquei a mão nas calças e estava toda molhada. Eu me mijei inteiro. A cozinha inteira caiu na gargalhada.chef me pegou pelo braço e pediu para eu parar de atrapalhar o serviço que a casa tava cheia e acho que naquele dia tinha um deputado federal almoçando. Só sei que eu fui pro banheiro, a mão fraca que não conseguia tirar a calça, tentei e cai no chão. Eu fiquei no banheiro tentando pedir ajuda, mas acho que ninguém podia naquela hora. Eu me levantei bem devagar, peguei minhas coisas e fui embora pra casa mijado. Foram duas conduções com cheiro de urina. Eu encontrei minha Velha exatamente nesse dia.

9.

VELHA: Gosto do teu cheiro

VELHO: Pele morta

VELHA: Velho tonto

VELHO: Brincadeira, é de peixe. O cheiro gruda, desculpa.

VELHA: Adoro seu cheiro de peixe. Mexe.

VELHO: Sororoca.

VELHA: Gostei do nome do peixe. Você tá com cheiro de Sororoca. Tá aí, vou te chamar de Sororoca.

10.

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

11.

VELHO: Chovia um tanto quando minha mãe bateu na porta e tentou segurar meu pai. Sempre chove na beira do morro. Morava no pé da serra. O nome do bairro era Cota… Cota… era algum número. Era na beira da estrada. Na verdade, meu pai chegou por lá pra construir o finalzinho da Anchieta. Mil novecentos e quarenta e pouco, conheceu minha mãe na beira de estrada. Ela nasceu em Ilha Bela e fugiu de casa, nunca quis falar. Minha mãe foi de Ilha Bela até Cubatão a pé sozinha. Sei lá como conseguiu fazer isso. Nasci logo depois. Meu pai… bom, nesse dia chovia o mundo na serra. Ele me trancou em casa e começou a me bater. Eu não sabia o porquê. Sei que me urinei todo enquanto apanhava. Minha mãe batia na porta cada vez mais forte, ela começou a chutar a porta até quebrar. Eu saí correndo de casa todo urinado. Eu corria e meu pai gritando na beira da estrada: vem aqui, que arranco teus dedos, um por um. Consegui me esconder no meio do mato. De madrugada eu ia pra casa, minha mãe me dava comida e umas roupas e depois eu voltava pro mato. Um tempo passou assim, até que um dia fui de madrugada ver minha mãe e ela não apareceu. Fiquei uns dias indo de madrugada, via meu pai, meus irmãos, mas minha mãe, não. Eu entrava na madrugada pra roubar comida na minha própria casa. Até que uma dessas madrugadas olhei pras minhas mãos, me vi faminto, deitado no chão, comendo escondido um pedaço de ovo roubado que tava por ali e pensei: Tô virando um rato. Não sou rato, não. Sou gente. Foi olhando pra minhas mãos que tive certeza de que eu não era um rato. E me vim embora pra São Paulo. Queria ter onde morar.

12.

VELHO: Comprei Sororoca pra gente. Quero festejar

VELHA: Peixe caro?

VELHO: Dei meu jeito. Comprei pra tu.

VELHA: Nossa primeira noite morando juntos.

VELHO: Nosso primeiro ano morando juntos.

VELHA: Nossos primeiros dez anos morando juntos.

VELHO: O banquete é por minha conta.

13.

VELHA: Vem respeitosamente, à presença de V. Sa., na qualidade de locador do imóvel, notificar-lhe, para que, no prazo de 30 dias, efetue a desocupação voluntária do imóvel, nos termos da Lei nº 8.245/91, tendo em vista o término do contrato por inadimplemento. Fica, portanto, ciente V. Sa. que caso não ocorra a desocupação voluntária dentro do prazo estabelecido, será ajuizada a competente ação judicial visando a retomada coercitiva do imóvel, havendo incidência de custas e honorários advocatícios. Sem mais, atenciosamente.

14.

VELHO: A gente coloca na brasa. Tempera com sal, limão…

VELHA: Sabe o que gosto de tu? Cada dia tu tá com um cheiro de peixe diferente.
Corvina, Bicuda, Pargo, Prejereba… Namorado. Você me dá fome de novo.

VELHO: … coentro e pimenta. Só.

VELHA: Só? Falta uma coisa… (canta Alcione) Adoro sua mão atrevida. Seu toque, seu simples olhar. Já me deixa despida. Mas saiba que eu não sou boba. Debaixo da pele de gata. Eu escondo uma loba

VELHO: Me arrepia.

