Primeiras Dramaturgias

Inês Viva/ Inês Morta

Aos Mortos mortos pela soberba dos Vivos dedico os quadros ordinários desse filme precário

 

Personagens

INÊS – caixa de um supermercado na cidade de Paraíso dos Perdões

MÃE DE INÊS – mãe de Inês e encarregada da mesa de cortes do abatedouro da cidade

JOSÉ PAIXÃO – antigo dono de um bar e amigo próximo de Inês

A VIZINHA – antiga faxineira do abatedouro

EUSÉBIO – dono do abatedouro

TONINHO E SALOMÃO – capangas de Eusébio

OS APOSTADORES – três apostadores de jogo do bicho

OS ENCARREGADOS – trabalhadores da mesa de cortes do abatedouro de Eusébio.

As cenas se passam entre o ano de 1986 e o presente, na cidade fictícia de Paraíso dos Perdões, interior de São Paulo. No lugar de flashback, nesse texto, usa-se o procedimento de CORTE, como os cortes da mesa de abate, como os cortes dos fotogramas do cinema, a partir do quais as cenas transitam entre diálogos e descrições de imagens.

nota 1, nota 2, nota 3

nota 1. As cenas são escritas sob a forma de quadros que podem, à escolha do encenador, reordená-los, como num jogo.

nota 2. Exceto o Epílogo, os textos escritos em forma de rubrica devem ser lidos pela personagem Vizinha, que nesse filme precário assume também a de montadora das cenas.

nota 3. “Veio sobre mim a mão do Senhor; e o Senhor me levou em espírito, e me pôs no meio de um vale que estava cheio de ossos, 2 e me fez andar ao redor deles; e eis que eram mui numerosos sobre a face do vale e estavam sequíssimos. 3 E me disse: Filho do homem, poderão viver estes ossos? E eu disse: Senhor Jeová, tu o sabes. 4 Então, me disse: Profetiza sobre estes ossos e dize-lhes: Ossos secos, ouvi a palavra do senhor. 5 Assim diz o Senhor Jeová a estes ossos: Eis que farei entrar em vós o espírito, e vivereis. 6 E porei nervos sobre vós, e farei crescer carne sobre vós, e sobre vós estenderei pele, e porei em vós o espírito, e vivereis, e sabereis que eu sou o senhor. .7 Então, profetizei como se me deu ordem; e houve um ruído, enquanto eu profetizava; e eis que se fez um rebuliço, e os ossos se juntaram, cada osso ao seu osso. 8 E olhei, e eis que vieram nervos sobre eles, e cresceu a carne, e estendeu-se a pele sobre eles por cima; mas não havia neles espírito. 9 E ele me disse: Profetiza ao espírito, profetiza, ó filho do homem, e dize ao espírito: Assim diz o Senhor Jeová: Vem dos quatro ventos, ó espírito, e assopra sobre estes mortos, para que vivam. 10 E profetizei como ele me deu ordem; então, o espírito entrou neles, e viveram e se puseram em pé, um exército grande em extremo. 11 Então, me disse: Filho do homem, estes ossos são toda a casa de Israel; eis que dizem: Os nossos ossos se secaram, e pereceu a nossa esperança; NÓS mesmos ESTAMOS CORTADOS.” (Livro de Ezequiel, 37, Antigo Testamento)

Briga de galos I

Jogo de bocha num bar localizado na zona rural da cidade de Paraíso dos Perdões, interior de São Paulo. Um homem chega numa picape anos 1980, é Eusébio, dono do abatedouro que emprega a maior parte da região. Ele interrompe o costumeiro jogo no bar de José Paixão. Seus empregados, Toninho e Salomão, descem da picape e tiram da carroceria dois galos com a cabeça envolta num tecido. Os canteiros de terra onde os dardos são lançados logo viram uma arena para os dois galos que disputam a própria vida, enervados por uma força desconhecida, até a morte.

Eusébio bebe aguardente e porta uma pistola. Os fregueses, em pé, olham com horror, mas também com alguma sedução, a briga dos galos. Quando os dois estão quase agonizando, Eusébio levanta da cadeira e atira para o céu, ordenando aos seus capangas que retirem os galos para a janta. O jogo de bocha volta a acontecer. Na terra batida onde correm os dardos, restam manchas de sangue, penas pairando pelo ar e um calor que amordaça todas as vozes ao entorno.

A fábula de uma sonâmbula

TRÊS MINUTOS À FRENTE DO FUTURO. Já é noite e Inês está sentada na saída do mercado onde trabalha como caixa, fumando lentamente um cigarro. Ela nos olha e começa a fabular o ano de 1996, quando tinha 15 anos.

INÊS:

Foi num quintal profundo, numa máquina insalubre onde se marca o valor dos pequenos objetos: motores de caminhões que chegam, troca de roupas dos funcionários, um sapato escorregando em meio ao vestiário. Funcionava nas proximidades do canavial, nos arredores da nossa casa, uma fábrica, com todas as facas de corte e as mesas de trabalho para receber qualquer animal que chegasse.

Nem todos os meus antepassados foram da linha de produção, houve uma avó que se negou a continuar a herança, também uma prima e eu, que um dia serei a antepassada de alguma outra mulher ou homem numa vida futura.

E haverá uma vida futura? Eu me pergunto: quem serão os herdeiros da vida futura?

Neste jardim onde cada Rosa se levanta quando outra morre, se fez uma lenda, espécie de história que era contada antes do sono, até o sono, abocanhar as criancinhas. Abocanhar a mim e aos meus irmãos, que não vejo há bastante tempo. Minha mãe contava que bem aqui, bem perto daqui, matavam-se os galos e também, depois de uma escassa estação, passaram a matar outros bichos.

Nossa fábula era a rinha.

“Era uma vez um galo que encontrou outro galo e os dois viveram fortes, muito fortes, correndo soltos no descampado do dia.” Minha mãe contava. E logo depois começava outra vez, “era uma vez um homem que encontrou outro homem e os dois viveram fortes, muito fortes, correndo mortos, no tempo baldio do dia.” Ou ainda, “era uma vez um homem, um poderoso homem, o mesmo homem da história anterior, o mesmo galo da história anterior a anterior, que vingou os assassinos da mulher amada arrancando com as mãos, seus corações. Desolado e ferido, o homem, o galo, colocou o corpo da amada em seu trono, coroou com uma planta selvagem a mulher e obrigou toda a cidade a beijar a mão daquele cadáver”. Era uma vez… minha mãe começava sempre mais uma vez, até ela mesma, como o homem, acertar o coração dos meus irmãos. Mas deixando o coração lá.

Deixando quieto o coração. Mãe sabe que só se arranca o coração do filho dando ao filho a chance da palavra.

Sem mistério algum, a mãe nos deu essa chance. E quando ela dava, perguntávamos: mas o que fez essa mulher? Por que eles mataram ela? A mãe sempre respondia, rindo numa brincadeira odiosa, “sobre essa mulher… dizer… não adianta mais, Inês é morta”. E depois olhava pra mim, arrancando meu coração e cantarolando, “você é outra Inês, você é minha filha, minha filhinha, a filha de outra Inês”.

Meu irmão mais novo se escondia debaixo da minha saia, puxando todo meu corpo pra baixo, para que ele sentasse no meu colo. O outro irmão comia enquanto escutava a voz da mãe embalar nosso sono. No meio disso, eu mesma, sentindo o corpo quente do pequeno no colo e o respiro do outro, ao meu lado, fechava os olhos para escutar a história vinda dos lábios da mãe.

A palavra da mãe entra dentro da gente. Quando ela contava aquela história, na cabeça era possível até ouvir o som das coisas contadas, como assovio de homem bom, como o amor da mulher triste, como tiros a quilômetros de distância, como fogos de artifício no céu, sem que houvesse isso perto da gente. Foram alguns anos nessa rotina.

A mãe misturava os acontecimentos do dia com a imagem daquele homem que coroou a mulher morta. Foram alguns meses nessa história. Acho que ela gostava do romance impossível. Ou de contar como uma bala saída de um revólver inventado pode ser menos inteligente que a palavra saída da boca da mãe. Ela se envaidecia disso. Talvez a palavra dela fosse mais ágil mesmo, fico pensando, mas diante da bala real, completamente tola, duramente insuficiente. Foram alguns meses nessa história, eram tantos tiros contados pela mãe que na nossa cabeça ficava ecoando sons longínquos de estouro, como grandes balões em festa de criança.

No início, minha mãe brincava. Ela contava e tapava nossos ouvidos para que a gente não ouvisse tão fundo os tiros da própria história que ela inventava. Depois, quando ela mesma saía para trabalhar, eu passei a tapar os ouvidos dos meus irmãos enquanto tentava contar a história. Do meu jeito. Mas eu ainda era filha e não sabia acertar o coração dos meninos com a palavra. Tudo que eu falava era mais um soco. Um pontapé sem coragem. E isso poderia machucar fundo. Eu não queria machucar os dois.

Um dia, um dia sem História, coloquei os meninos pra dormir e saí andar na grande noite. Longe de casa, esperei nossa mãe. Fiquei esperando, sentada, ouvindo música num discman que nosso pai esquecera em casa, até pegar no sono onde tava mesmo e acordar um pouco antes do sol nascer. Três minutos à frente do futuro, sobressaltada, sai correndo para casa aprontar os irmãos, acordá-los, antes que a mãe chegasse do turno. Três minutos à frente do futuro, naquele dia eu quase cheguei, mas a mãe já não estava lá, nem os irmãos. Na casa, meio aberta, algumas peças de roupas jogadas no chão, no travesseiro dos meninos a marca de alguém que há pouco dormira ali e pelo chão, pequenos respingos vermelhos, como tinta, como tinta de fruta, de coisa viva.

Esperei a mãe voltar. Fiquei esperando por muitos anos. Contando pra mim mesma, com as mãos nos ouvidos, aquela história de amor terrível que eu mesma não conseguia contar pros meus irmãos. Eu escutava tão alto dentro de mim os tiros da história que, ao longo desses anos, nunca mais consegui dormir… ou se durmo é num pesadelo, cansada de tanta coragem, que continuo a trafegar.

Meu jardim é um vale de ossos

PRESENTE. 15 ANOS DEPOIS. Em cena está Inês num quadrado de concreto com ramagens que crescem por todos os lados. Há uma cadeira na cena e alguns instrumentos de corte, ferragens oxidadas, pás, enxadas, rosas secas.

INÊS:

Numa quarta-feira de cinzas, acordei bem cedo para os afazeres da casa, o dia estava um tanto chuvoso e assim que terminei de dobrar as roupas e assistir o programa da manhã, resolvi remexer a terra no quintal.

Havia plantado algumas flores, mas o quadrado mesmo em que eu me encontrava era puro matagal, capim, grama, ervas-daninhas por todo canto. Também galhos secos da amoreira recém podada e entulho que os pedreiros deixaram da última reforma.

Estar só pode ser um ponto de partida para amaldiçoar qualquer coisa que queira crescer dentro e fora de nós. Por isso quando estou só, tento rezar para que deus afaste de mim a minha incompreensão diante de tudo. Gostaria de não transformar minha vida num monstro indestrutível, mas algumas condições nos colocam à prova, fazem aumentar o abraço da besta vingando em nós.

Uma enxadada e a terra voou para o lado, mais outra enxadada e outro punhado se formava mais a frente, outra a mais e um monte completava outro.

Foi golpeando a terra que eu cheguei ao poço oculto, uma cova rudimentar, um buraco familiar. A coisa tinha cheiro ainda, entre ferro oxidado e madeira molhada. Eu vi de relance, no meio da frouxidão daquela terra, uma porção esbranquiçada. Quanto mais eu avançava no meu furo, mais aqueles pedaços iam se multiplicando, ora estilhaçados, ora intactos, sem forma definida, como um exército de fantasmas.

Comecei a puxar tudo aquilo com a mão. Se eu conseguisse uma foto de mim naquele instante, poderia mostrar cada risco sangrando na palma da minha mão esquerda, e depois na mão direita, a casca grossa e vermelha se formando de exaustão. Eu fui tão fundo que cheguei até a superfície de um pequeno objeto e ela ainda espelhava como uma arma polida revela ao assassino seu próprio rosto. Era um pequeno isqueiro de prata. Na base, em letras pequenas, estava gravado o nome da minha mãe.

Consegui avançar mais alguns centímetros de terra, mais abaixo a terra vermelha ganhava outra cor, se misturava a uma coisa rosa, esbranquiçada, ressecada. Eu já havia reunido muitos pedaços ao meu redor. O cheiro me lembrava a estanque, uma mistura de carvão com asfalto. Por não incomodar, comecei a organizar aquelas peças ao meu redor. Quanto mais eu organizava, crescia em mim uma espécie de horror ainda não experimentado – tocava a minha nuca como um suor que brota repentinamente e escorre pelo corpo todo. Não havia muito mistério, afinal de contas, um quebra-cabeças não é um labirinto, é um jogo bastante estúpido a depender do que se está montando. E o que eu estava montando?

Fui até o começo da noite ordenando aqueles restos no quintal. Talvez uma pessoa mais sensata chamasse alguém mais sabido para cuidar desse jardim. Jardineiros da ciência, gente que entende de coisas fora da vidinha que eu levava. Acontece que esse não era o meu caso. Ouvi muita gente dizer que a casa da minha mãe era a casa de uma pessoa pela qual não valia a pena tentar. Isso gerava uma espécie confusa de raiva pela minha mãe: por que ela era aquilo que todos falavam? E por que todos falavam aquilo dela? Depois da última vez que a vi, há quinze anos atravessando o portão da nossa casa pra ir trabalhar, depois da última vez que soube dela, há quinze anos, no dia seguinte, “sua mãe comprou três passagens pra não sei onde e saiu quando o sol começou a nascer, numa palidez, numa palidez!”, me falou o guichê da rodoviária, aquela raiva ganhou um outro gosto, um gosto que nem sei dizer, mas que envenenou meu corpo inteiro, sem pesar.

Briga de galos II

PASSADO. NOITE. Final dos anos 1980. Sala de cortes do abatedouro. Os trabalhadores já deixaram o expediente. Passam pela portaria do local três camionetes, seguidas do carro de Eusébio, que chega acompanhado de Toninho e Salomão. A Mãe de Inês segue na sala de cortes. Descem do carro outros homens, todos armados.

EUSÉBIO:

Podem se chegar mais aqui, meus amigos, logo mais a gente começa… Salomão, vai ver se ela deixou tudo pronto lá dentro… Toninho, trouxe a mala?

Toninho tira da caminhonete três malas de couro.

TONINHO:

Tá tudo aqui, chefe…

EUSÉBIO:

Leva pra dentro e deixa em cima da mesa aberta… (para os convidados, bebendo uma pequena garrafa de aguardente) podemos já ir entrando na nossa salinha, hoje a noite vai ser longa! Toninho vai levar cês lá pra dentro…

CORTE. Em cena vemos uma luz branca acesa dentro do abatedouro. No centro há uma mesa, onde a Mãe de Inês organiza blocos de cartelas. Os convidados se acomodam, Toninho e Salomão trazem sacos com bichos vivos dentro.

EUSÉBIO:

(para Mãe de Inês) é bom saber que a preciosa do turno tá aqui nessa noite…

A Mãe de Inês continua a organizar a mesa. Eusébio se aproxima.

EUSÉBIO:

Se quiser pode brincar com a gente um pouquinho…

MÃE DE INÊS:

Eu já tô de saída, Eusébio.

Toninho se aproxima, ouvindo a conversa.

TONINHO:

É bom que ela fique pra aprender pros próximos, chefe…

EUSÉBIO:

É verdade, Toninho, vamos precisar de uma ajuda em outras dessas… (para Mãe de Inês) olha bem como funciona, é bom que tenha alguém pra auxiliar na limpeza depois…

MÃE DE INÊS:

Preciso ir, as crianças tão em casa me esperando.

TONINHO:

Eu pago um extra, não era a senhora que tava precisando tirar um dinheiro a mais? Eu pago bem e o serviço é SÓ OLHAR… e depois fechar tudo aqui. Simples, bem simples…

MÃE DE INÊS:

(olhando pras armas que foram colocadas em cima de mesa) não mexo com essas coisas, patrão. Eu preciso ir.

EUSÉBIO:

Pensa bem, o dinheiro é bom, ou melhor… (com malícia) hoje eu libero, mas na próxima, se não puder dobrar esse turninho “especial”, nem precisa voltar mais pra cá.

A Mãe de Inês pega sua mochila deixada no chão, afirma com a cabeça para Eusébio. Toninho segue ao lado do patrão, rindo, com escárnio, da situação. Salomão chega.

SALOMÃO:

Eles tão querendo começar chefe, podemos seguir?

EUSÉBIO:

Vai lá, Salô, coloca a bicharada fora do saco e dá o primeiro tiro.

CORTE. No meio da estrada de terra que liga o abatedouro à sua casa, a Mãe de Inês escuta uma série de tiros vindos de longe. Ela para a bicicleta e olha pra trás. CORTE. Sob sua cabeça passa rasante um pássaro noturno. CORTE.