VELHA: Deixa eu ver.

VELHO: Muito ou pouco coentro?

VELHA: Taca coentro. 

VELHO: Tem fósforo? 

VELHA: Ali.

VELHO (com o fósforo aceso na mão que treme muito): Olha como treme.

VELHA: Deixa ver qual treme mais (também com o fósforo na mão).

VELHO: Acho que tô ganhando. 

VELHA: Sei não. Olha a minha. 

VELHO: Disputa boa.

VELHA: É bom tremer.

VELHO: Espalha melhor o tempero.

VELHA: Masturba melhor também

VELHO: E os caras me mandaram embora do restaurante por causa das minhas mãos. Olha essa Sororoca, a mais bem temperada.

VELHA: Essa faca, tu roubou do restaurante?

VELHO: Peguei de fundo de garantia

VELHA: Dá vontade de voltar lá no restaurante, num domingo de dia das mães, restaurante lotado e enfiar essa faca bem no bucho do dono.

VELHO: Melhor, eu rendia o dono com a faca no pescoço dele, e você ia roubando todo mundo. Ia pegando carteira, celular, relógio, colar chique.

VELHA: Aí eu ia gritando: não brinca com meu velho, não, a mão dele treme e pode escapar bem na jugular do dono do restau… qual o nome dele?

VELHO: Seu Maneco. Aí eu chegava pro mocinho do bar e falava. Toca Alcione. Mais alto. Mais alto. E enquanto eu ia pegando os badulaques de todo mundo, de vez em quando eu olhava de rabo de olho pra você. Só na cumplicidade do roubo, só na cumplicidade do amor. E com a faca no pescoço do dono do restaurante eu dizia: Eu não sou um rato. Olha pra minha mão. Olha pra ela. Eu sou gente. Eu tenho onde morar.

VELHA: Tu me empresta tua faca?

VELHO: Quer aprontar o quê? Sabe mexer nela?

VELHA: Tu tá achando que só tu sabe as coisas é? Tá achando que essa mulher aqui é o que? Te liga, velho. Já derrubei muito otário metido a besta.

VELHO: É afiada demais. Pega e faz o que quiser

Entrega a faca.

15.

VELHA: Eu sonhei que tinha morrido deitada na cama. Foi bom. Era meio que um alívio. Era tudo silêncio. Fazia tempo que eu não sentia um silêncio dentro de mim, era sempre muito barulho. Pensei: Bom, agora vou ver aquela gentalhada toda que morreu antes de mim, minha filha, minha mãe, minha amada. Nada. Não tinha nada. Mas aí o tempo foi passando e eu vi meu corpo lá, parado na cama. Eu tava completamente sozinha. Tentei me mexer, nada. Não conseguia me mexer. O silêncio começou a me incomodar, eu comecei a gritar pelo nome da minha amada, nada. Da minha filha, nada. Senti que eu tava fossilizando na cama. De repente, um barulho enorme na porta, arrombaram. Dois homens, dois jovens, eles começaram a falar: Caralho, que fedor dos infernos. Eles tapavam o nariz, um deles vomitou perto do meu pé. Eu tentei gritar, eu não me movia, eu tava endurecida e gelada. Um dos homens, cobrindo o nariz, falou: acho que ela deve estar morta aí faz uns dois anos. Um deles meio que riu e disse: Que merda, deve ter sido uma velha bem escrota, pra ninguém reclamar o corpo dela. Puta fedor. Puta fedor. Eu comecei a chorar. Senti minha mão tremer. Os dois homens não viram, continuaram fazendo o que tinham que fazer. Mas a minha mão tava tremendo. Já não sabia se tava viva, mas minha mão continuava a tremer.

16.

VELHA: Deixa te falar uma coisa. O proprietário pediu a casa.

VELHO: Como assim? Do nada?

VELHA: Faz tempo, já. Eu não consegui te falar. Não tô dando conta sozinha.

VELHO: Falei que ia ser porteiro de prédio, era pouco, mas segurava.

VELHA: Tá louco, porra? Oitenta anos nas costas e vai ficar carregando compra de mercado e abrindo porta pros outros.

VELHO: Se é o que é, é o que é. Como vamos resolver?

A Velha tira da parede o figurino que estava pendurado.

17.

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

18.