Uma história da vizinha

PASSADO. FINAL DO DIA. Os trabalhadores começam a se preparar para deixar o abatedouro. Vemos pessoas tirando luvas de mãos que parecem tremer, esvaziando o espaço. Fica a Vizinha, para fazer a limpeza. Em cena também estão Toninho e Salomão. Toninho fuma um cigarro. Salomão sai pela saída de emergência, única passagem ainda aberta no espaço. A Vizinha faz uma primeira lavagem nas esteiras de carne. Retira restos de tripas e pequenos dejetos deixados pelo trabalho. Vai até o compartimento onde se guardam os produtos de limpeza, preparar o cloro para o chão. Quando acende a luz e se agacha para misturar os produtos, percebe a sombra de um homem às suas costas. A voz se aproxima dela, cantando a mesma música que vaza da rádio interna do abatedouro:

TONINHO:

“por que fazer chorar/ por que fazer sofrer/ um coração que só lhe quer/ o amor é lindo eu sei”…

Toninho se aproxima da Vizinha.

VIZINHA:

Que susto, Toninho!

TONINHO:

Achou que fosse o que, mulher? Seu Eusébio? Assombração?

VIZINHA:

Achei que fosse nada não, só tava sozinha e do nada aparece uma sombra, resmungando…

TONINHO:

Iiiiii, resmungando nada! Tô cantando, cantando pra você, “por que fazer sofrer/ um coração que só lhe quer”…

VIZINHA:

(se esquivando) já tô terminando aqui e logo deixo a chave na portaria… boa noite pra você, Toninho!

A Vizinha vira para atravessar a porta e seguir o trabalho. Toninho entra na sua frente.

VIZINHA:

Que brincadeira é essa, Toninho? deixa eu passar…

Toninho ri. Mais uma vez, a Vizinha vira para atravessar a porta e seguir seu trabalho.

VIZINHA:

Licença, Toninho. Se eu atrasar aqui, atrasa a entrada do outro pessoal. Por favor…

Toninho faz que dá espaço para ela passar pela porta, ainda rindo, com malícia. Ela tenta atravessar a porta e ele entra na sua frente novamente.

TONINHO:

(se aproximando da Vizinha) Ops! Desculpe, acabei entrando na sua frente, né, mulher? Pode passar agora…

VIZINHA:

Sai da frente, Toninho. Sai da frente!

Toninho a empurra no chão e faz com que ela fique de costas. Com o corpo apoiado nas prateleira.

TONINHO:

Cê me deixa confuso, sabia? Não é de hoje… mexe comigo de um jeito… e eu… com você?

A vizinha vai responder e ele interrompe, colocando a mão na sua boca.

TONINHO:

Psssss, psssss, não precisa responder nada não, mulher… só sente meu amor por você!

Toninho pressiona a Vizinha mais ainda, tirando o cinto da calça e volta a cantar muito alto. Canta até o momento que goza. Ela fica em pé, de costas, imobilizada. Ele se afasta, arrumando o cinto e tirando o maço de cigarros do bolso da calça.

TONINHO:

(num tom apaixonado se referindo ao seu gozo) mulher, essa aqui de agora você pode pôr na conta, pra mim! Anota aí! (bebe um gole de aguardente, rindo novamente) o trabalho dignifica o homem! Não é? Mas vou corrigir uma coisinha só antes de ir: o trabalho dignifica também a mulher! não é? Pode voltar pro seu trabalho agora, volta lá, vai… (com cinismo) e bom trabalho, minha amada! E põe na conta!

Ele se afasta, acende outro cigarro e deixa o compartimento. A Vizinha permanece de costas, espera ele sair e termina a limpeza do abatedouro, agora vazio, ouvindo muito alto o som do pano de chão quase rasgando a lona da esteira.

Uma festa da igreja

PRESENTE. MESMA NOITE QUE INÊS ENCONTRA OS OSSOS NO JARDIM.

No primeiro plano está a Vizinha. Ao redor acontece a festa em louvor ao Paraíso dos Perdões, romeiros circulam pela praça central onde está instalado um pequeno parque de diversões, como um velho circo, itinerante.

VIZINHA:

(melancólica, olhando de longe) hoje é o dia da nossa santíssima trindade, nossa cidade celebra mais uma festa comemorando sua fundação. Os fiéis se dirigem à igreja, em romaria, da zona rural à praça para suplicar o perdão, agradecer pela colheita, se divertir com o show que o dr.

Eusébio financia todo ano. Paraíso dos Perdões! Quem diria que você chegaria tão longe, Paraíso de Eusébio! Lembro do dia em que meu pai me levou para ver o circo pela primeira vez. Lembro do palhaço triste que alegrava a todos. Eu amei intensamente o palhaço triste… eu era uma menina! Lembro de ver o palhaço, escondido, beber aguardente antes de entrar no picadeiro. Não entendia, ao certo, o porquê de o palhaço precisar de álcool para fazer graça. Lembro da raiva que comecei a sentir do palhaço… saber que ele era bêbado alimentava em mim uma alegria medíocre. Eu era uma criança! O palhaço tinha atravessado uma fronteira que não podia ser atravessada. A da minha alegria. Ele inventou em mim um sentimento que carrego até hoje, o de uma alegria confusa. Nunca mais soube o que era uma alegria pura. Depois passei a sentir ódio do palhaço, ódio mesmo, queria chutar o palhaço, tirar a máscara do Dr. Zéquinha da Alegria, “o médico do riso!”, porque voltando com meu pai da festa vi o palhaço tirar sua máscara na estrada e acabei descobrindo que ele era nosso vizinho na época, o José Paixão. Nunca mais voltei com meu pai para ver o circo. Nunca mais acreditei na existência de um paraíso para nossos pecados. O paraíso se tornou um açoite ao perdão. Nunca mais consegui perdoar o palhaço. E no seu lugar, tive que aprender a perdoar os homens, o restante dos homens.

Inês chega de bicicleta, atordoada, no centro da cidade, onde está a pequena catedral de Paraíso dos Perdões. Muitos romeiros ascendem velas. José Paixão assiste à festividade, com distanciamento. Vemos também os capangas segurando a imagem de uma santa sem rosto, com uma coroa de onde escorre uma tinta vermelha, lembrando a sangue.

JOSÉ PAIXÃO:

(para Inês) Pensei que não ia ver a menina aqui hoje… perdeu a coroação esse ano, Inês!

Inês olha e escuta Paixão com uma mudez quase intransponível.

JOSÉ PAIXÃO:

Nesse ano o circo tem até carrossel! Eusébio fez os camaradas dele (se referindo a Salomão e Toninho) instalarem luzes e aquelas placas com a marca do abatedouro… ficou feio demais (caçoando), mas que deu vontade de brincar, ah deu! (rindo)

Inês fita o chão, suada, sua expressão é de alguém que está fora de si.

JOSÉ PAIXÃO:

Ei, Inês! Tá aí? O que tá acontecendo, minha filha? Tá com fome? Vou lá pegar uma comida pra você… prefere um espeto ou um crepe? Ah! Já sei! Um churros! Sua mãe sempre brigava com você pra comer primeiro o salgado e depois o doce e você sempre…

INÊS:

(interrompendo Paixão) Paixão!

JOSÉ PAIXÃO:

Desculpe, minha filha, não queria falar dela, mas essa festa lembra tanto sua m…

INÊS:

(baixo) Paixão, eu encontrei o isqueiro dela no jardim agora… você lembra daquele isqueiro? Que ela sempre abastecia? Com o nome que ela mesma gravou?

JOSÉ PAIXÃO: (nostálgico, quase bonachão)

Ah! Claro que lembro! Ela amava aquele isqueiro… mas você não tinha guardado? É uma raridade! Ela trouxe de alguma viagem, andava sempre com ele… mesmo depois que parou de fumar, quando tava grávida, ainda andava com ele pendurado no pescoço… (rindo) sua mãe, Inês! Sua m…

INÊS:

Você ouviu? Ouviu? No jardim! Enterrado no jardim! Enterrado!

JOSÉ PAIXÃO:

(ainda brincando) Aposto que foi uma brincadeira de você com seus irmãos, quando era pequena, e não lembra… devem ter colocado lá! Sua mãe contava muitas histórias com esse isqueiro, lembra daquela? “Era uma vez um isqueiro que era uma semente, a semente de um lindo roseiral, certa vez uma mulher plantou um isqueiro…”, sua mãe amava rosas e…

INÊS:

(interrompendo, baixo) e ossos, Paixão! Eu encontrei ossos no jardim!

JOSÉ PAIXÃO:

Inês, você deve estar muito cansada, pode ser resto de entulho… lembra daquela grande reforma que fizeram na sua casa? Pedreiro esquece sempre pedaço de encanamento pra trás… ai deve ter misturado tudo junto! E o isqueiro então, provavelmente, foi parar lá numa limpeza da casa, essas coisas acontecem, você precisa desc…

INÊS:

(interrompendo, alto e tirando da bolsa um pedaço de osso) OLHA, Tomé! Pega, Paixão!

JOSÉ PAIXÃO:

(escondendo o objeto, silenciando Inês e a afastando da festividade) Tomé, não! Não preciso ver pra acreditar. Quando você fala, eu imagino, Inês. Eu imagino! Guarda bem isso. Não mostra pra ninguém. Endoideceu falar dessas coisas aqui? Endoideceu? Vamos pro meu bar. É melhor a gente conversar sobre isso lá…

CORTE. Inês empurra sua bicicleta pela rua ao lado de José Paixão, que segue de cabeça baixa, subitamente acometido por uma sensação de ameaça. Eles se afastam da praça central em direção ao bar. Da festa ouvimos Toninho no microfone anunciar que, pela primeira vez, no lugar do lendário palhaço, um Rei será a atração da noite. CORTE. Vemos Eusébio vestido de Rei girar no carrossel iluminado. Os romeiros seguem segurando velas, rindo assombrados.

Briga de galos III

PASSADO. NOITE. A Mãe de Inês está prestes a sair do abatedouro e ao remexer os papéis na prancheta, onde toma nota da produção geral, encontra um bilhete de Toninho.

MÃE DE INÊS:

(lendo o papel em voz baixa)

“Convocada para o show da noite. 19h30 arrumar as mesas. Chefia mandou escrever aqui e reforçar: se for embora, não volta nunca mais.

Até a noite, ‘comadre’… ‘seu’ Toninho”.

Por volta das 18h os trabalhadores começam a sair do expediente. Um tempo depois picapes com placas de cidades vizinhas entram pela portaria. São os mesmos homens que foram ao “show” da semana passada. A Mãe de Inês dispensa a faxineira para poder arrumar as mesas.

MÃE DE INÊS:

Vizinha, pode voltar mais cedo hoje, seu Eusébio pediu pra eu dobrar o turno…

VIZINHA:

Mas posso terminar a limpeza e fica menos trabalho pra você, mulher…

MÃE DE INÊS:

Melhor hoje eu fazer sua parte, vai lá, aproveita pra descansar um pouco e… será que posso pedir um favor?

VIZINHA:

Claro que pode, Inês!

MÃE DE INÊS:

(tirando da bolsa duas marmitas enroladas) Aqui, tá com torta do almoço, pode levar pras crianças? A Inezita gosta muito dessa com carne…

VIZINHA:

Cê quer que eu fique com eles até chegar?

MÃE DE INÊS:

Não, não precisa. Eles tão bem lá… e eu já ensinei a menina a trancar as portas, a escutar ruído ruim… só abre se for minha voz, a casa tá bem guardada… pela menina! Ela é brava, vizinha!

VIZINHA:

(suspeitando) Sei… mas qualquer coisa, pode pedir. Tô do lado! (pegando a torta) e vou dar uma esquentadinha antes de levar pra eles… bom, tô saindo já! Até amanhã!

MÃE DE INÊS:

Muito obrigada! Te devo uma! Até amanhã!

Antes de sair do abatedouro, a Vizinha resolve fumar um cigarro na parte lateral do galpão, de onde se vê de cima a linha de produção. Ela observa a Mãe de Inês preparar a mesa com as cartelas, colocar bebida sobre a mesa, ajustar cadeiras e limpar o espaço onde Toninho e Salomão colocam caixas, com animais vivos dentro. Um deles, dessa vez, já chega morto. Continua assistindo essa movimentação até o momento que o jogo começa.

EUSÉBIO:

Muito boa noite a todos os meus sócios presentes aqui… Hoje, antes do show começar, gostaria de apresentar uma chegada nossa, a melhor encarregada do abatedouro, a mais rápida, mais sabida das entradas e saídas de mercadoria e a mais conhecida entre o restante dos trabalhadores…

A Mãe de Inês olha tudo com apreensão, tentando se esquivar do olhar incisivo de Eusébio.

EUSÉBIO:

(rindo, com escarnio) Não adianta fugir, não, mulher! É você mesmo que a gente quer por perto… não é, Toninho? (Toninho faz que sim com a cabeça) Confirma pra mim, Salô…

SALOMÃO:

A gente quer sua presença, dona Inês, é da nossa mais valia…

MÃE DE INÊS:

(engolindo seco) Eu agradeço a gentileza, mas é só hoje, como disse pro chefe, amanhã o turno come…

EUSÉBIO:

(interrompendo) Pronto! Se essa é a questão, a gente se arranja! Folga pra você amanhã, dona Inês! (insinuando) Assim que te chamam, é?

MÃE DE INÊS:

Seu Eusébio, eu, realmente, eu…

EUSÉBIO:

Não tem o que agradecer! Aqui tá seu novo cargo… nossa… Sócia! (rindo, num cinismo amoroso) Bem vinda ao escalão dos corajosos!

Salomão e Toninho se encaram, trocando olhares de estranhamento e desconfiança, sem compreender a atitude de Eusébio. A Vizinha continua a olhar e escutar toda a cena ainda no mesmo lugar.

EUSÉBIO:

(para os convidados/jogadores da noite) Pronto! Agora que todos conhecem nossa parceira, ao Jogo! Salomão, traz as cabeças da noite! Toninho, o disparo é por sua conta! A “Dona” Inês vai distribuir as cartelas e cuidar do dinheiro… é só deixar a moeda na mão dela…

Salomão coloca em frente a pequena plateia de interessados dois galos de briga, que começam a disputar uma luta acelerada por Toninho. Os convidados vão a delírio, dobrando, triplicando, o valor da aposta a cada nova série numérica definida por Eusébio. A Mãe de Inês vê as notas do caixa se movimentarem na sua mão como nunca antes. O relógio bate quase 3h da manhã e Eusébio atira pra cima.

SALOMÃO:

(assustado) Que isso, chefe?

TONINHO:

(com as mãos sujas de sangue) Tamo terminando mais essa e os convidados pediram só mais uma jogada…

EUSÉBIO:

Por hoje é só, quem começa e termina a festa aqui sou eu…

TONINHO:

Mas patrão, olha o lucro, olha a Inês, olha o caixa cheio… já viu isso antes?

EUSÉBIO:

(ignorando Toninho e dando mais um tiro pra cima) Fora! Todo mundo pra fora! Por hoje é só! Até a próxima rodada!

SALOMÃO:

(meio embriagado, retirando os galos mortos do chão) Bom retorno, pessoal! foi uma grande noite! Tamos satisfeitos!

EUSÉBIO:

Isso mesmo, Salô, satisfeitos! (se dirigindo para Mãe de Inês) viu só, com uma noite você pode construir um pedaço da casa, imagina só com quatro noites no mês… e o que vir aqui e só manter o segredo… que acha? Ia ser bom pra sua prole, não ia? Não é você que tá sozinha com as crianças?

MÃE DE INÊS:

(se voltando, quase em punho, para Eusébio) Que é que o senhor sabe da minha vida?

EUSÉBIO:

(com ironia) A gente sabe dos que precisam da gente, “dona” Inês.

MÃE DE INÊS:

(jogando) Eu tive sorte, então, seu Eusébio?

EUSÉBIO:

Sorte não, teve filho, e eu também tive, assim como a “dona” e sei das dificuldades de viver numa cidade como essa… sem pai… ver a mãe correr de um lado pro outro pra dar conta de tudo… difícil não é Inês? Eu sei da sua história, uma guerreira certamente… (pausa) E então, que me diz? Dez por cento do lucro é pra você, pros filhos irem pra frente…

A Mãe de Inês fita profundamente Eusébio, que mexe o bigode com uma das mãos, franzindo a sobrancelha. O espectador que olha profundamente Eusébio fica em dúvida, assim como a Mãe de Inês, se os olhos daquele homem estão marejando por alguma lembrança perdida no passado, por sono da longa noite ou por alguma espécie de ódio pela mulher que está a sua frente. Da parte superior do abatedouro vemos a Vizinha finalmente se afastar, deixando a cena.

MÃE DE INÊS:

(baixo e firme) certo, fechado, seu Eusébio. Mas só até eu conseguir quitar a casa. Depois não conta comigo. (Eusébio confirma com os olhos) Agora eu posso ir, não posso? (Eusébio novamente confirma com o olhar, se despedindo sem falar nada, com a mão levantada pelo ar) Até logo mais!