VELHA: Eu tinha uns quinze anos, quando comecei a escapar de casa e ir pra praia. A estrada ajudou a gente a ver o mar. Meu tio morava em Santos. Era estivador. Que sorriso. Era aberto, engolia o mundo de felicidade. Ia eu e uns três irmãos pra praia. Meninada de bochecha lisa e pé bom pra andar. A praia chamava… Zé Menino. Nome bonito de praia, Zé Menino. Meu tio conhecia gente de todo tipo, mexia com teatro e sindicato. Ele teve que voltar pra Perus em São Paulo, se esconder que tavam perseguindo ele. Eu o via de vez em quando, ele que me apresentou para o povo do teatro. Meu tio ajudava os artistas, não sei muito bem no quê, mas ele falou se eu não queria chulear umas calças de figurino pra uma peça de teatro que depois eu soube que invadiram e bateram em todos os artistas, acho que foi em 68. Essas mãos começaram assim… chuleando calça de ator que apanhava de milico. E meu tio levava as roupas do teatro sempre pra eu costurar em casa. Meu pai não gostava muito não, mas a gente tinha perdido a minha mãe e com oito em casa, bem que minhas mãos salvavam o mês costurando gancho traseiro de figurino de gente que vivia no palco. Uma madrugada, acordei com barulho no portão, vi meu pai e meu tio. Eles nunca se gostaram muito, meu pai tava trabalhando com o filho do dono da pedreira, não gostava de greve, essas “vagabundagem” que meu tio se metia. Mas nessa madrugada vi os dois se abraçarem pela primeira vez. Senti que era uma despedida. Tava escuro, mas pela luz do poste eu via a cara do meu tio. Fiquei procurando sorriso, mas só vi sangue escorrendo. E o sorriso que engolia o mundo, arrancaram dente a dente, ele tava banguelinha, mas não tava chorando não. Tava com pressa. Meu tio tava com um pacote na mão e pediu pra entregar pra mim, mas ele não queria me acordar, não devia querer que eu visse o rosto dele sem o sorriso do mundo. Meu pai entrou em casa, me viu olhando pela janela, eu gritei que queria ver meu tio, ele me acalmou e disse que ele ia ter que viajar mas já voltava. Me entregou o pacote e me tranquei no banheiro pra ver. Tinha uma carta junto do pacote, dizia assim: Esse figurino foi da Ruth de Souza no Imperador Jones. Ele é teu agora.

Dança com o figurino.

19.

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

20.

VELHA: Fica quieto, Sororoca. Tu não quer ficar bonito?

VELHO: Tá me espetando.

VELHA: Mas é reclamão.

VELHO: Só não me arranca pedaço.

VELHA: Tu não para de se mexer. Nunca fez roupa sob encomenda? Olha como tu vai ficar com a roupa que tô te fazendo?

Mostra uma foto do Paulo Autran

VELHO: Só um pouco mais velho.

VELHA: Pra mim tá no ponto. Para de se mexer. Minha mão treme, mas ainda tem jeito.

VELHO: E esse tecido todo, é caro, não?

VELHA: Anos trabalhando com teatro, né, meu velho. Muita gente me dava as coisas. Tecido caro, bordados, peças de roupas. Sempre fui muito querida no meio. Calça pronta. Veste o resto.

Ele veste.

VELHA: Meu Paulo Autran. Pera aí. Falta um ajuste na calça.

VELHO: Tu que fazia o figurino pra ele?

VELHA: Também.

VELHO: Tu é importante, né?

VELHA: Léa Garcia, Cleyde Yáconis, Lizette Negreiros, Etty Fraser, Zezé Motta, tudo já vestiu figurino que costurei. Nunca vou esquecer da Zezé Motta, tava novinha que nem eu. Era a estreia dela e praticamente a minha também no teatro profissional. Eu tava com tanto medo que meu trabalho não ficasse bonito, e acho que ela também. Qual o nome mesmo da peça? Roda Viva. Foi em sessenta e muito, sei direito, não. Eu tinha acabado de fazer o último ajuste do figurino dela, ela se olhou no espelho e se emocionou. Eu fui pegar um copo de água pra ela. A Zezé segurou minhas mãos e as beijou. Naquele beijo, eu senti… senti que as minhas mãos não estavam sozinhas (Pausa). Para de se mexer, tô acabando.

VELHO: Dessa vez não fiz nada, não vem, não.

VELHA: Agora, sim. Tá lindo, que nem Paulo Autran. Deixa eu tirar uma foto, pra colocar no meu álbum.

Tira uma foto.

VELHO: Tu tem foto desse povo do teatro?

A Velha coloca a foto dele junto com uma infinidade de fotos de figurinos de teatro.

VELHO: Oh? Fiquei famoso. Junto com esses artistas todos.