Toninho se aproxima de Eusébio.

TONINHO:

Que história é essa, patrão? Esse esquema não era nosso?

EUSÉBIO:

Esse esquema é meu, pra lembrar você, meu “compadre”. Cês tão junto por diversão, dinheiro, DESTINO…

TONINHO:

Mas e a Inês? Por que colocou ela nisso aqui?

EUSÉBIO: A sujeita é boa, Toninho e é amiga daqueles cabra que não querem conversa sobre o lote…

TONINHO:

Mas o patrão acha que ela vai ajudar? Salomão se aproxima dos dois, ouvindo a conversa.

EUSÉBIO:

Ajudar não, mas negociar…

SALOMÃO:

(cheirando a sangue e aguardente) A barra tá limpa aqui, logo mais começa o turno, tô indo descansar!

EUSÉBIO:

Boa noite, Salô! (sarcástico) aproveita e toma um banho… se ainda for se enrabar por aí…

Salomão sai do espaço rindo. Toninho, atônito, insiste com Eusébio.

TONINHO:

(sério, soturno) Eusébio, o negócio é nosso, não dá pra misturar outros assunto, nem confiar em mulher…

EUSÉBIO:

Toninho, escuta bem, aqui cê é só mais um cabra… Só que comigo tá no privilégio. Tá ganhando, não tá? NÃO TÁ? (Toninho confirma com o olhar) É, OLHA AÍ, TÁ SIM. Pra continuar a ganhar a regra é simples: o que for e como for tem que suportar. Tem que suportar. Entendeu?

CORTE. Toninho e Eusébio se encaram frente a frente no vazio do abatedouro. Começa a amanhecer e, não muito ao longe, é possível escutar o ruído dos funcionários da manhã chegando para iniciar mais um dia de trabalho.

Inês/Eusébio

PRESENTE. Eusébio chega no mercado onde Inês trabalha. Das caixas de som do computador toca, se espalhando pelo espaço, uma lista de músicas escolhida por Inês. Eusébio se aproxima para passar os produtos.

EUSÉBIO:

Tarde, Inês! (colocando cervejas na esteira, Inês apenas olha pra ele respondendo com a cabeça) iiiii mulher, perdeu a língua, foi?

INÊS:

Boa tarde, seu Eusébio! (passando os produtos) vai querer mais alguma coisa?

EUSÉBIO:

Por hoje não, acho que isso dá (indicando as cervejas e uma porção de alimentos pré-preparados) pra encher um pouco… dia longo hoje, que dia longo!

INÊS:

Mas ainda é meio do dia, ainda tem chão…

EUSÉBIO:

É, é verdade…

INÊS:

Ou o senhor virou a noite? O abatedouro não para, não é?

EUSÉBIO:

É turno que entra, turno que sai… eu sou o responsável… por tudo! Já imaginou ser responsável por algo tão grande, Inês?

INÊS:

(olhando para a máquina à sua frente, com deboche) Acho que sim… na verdade sim, mas já estou bem com o que tenho, as contas estão pagas e…

EUSÉBIO:

“… e isso é suficiente.” Ah! Já ouvi essas palavras alguma vez na minha vida… será mesmo? Olho pra você e vejo uma jovem de Paraíso dos Perdões com alguma ganância… outros quereres… Sair daqui, talvez? Morar numa cidade com outro trabalho? Coisas assim, não?

INÊS:

A ganância serve apenas aos pobres de espírito, Eusébio.

EUSÉBIO:

Ouviu isso na igreja, foi? Salmo… (tentando lembrar alguma passagem inexistente)

INÊS:

Não. Minha mãe me dizia isso.

EUSÉBIO:

Ah… sua mãe! Sua mãe não era uma mulher qualquer… E me diga, já que falou dela, nesses anos todos, teve alguma notícia? Já chegou a falar com um dos seus irmãos? Foi uma grande perda para o abatedouro quando sua mãe resolveu se mudar… assim… TÃO… abruptamente…

INÊS:

(com estremecimento, mudando de assunto) O senhor vai querer mais alguma coisa?

EUSÉBIO:

Me desculpe, Inês. Acho que fui um pouco grosseiro agora, me desculpe, realmente, estava só distraindo um pouco seu serviço… fui indelicado.

INÊS:

O senhor não precisa se desculpar de nada, seu Eusébio, disse agora que é um homem responsável, não foi? O homem responsável do abatedouro. Isso é muita coisa, sabe lidar com todo tipo de pessoa, tem que ter responsabilidade em muitos níveis…

EUSÉBIO:

(encarando Inês) Então você entende…

INÊS:

(respondendo com a lembrança dos ossos na cabeça) É diferente, seu Eusébio…

EUSÉBIO:

Diferente como, Inês?

INÊS:

Eu não entendo, eu sei.

EUSÉBIO:

Você sabe… o que você sabe?

INÊS:

(prestes a comentar sobre os ossos no jardim) Eu sei que…

Na lista criada por Inês, a música muda. Inês é interrompida pela canção. Começa a tocar Casinha Branca, interpretada pela dupla Cascatinha e Inhana. Eusébio fica parado escutando, com o olhar ao longe, como se tivesse sido tomado de assalto por alguma nostalgia. Inês embala o restante dos produtos comprados por ele.

INÊS:

(repetindo, sem cantar, a letra da música). Eu sei que “cada um tem seu mistério, seu sofrer, sua ilusão”…

EUSÉBIO:

(num espasmo). Como? Não entendi o que disse.

INÊS:

É a música que disse, não eu, o verso fala “cada um tem seu mistério, seu sofrer, sua ilusão”.

EUSÉBIO:

Ah sim! Claro…

INÊS:

É minha parte preferida na música.

EUSÉBIO:

Você realmente tem um bom gosto musical, impressionante…

INÊS:

Impressionante… por que é impressionante?

EUSÉBIO:

Modo de dizer… nada demais. Você lembra meu pai, um homem que cavalgava, sabia vestir uma boa roupa, se apresentava bem e lia, ainda tenho os livros dele guardados em algum lugar, devem tá no escritório, não sei. Meu pai gostava muito dessa música e meu pai era um homem que, realmente, sabia de muitas coisas…

Inês olha Eusébio longamente. Inês parece deslocada no tempo. Olha Eusébio de volta, mas com olhar perdido, como se visse um outro objeto a sua frente.

EUSÉBIO:

Inês!

INÊS:

Minha mãe, Eusébio… minha mãe também gostava muito dessa música e sabia de muitas coisas…

EUSÉBIO:

(encarando Inês num silêncio grande) É… me parece que sim! (mudando de assunto mais uma vez) Mas me diga, quanto ficou tudo?

INÊS:

(engolindo seco) São R$ 72,80.

EUSÉBIO:

Aqui (tirando uma nota de cem do bolso e parecendo limpar os olhos, como se esboçasse um choro ou uma emoção não controlada por ele) e pode ficar com o troco, Inês.

INÊS:

(não aceitando o troco) Aqui a gente trabalha com a moeda justa, seu Eusébio.

EUSÉBIO:

(voltando ao seu tom costumeiro e falando com assertividade) Eu não sou homem que gosta de ficar insistindo, como você sabe. O meu troco é pela música.

Inês coloca o troco na caixinha dos funcionários e encara Eusébio, com ar sério, também longamente. Eusébio deixa o mercado. CORTE. Vemos Eusébio dentro do carro ligando o som, de onde sai uma outra música, uma música ligada ao universo agroindustrial e assim dá partida da porta do mercado.

Uma festa da empresa

PASSADO. Numa festa organizada pela empresa, Eusébio tenta convencer alguns dos trabalhadores a vender o lote de terras por um preço menor. A vizinha e José Paixão acompanham a cena. Eusébio diz que a Mãe de Inês está envolvida na negociação. Os trabalhadores passam a desconfiar da companheira de trabalho.

EUSÉBIO:

(para alguns trabalhadores da esteira de corte) pois se acheguem mais, meus compadres! (servindo cerveja para cada um) Aqui, encosta o copo, (colocando mais bebida), opa! Tá cheio agora! Agora sim! (depois de completar o copo de todos presentes) Pois podemos conversar mais intimamente agora… Como vocês sabem, tenho imensa alegria em ter vocês como meus colaboradores na mesa do abate… é uma imensa alegria mesmo, ver vocês trabalhando DURO pra que cada dia a gente entregue o melhor pra nossos compradores! E agora, aproveitando o momento dessa festa, da nossa partilha, tenho a vontade de falar um sonho, um SONHO, com vocês! É isso mesmo… tenho… quero dizer, temos… o sonho de aumentar a linha de produção, já temos compradores novos, não só da região, mas também de fora do país. Estamos com compradores fora do país! Imaginem só, a NOSSA FAMÍLIA QUE É NOSSO MATADOURO com o nome nas mesas de milhares de outras pessoas pralém das redondezas de Paraíso de Perdões? E não tô falando de comprador de outro estado, tô falando de comprador dos Estados Unidos… É isso, estamos com essa demanda e para cada nova demanda a gente precisa abrir espaço, conquistar novos espaços! E aqui em Paraíso de Perdões o que mais tem de sobra é espaço, espaço subaproveitado! O que penso eu, então? (rindo) Não é preciso conquistar, é preciso apenas abrir, como quando a gente entra na mata virgem e vai cortando o mato pra fazer uma trilha. Com mais mercado podemos ter mais gente empregada… Imaginem: não só “ocês”, mas também seus filhos empregados! Mesmo as crianças… já podem herdar uma vaga na empresa, no futuro não vão precisar se preocupar com dinheiro, ele já tá com elas, já tem o trabalho no abatedouro… é um projeto de futuro! O presente trabalhando para o futuro: chega de passado! (rindo) Não é maravilhoso pensar nas suas crianças já trabalhando? Como não tenho filhos, os seus filhos são os meus filhos também… e quando eu imagino a gente abrindo essa mata virgem pra aumentar as esteiras de corte e quem sabe colocar mais maquinário… (brincando) Quem sabe, quem sabe eu disse… eu imagino emprego para a cidade toda. Trabalho garantido. (rindo) até o dia que o prefeito quiser colocar no portal de entrada: “Você chegou a Paraíso dos Perdões, um Paraíso do Trabalho!” (rindo mais ainda) Tudo bem, eu entendo… essa placa é sonho meu, mas o restante do sonho… é nosso, nosso sonho!

ENCARREGADO I:

(rindo com Eusébio) É… é uma boa mesmo, seu Eusébio! Mas como é que a gente pode ajudar nesse negócio?

EUSÉBIO:

Carlo… Carlo, não é? (o encarregado confirma) pois bem, meu querido, eu tenho uma proposta a mais pra vocês, acho que agora é que a coisa fica boa, boa de verdade mesmo… O FICA SONHO REAL.

ENCARREGADO II:

Boa como, seu Eusébio?

EUSÉBIO:

Ahhh! De você eu me lembro… João, não é? Do turno da noite? (o encarregado confirma) Pois João! Escuta bem! Aquela última safra não foi a melhor de todas, não é? A terra já não é como antes, não é? Seu pai perdeu muito plantando na última estação…

ENCARREGADO I:

(ressabiado) Não é bem que a terra não é como antes, teve outras coisas, seu

Eusébio, ficamo um tempo sem chuva e a safra não foi a mesma mas…

EUSÉBIO:

As chuvas foram as mesmas, Carlo! Iguais a de todo ano, não entendo o que você diz…

ENCARREGADO I:

(insistindo) Com licença seu Eusébio, mas nossa família cuida da terra faz um tempo já, meu pai conhece bem cada produção de cada estação e pra dizer pro senhor a verdade é que tivemos uma temporada longa de seca e aí não deu pra ver o resultado que a gente tem todo ano…

EUSÉBIO:

Hmmm, sei seu Carlo, mas me diga, meu amigo, esse resultado, mesmo com chuva, é satisfatório? Cês conseguem tirar o mesmo que tiram na fábrica? Imagina cada cabeça da família de vocês tirando um salário por mês… incluindo as crianças e, no futuro… (colocando mais bebida no próprio copo e bebendo) AH! HAJA FUTURO!… Também as crianças que as crianças tiverem?

ENCARREGADO II:

(em tom de brincadeira) Mas aí o senhor tá indo longe seu Eusébio…

EUSÉBIO:

Não! Não tô não, cês que tão pensando perto demais…

ENCARREGADO III.

(interrompendo) Mas qual a proposta então, patrão?

EUSÉBIO:

Bom, eu gostaria de comprar o pedaço da terra “improdutiva” de vocês pra poder desenrolar esse nosso sonho futuro!

ENCARREGADO I:

Mas seu Eusébio, as terras são dos nossos pais, o lote é pequeno, faz anos que a família tá lá, não tem como vend…

EUSÉBIO:

Iiiiiii meu compadre, nem escutou e já tá dando uma negativa?

ENCARREGADO I:

Não é uma negativa, patrão. É que nessa conversa falta gente na escuta…

EUSÉBIO:

(chamando Salomão que tira da bolsa uma pasta com documentos redigidos) Salomão! Ei! Mas olha só que tristeza (ironicamente), eu nem falei o trato e nossos amigos tão aqui falando que falta gente na conversa… Homem fala direto com Homem, não é? (Salomão, ressabiado, confirma com a cabeça) Pois é! Me diga, falta quem nessa escuta, amigo? Os cabra que eu confio tão aqui na minha frente! E olha aqui (tirando os papeis da pasta) já até adiantei o documento pra gente fazer o acordo…

EMPREGADO II.

É como o Carlo disse, seu Eusébio, as terras já tão loteadas, tem tudo dividido lá, pra gente vender precisava falar com nossa família… porque o senhor sabe, dinheiro é diferente… não dura como a terra.

EUSÉBIO:

Hmmm, tô entendendo que vocês precisam pensar no assunto é isso? Mas olha, olha como são as coisas. Lembram quem loteou o quintal que cês plantam há anos?

Os dois encarregados ficam em silêncio. Chega a Mãe de Inês.

EUSÉBIO:

Ah! Chegou quem a gente precisava! Inês… Inês, além da companheira de trabalho de vocês é também minha sócia. Mulher inteligente, de garra! Acho que ela vai saber dessa… Tô aqui falando pros nossos amigos que a empresa vai crescer e você chegou bem no momento que eu perguntei sobre quem loteou as terras no entorno do abatedouro… (com cinismo) Lembra daquele dia, que você e seu marido foram no cartório? Minhas duas testemunhas. Já tava até com a pequena Inês, a filhinha, no colo. Três testemunhas, no caso. (rindo) Lembra daquele dia?

Inês fita os dois Encarregados, sóbria. Quase doente de tão sóbria.

EUSÉBIO:

Lembra, não lembra? Inês confirma com a cabeça. EUSÉBIO:

Pois então, diga pra eles mulher… eles parecem que não tão sabendo, mas acho que sabem… quem loteou a terra de quase toda cidade. Até a da sua casa. Quem foi, qual o nome do Homem?

MÃE DE INÊS:

Foi seu pai, Eusébio.

EUSÉBIO:

O nome do meu pai é “foi seu pai, Eusébio”, (rindo) sempre as melhores respostas…

ENCARREGADO II:

Então o senhor tá dizendo que quer comprar terra que seu pai fez o lote? Mas, seu Eusébio, o senhor não tá ligando coisa com coisa direito nessa história…

ENCARREGADO I:

Não, compadre, ele tá dizendo que independente do que a gente acorde, mesmo sem nome no documento, a terra é já dele…

ENCARREGADO II:

Mas tá errado isso, uma coisa é lotear, outra é produzir, lavorar, permanecer na terra, patrão.

EUSÉBIO:

Errado não tá! Meu velho pai fez o lote e eu herdei a negociação… não é assim que funciona? Meu velho pai tentou negociar com o pai de vocês e passou pra frente a tentativa da negociação… e agora que meu pai

é um pai morto, quem tá a frente, pra ele, aqui? (irônico) Eu! (rindo) A questão é que eu tô pensando não só em mim… como já disse, também pensando no futuro de vocês… tô pensando no trabalho das crianças… e das crianças que as crianças vão ter! (ri mais ainda) Por isso tô propondo esse valor em dinheiro (mostra o documento) pra que vocês possam dividir comigo, oficialmente, essa tradição do cultivo da terra, essa tradição dos pais de vocês… é pra além da terra, meus compadre, cês percebem? É mais “profundo”…

ENCARREGADO I:

A gente é pobre, seu Eusébio, mas não vale tão pouco assim. Eu acho que…

A Mãe de Inês interrompe o amigo.

INÊS:

(para Eusébio) Eles vão pensar no assunto, Eusébio, e achar o melhor acordo pra todo mundo.

EUSÉBIO:

Bom… muito bom, Inês… (se dirigindo para o Encarregado) Pensa bem então, meu amigo, você mesmo disse “dinheiro é diferente, não dura como a terra”… mas posso te dizer? Se souber entrar no negócio… dura mais! Duvido que você saiba me dizer quanto dura a terra…

ENCARREGADO I:

(atravessando a conversa) Dizem que o tempo da terra é maior que o tempo do inferno, seu Eusébio.