Veem as fotos.

VELHO: Você que fez essa rouparada toda?

VELHA: Uma das que fez. Sempre é um monte de gente costurando. Tem a pessoa que tem a ideia e um monte de gente pega na máquina e sai fazendo. Mas toda vez que tinha um bordado difícil pra fazer, ou um corte mais complicado, quem esse povo chamava?

VELHO: Tu.

Silêncio.

VELHO: E tu ia assistir teatro?

VELHA: Às vezes, mas só pra ficar olhando para os figurinos que eu tinha costurado. Pra ver se tinha alguma falha. Tirando isso, nunca. Teatro é caro, dá pra comprar mistura pra um mês.

VELHO: E o Paulo Autran vai acompanhar quem?

VELHA: Só um instante

Sai e volta vestida com o figurino de Ruth de Souza no espetáculo Imperador Jones.

VELHO: Nossa.

VELHA: Prazer, Ruth de Souza.

VELHO: E o que Paulo Autran e Ruth de Souza vão fazer, vamos repassar o plano?

21.

VELHO: Meu avô mais meu pai foram pra Cubatão direto pra fazer a estrada. A única memória que tenho do meu avô foi quando ele já velhinho, não tinha nem mais força pra andar direito, trouxe num papelão embrulhado uma calça e camisa nova. Desembrulhei o pacote com sorriso na boca. Eu nunca tinha ganhado roupa, era sempre doado de alguém. Ele me vestiu, pegou uma bacia de água no poço, passou no meu cabelo, segurou meu queixo e começou a me pentear. Eu perguntava pra onde a gente ia e ele ria. Ria com toda a felicidade do mundo. Segurei na mão dele e seguimos rua de barro abaixo até uma parte da estrada Anchieta que tava pronta. Ele ficou olhando pra estrada por um tempão. Ele olhou pra mim, escorreu uma lágrima e disse: minhas mãos que fizeram. Ele começou a dizer como se fazia cimento e como ele tinha mão boa pra isso. Eu não entendia muito bem o que era estrada, pra mim, era meu avô feliz me contando as coisas do mundo. Ele disse assim: mão boa é a que constrói estrada. Mão boa é a que junta as coisas. Faz com que tua mão junte coisa que preste. Toda vez que cozinhava, eu pensava isso… mão boa é a que junta as coisas.

22.

VELHA: A gente entra pela porta da frente do Teatro Municipal, aposto que todo mundo vai olhar pra gente. Senta na poltrona marcada do ingresso. Será que ele vai me reconhecer?.

VELHO: Já faz tempo, não sei, não.

VELHA: Não importa. Ele vai saber quando eu subir no palco.

VELHO: A gente espera a peça começar, quando tiver no meio, na parte mais silenciosa da peça.

VELHA: Essas peças nunca têm silêncio, um inferno, sempre alguém cantando uma dor de amor. Espera eu apertar a sua mão três vezes. Eu que vou dar o sinal, eles chamam “a deixa”.

VELHO: Quando você apertar a minha mão três vezes, eu levanto da poltrona, dou espaço pra você passar, seguro na sua mão e vamos em direção ao palco sem falar nada. Subimos no palco. Eu peço silêncio para o elenco. Falo para todo mundo filmar e colocar no…

VELHA: Instagram.

23.

VELHA (vestida com o figurino de Ruth de Souza): É um espanto que uma mulher como eu suba ao palco e atrapalhe a peça de vocês? Olhem para as minhas mãos? Tremem muito? Estão frias? Elas fazem figurinos para teatro faz sessenta anos. E nunca me convidaram pra subir nesse palco. Como não preciso de licença pra nada na vida. Vim aqui, e vim de rainha. O produtor dessa peça está me devendo dinheiro, disse que não ia me pagar o restante da grana, porque eu sou velha demais pra fazer os figurinos dessa peça e que eu sou imprestável. Tira a mão de mim. (Puxa uma faca para o segurança). Não se atreva a tocar numa rainha. O produtor dessa peça me deixou caída no chão. Faltando ar. Morrendo. Eu não morri. Tô aqui, Senhor Produtor. Eu vim pegar o meu dinheiro. Tô pra ser despejada. Eu e meu velho. Eu fiz o trabalho, perdi meu tempo. Eu só vim cobrar o que é meu. Cadê meu dinheiro? Cadê o que é meu? Tira sua mão imunda dessa rainha. Já disse que quem encostar a mão em mim eu furo o bucho. Aprendi com meu velho a furar barriga de baiacu.

24.