EUSÉBIO:

(olhando com surpresa para o Encarregado I e esboçando um sorriso) e quem falou isso?

MÃE DE INÊS:

(respondendo pelo Encarregado I) Foi o padre, Eusébio. Aquele padre que você pagou pra rezar a missa no 1o de maio na capelinha dentro da empresa.

EUSÉBIO:

(sem tirar os olhos do Encarregado I, respondendo a Inês) Bom… bom saber que o padre rezou bem pelos meus empregados. Mas e você, Inês, você também acha que o tempo da terra é maior que o tempo do inferno? Pra mim tempo é só o do relógio! (rindo e chacoalhando o relógio digital no pulso)

MÃE DE INÊS:

Não sei dessas coisas, Eusébio… seu Eusébio.

EUSÉBIO:

Ah, vamo minha sócia! Alguma opinião você deve ter… afinal, acabou de responder pelo seu companheiro aqui…

MÃE DE INÊS:

Eu não sou religiosa. Nem sei rezar, Eusébio. Quando o padre vem eu escuto o padre como escutava o meu professor, no primário…

EUSÉBIO:

Olha só! Melhor ainda! No caso, aí, a opinião é direto do homem e não do homem que lê a palavra do Senhor… O que será que seu professor diria sobre essa história da terra? (Inês desvia o olhar, mira o chão. Eusébio chama a atenção do Encarregado) Você não quer agora saber também o que ela acha? Quero dizer, o professor achava… Não quer? (encara o Encarregado) Ahhh, quer sim! Olha aí Inês. Uma palavrinha só… pra gente…

MÃE DE INÊS:

O professor, pelo que me lembro, nunca falou de inferno…

EUSÉBIO:

(interrompendo, fazendo piada) Bom, tiramos o inferno da história pelo menos, “UFA!”…

MÃE DE INÊS:

… mas da terra, ele dizia, ser boa terra… ser a terra que dura… a terra sempre lavada por água. (tirando o olhar do chão e olhando para a festa, cheia de balões, embalada por uma dupla sertaneja raiz, um pouco ao longe) a terra sempre lavada por água e não por sangue.

Eusébio mantém o sorriso, como se tivesse deixado escapar as últimas palavras de Inês.

EUSÉBIO:

Bom.. então eu espero a devolutiva dos meus queridos amigos, é isso? Se precisarem falar mais diretamente comigo, falem diretamente com a Inês. (se dirigindo a MÃE DE Inês) É isso, não é? (A Mãe de Inês não responde) Bom, é isso! (alongando os braços pro céu) Ah, que maravilha! Que grandiosa festa! (abraçando o Encarregado II) Olha, estou realmente, ainda não inteiramente (brincando), satisfeito em negociar o futuro da nossa mesa de cortes com vocês… Bom, agora eu vou lá dar largada praquela dupla tocar mais um pouco pra gente…

Eusébio retorna ao aglomerado, onde outros encarregados e suas famílias circulam entre comes e bebes. CORTE. Inês e os encarregados ficam para trás, olhando, de longe, o festejo. CORTE. Num terceiro plano, está a Vizinha, limpando as mesas já desocupadas e olhando, de longe, no contra-plano, para a conversa entre Eusébio, a Mãe de Inês e os encarregados. CORTE. Toninho tira, forçosamente, uma encarregada para dançar. CORTE. Salomão, próximo ao pequeno palco, bebe sem parar. CORTE.

Um jardim de ossos pela cidade

PRESENTE. Manhã. Inês deixa sua bicicleta na rua e entra no bar de José Paixão tomar café antes do trabalho.

JOSÉ PAIXÃO:

Ah! Olha só quem vem ai! Bom dia “dona” Inês! vai querer o mesmo de todo dia?

Inês confirma se aproximando do balcão.

INÊS:

(falando baixo) Paixão, terminando o dia lá no mercado, eu vou dar uma volta perto da fábrica.

JOSÉ PAIXÃO:

Inês, já te disse mulher, não se mete com essa gente…

INÊS:

Tá sabendo de alguma coisa, Paixão, e não vai contar?

JOSÉ PAIXÃO:

Não tô sabendo de nada não, menina, mas o Eusébio é casca grossa na cidade, qualquer movimentação perto do abatedouro ele já tá sabendo… tem câmera espalhada pra tudo quanto é lugar naquele chão.

INÊS:

Eu lá tenho medo de câmera! Preciso só ver, preciso ver se minha mãe deixou alguma coisa por lá… você lembra de algum documento que ficou na fábrica? Lembra de alguma coisa dela que possa ter ficado lá?

JOSÉ PAIXÃO:

Inês, cê tá vendo muita televisão. Fica muito tempo nesse celular, OLHANDO… OLHANDO… OLHANDO. E aí começa a delirar! A gente não sabe da sua mãe faz quinze anos já… Acha que aquele pessoal do Eusébio vai guardar coisa velha assim?

INÊS:

Não sei, toda fábrica tem um depósito que…

JOSÉ PAIXÃO:

Aí, tá vendo! Tô falando que tá vendo muita novela… (começa a fabular como em algum filme de sessão da tarde) “Aí tem um depósito, que você vai entrar e encontrar uma caixa onde todas as apost…”

INÊS:

Todas o quê? (Paixão fica calado) todas o que estão numa caixa, Paixão?

JOSÉ PAIXÃO:

Tô inventando, Inês. Tô aqui imitando filme. Imitando esses filmes… Mas que insistência!

INÊS:

Sei, sei… entendi. Você tá brincando também. Entendi. (mudando o tom) Bom, assim que acabar o dia eu vou dar uma volta por lá… Ia te chamar pra ir junto, mas parece que tá atarefado, é isso mesmo?

José Paixão volta a limpar engradados de cerveja.

JOSÉ PAIXÃO:

Tenho que terminar todos esses aqui, Inês. Chega carga nova logo mais e esse final de semana tem jogo de futebol, tem clássico no bar. Sabe como é, o dia que eu mais vendo… Garante o mês.

INÊS:

Sei… entendi.

JOSÉ PAIXÃO:

Que isso menina, tá respondendo estranho…

INÊS:

Não gosto de futebol. Não faz sentido.

JOSÉ PAIXÃO:

E o que mais? Tem mais coisa aí, te conheço…

INÊS:

Tá tudo bem. Só isso mesmo. Bom… bom dia pra você!

CORTE. Inês deixa José Paixão no bar. Parte de bicicleta rumo ao mercado. Na entrada do trabalho encontra Toninho e Salomão estacionados do outro lado da rua, OLHANDO.

Briga de galos IV

PASSADO. Fim de expediente. Vemos novamente os trabalhadores deixarem a fábrica. A Mãe de Inês prepara as mesas, já adiantando frente a elas o espaço

para a disputa dos galos. Os apostadores estacionam suas camionetes próximo ao abatedouro e adentram a sala de cortes. A Mãe de Inês dispensa a Vizinha, que mais uma vez observa tudo de longe sem que ninguém a veja. Chega Eusébio, eufórico, vindo de uma roda de conversa com os apostadores.

EUSÉBIO:

(interrompendo a organização feita pela Mãe de Inês) Ei, ei, minha sócia, minha grande sócia, hoje não precisa de tudo isso não (apontando para as mesas organizadas pela Mãe de Inês)… a ordem vai ser diferente…

MÃE DE INÊS:

O senhor quer que eu desmonte tudo então?

EUSÉBIO:

(bonachão) Não, não, mantém as mesas aí mesmo… só deixa o espaço da frente livre…

MÃE DE INÊS:

Mas depois pra limpar pena, tirar o vermelho do sangue, limpar a sujeira, ainda em tempo do primeiro turno entrar para trabalhar vai ser difícil, vai ficar rastro e aí vai sobrar pra faxineira ouvir dos outros trabalhadores que…

EUSÉBIO:

(interrompendo) Não, ninguém vai falar nada não, quem fala aqui sou eu, não tá lembrada? (subindo a voz) Tenho que ficar falando pra vocês o tempo todo, que quem FALA aqui sou EU! (rindo, enquanto a Mãe de Inês recua) Ei, ei… não precisa se assustar… Você tá segura, minha sócia, olha só, me desculpa tá? É que hoje eu tô… como se diz na novela: À FLOR DA PELE! (rindo mais ainda). Ei, Toninho, tá com a cabeça da noite ai?

Toninho fala dos fundos do galpão, com a camionete estacionada na porta, de onde se escutam ruídos, quase choros.

TONINHO:

Alô chefe! Aqui tá tudo certo!