VELHO: Tu sentou do meu lado no ônibus. Eu pensei, uma mulher dessa do meu lado. Linda. E eu me escondendo porque tava urinado.

VELHA: Não tinha como esconder.

VELHO: E tu sentou do meu lado por quê?

VELHA: Porque tu tava cantando Alcione. Quer mais?

VELHO: Cajueiro velho vergado e sem folhas; Sem frutos, sem flores sem vida, afinal; Eu que te vi, florido e viçoso;

OS DOIS: Com frutas tão doces que não tinha igual; Não posso deixar de sentir uma tristeza; Pois vejo que o tempo tornou-te assim; Infelizmente também a certeza; Que ele fará o mesmo de mim.

VELHO: Já não lembro de mim sem você. Faz quanto tempo que a gente se conheceu?

VELHA: E faz diferença? Tu tá medindo tempo agora é? É relógio?

Dançam Alcione.

VELHO: Num faz nem uma semana.

VELHA: Num faz nem um ano. 

VELHO: Num faz nem 10 anos. 

VELHA: Num faz nem uma vida. 

VELHO: Tem razão. Tanto faz.

VELHA: Eu te vi destruído no ônibus. Pensei em mim. Ouvi Alcione na tua voz. O produtor tinha saído de casa naquela manhã, eu tava indo pedir para o dono do armarinho pra segurar mais uns dias que eu ia pagar, em 60 anos nunca faltei com ele. Tava quase chorando de novo, num gosto não. Aí vi você olhando as mãos e aumentou o tom de voz, cantou Cajueiro Velho quase tão bonito quanto a Alcione.

Suas mãos tremendo começaram a dançar.

VELHO: Tu sentou do meu lado. Eu fiquei com receio que você sentisse o cheiro de urina. Me atraí por você. Eu tava cantando Cajueiro Velho e minhas mãos começaram a dançar sem eu nem mandar, foi tão bonito. Elas estavam vivas sem mim. Aí você sentou. Recuei minhas mãos. Aí você olhou pra mim com olhar mais terno que já senti. Você disse sim para as minhas mãos e elas voltaram a dançar no ônibus.

25.

VELHO: Sonhei com dois homens, dois jovens, eles começaram a bater na porta de casa, da sua casa. Eu não sabia se era a polícia pra despejar a gente, ou por conta do que fizemos no teatro. Eu tava deitado na cama. Um deles me viu e falou: Caralho, que fedor dos infernos. Eles tapavam o nariz, um deles vomitou perto do meu pé. Eu tentei gritar, eu não me movia, eu tava endurecido e gelado. Um dos homens, cobrindo o nariz, falou: acho que ele deve estar morto aí faz uns dois anos. Um deles meio que riu e disse: Que merda, deve ter sido um velho bem escroto, pra ninguém reclamar o corpo dele. Puta fedor. Puta fedor. Eu comecei a chorar. Senti minha mão tremer. Os dois homens não viram, continuaram fazendo o que tinham que fazer. Mas a minha mão tava tremendo. Já não sabia se tava vivo, mas minha mão continuava a tremer.

26.

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

VELHO: Deve ser a polícia, pela merda que a gente fez no teatro.

VELHA: A gente não, eu. 

(…)

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

VELHO: Deve ser o oficial de justiça pra despejar a gente?

27.

VELHO: Tão batendo na porta

VELHA: Deixa

VELHO: Vão arrombar.

VELHA: Deixa.

VELHO: Como assim? Não vou deixar

VELHA: Não faz o velho machão.

VELHO: A gente explica tudo.

VELHA: Não tem que explicar. Tu passou a vida toda dando explicação. Pelo menos nessa hora, não tem o que explicar.

VELHO: Eles vão despejar a gente?

VELHA: Já não sei o quanto isso importa.

VELHO: É a polícia? Foi pelo que a gente fez no teatro? Quem está aí? O que vocês querem?

VELHA: Aperta bem forte a minha mão.

28.

Aumentam os sons de batidas na porta. 

VELHA: Sororoca, me entrega suas mãos. 

VELHO: O que você vai fazer com elas? 

Aumentam os sons de batidas na porta.

VELHA: Quando a gente entrega as mãos para uma pessoa é porque desistiu de tudo e já não quer seguir, ou porque quer construir junto com as mãos dessa pessoa um futuro melhor.

29.

Sons de batida na porta. Coro de mãos dessincronizados. Costuram. Cozinham. Dançam. A Velha vê o público. O Velho também. Dançam Alcione. As mãos permanecem juntas.

Escuro final.