EUSÉBIO:

Muito bem! (para os apostadores) Hoje, como prometido para vocês, uma atração nova no nosso joguinho! E como a atração é nova, a aposta vai triplicar! Sim, vocês vieram preparados não foi? Pois o bom Deus os abençoe nas cartelas escolhidas e distribuídas pela nossa sócia!

MÃE DE INÊS:

(para Salomão) Como assim, atração nova?

SALOMÃO:

(colocando outras armas em cima da mesa e falando baixo, quase para dentro) Sei de nada, Inês, o chefe só pediu pra trazer essas aqui ó… mais rápidas… outra pólvora.

MÃE DE INÊS:

(firme, caminhando em direção a Eusébio) O que você tá fazendo, Eusébio?

EUSÉBIO:

(respondendo sem olhar para Inês, que continua a caminhar na sua direção, enquanto os apostadores começam a reclamar o início do jogo) Eu tô sobrevivendo Inês… assim que a gente faz… bom, agora sem perder mais tempo, vamos ao jogo! Toninho, traz o cabra! Mas traz com VONTADE!

Toninho tira da caminhonete um homem encapuzado. O homem, que não sabemos quem é, veste uma roupa comum, calça jeans e camisa de botão, parece estar terminando de se arrumar. Mas nos pés vemos as botas brancas, galochas, usadas na linha de corte do abatedouro. Um trabalhador. Parece ter saído há pouco tempo dali. A Vizinha, escondida, olha tudo. A Mãe de Inês fica imóvel, como se estivesse saído do próprio corpo e sua mente vagueasse olhando aquilo. O homem reza. O homem chora também. Mas, sobretudo, o homem reza.

TONINHO:

(falando alto para a Mãe de Inês) Ei, Sócia, ei! Acorda! Pode distribuir as apostas agora! Vai!

Mecanicamente a Mãe de Inês deixa as cartelas, uma a uma, nas mãos dos jogadores.

EUSÉBIO:

(para Mãe de Inês) Hoje eu quero que você fique do meu lado… quero dizer, quero seu apoio total! Estamos trabalhando JUNTOS nisso! (vibrando) JUNTOS! Ouviu?

MÃE DE INÊS:

(sentada ao lado de Eusébio, sem tirar os olhos daquele corpo encapuzado à frente) quem é ele, Eusébio?

EUSÉBIO:

(rindo) Minha querida, você faz as perguntas erradas sempre!

MÃE DE INÊS:

(insistindo) Quem não voltou pra casa hoje, Eusébio?

EUSÉBIO:

(ainda rindo) Tá vendo, errou a pergunta de novo!

MÃE DE INÊS:

(insistindo, num tom tremulo) Eusébio, quem é o homem…

EUSÉBIO:

(mudando o tom) Ahhhhh… agora sim. ACERTOU! (rindo e respirando fundo), o homem sou eu, Inês (pausa) E é assim que o homem luta com o bicho. (irônico, num tom de consolo) Mas, olha, agora você vai ver que maravilha! O lucro dessa noite quita tudo na sua vida… inclusive a sua casa! (para Toninho) e TONINHO! OLHA! Quer saber? Traz mais o outro… coloca mais um aí!

Toninho busca na camionete outro homem, nas mesmas condições que o primeiro.
Roupa bem arrumada, limpa, mas vestindo as botas com marcas de sangue. Salomão se aproxima de Inês, enquanto Eusébio vai até próximo do primeiro homem colocado à frente, esperando Toninho chegar com outro.

SALOMÃO:

(entredentes, sem esboçar qualquer emoção, baixo para que ninguém escute) Não mexe com isso não, se você se enfiar nisso, vai dar ruim pra você, Inês…

A Mãe de Inês se afasta e permanece imóvel diante daquela cena armada frente a ela.

EUSÉBIO:

Então aqui, senhores e senhora! Estão nossos galos da noite! São peso médio, mas porte grande, por isso que as apostas triplicaram!
Encontramo esses cabra nas redondezas das boas terras de Paraíso dos Perdões…

APOSTADOR UM.

(se levanta da cadeira empolgado) Já que a prenda é boa… Eu começo com 30 mil hoje!

APOSTADOR DOIS.

(seguindo o levante do apostador um) Se o amigo aqui começa com 30, eu já vou pra 50 mil. O que acha?

APOSTADOR TRÊS.

(levantando devagar e rindo) Vamos soltar o bolso, meus chegados, vamos pra 65 mil…

EUSÉBIO:

(para a Mãe de Inês) Eu não disse que hoje a sua mão ia ficar dourada de tanto ouro? (para os apostadores) Começamos então com 70 mil!

MÃE DE INÊS:

Por que você tá fazendo isso, Eusébio? Quem são os dois?

EUSÉBIO:

São dois galos importados!

MÃE DE INÊS:

Isso é loucura!

EUSÉBIO:

Como era mesmo? “O tempo da terra é maior que o tempo do inferno”… fiquei pensando nisso, Inês. Fui até consultar o padre pra ver se era isso mesmo que ele tinha dito na minha fábrica… e adivinha só…

MÃE DE INÊS:

Eusébio, por favor… para por aqui.

EUSÉBIO:

… foi isso mesmo que ele disse! Pau! Ai eu fiquei pensando… se é isso mesmo, então…

MÃE DE INÊS:

Eu não sei o que deu na sua cabeça…

EUSÉBIO:

… então vou aproveitar da minha saúde e não perder tempo! Vou cuidar do tempo da terra… aí, faço o que ninguém parece que faz nessa cidade: (irônico, com ódio) tomo a iniciativa!

MÃE DE INÊS:

…mas você é um homem bom. Você é bom! É bom, Eusébio!

EUSÉBIO:

Sim, eu sei, eu sou um bom homem. Um BOM homem.

MÃE DE INÊS:

Então cê pode abaixar essa guarda, solta aqueles dois homens.

EUSÉBIO:

Opa, errou! São nossos galos da noite. Todo bicho é bicho nesse jogo, Inês. Não entendeu ainda?

MÃE DE INÊS:

Se você não soltar aqueles dois homens, eu vou…

EUSÉBIO:

(interrompendo a Mãe de Inês) vai o quê? Até o delegado? “Comunicar oficialmente” o prefeito? Pelo amor de Deus, Inês. Quero dizer, pelo amor do que você ainda consegue amar… ah, não, espera! Tem mais! Vai sair por aí gritando… “Assassino! Assassino!” (rindo) Quem acredita em você nessa cidade, mulher? Faz tempo que todo mundo sabe que cê anda com a minha gente. Fora e dentro do abatedouro, todo mundo sabe. O único que acredita em você, o único que restou, sou eu.

Inês adentra novamente um mutismo terrível. Toninho chega interrompendo a conversa. Eusébio olha, olha, olha Inês. Como se seus olhos fossem capazes de tocá-la.

TONINHO:

Patrão, não é por nada não, mas os dois tão muito agitados… tá começando a fazer barulho, ninguém escuta nada aqui, mas tá fazendo barulho e os convidados querem saber que cabeças são aquelas…

EUSÉBIO:

É, é verdade, vamos prosseguir… e Salomão! Fica aqui com a Inês, ela vai precisar de novos amigos de trabalho. Segura ela. Quero dizer… deixa ela segura.

Salomão se aproxima, puxando Inês próximo à saída de emergência.

TONINHO:

Mas, patrão, cê vai soltar os dois pra brigar? Que nem galo?

EUSÉBIO:

(sério) Não. É claro que não vai ser isso. Aqui não é luta livre. Você gosta de ver homem se chutando, tocando um no outro, perto, bem perto? Eu não gosto disso não. É violento demais. Concorda? Concorda! Claro que concorda! Você é burro, Toninho! BURRO. Parece que nunca entende nada.

TONINHO:

(colocando a mão na arma presa na cintura, sem tirar os olhos do patrão) Mas então por que os dois tão aí?

EUSÉBIO:

Porque eles trabalham pra mim e quem marca o fim do expediente sou eu.

CORTE. Eusébio pega uma das armas colocadas sob a mesa e atira em um dos homens. Os apostadores oscilam entre um misto de horror e euforia. CORTE. A Mãe de Inês deixa o galpão pela saída de emergência. Eusébio continua a atirar até matar o segundo homem.

EUSÉBIO:

você entendeu, Toninho? agora pode trazer os dois galos pro nosso jogo do bicho, nossa noite de apostas, nossa rinha.

Da janela lateral a Vizinha segue a OLHAR, OLHAR, OLHAR tudo.

Briga de galos V

PRESENTE. Na TV localizada no centro do Bar de José Paixão a bola rola no campeonato paulista série C. Final entre Noroeste e Capivarano. No bar, de um lado, apostadores jogam bocha, do outro, mesas vazias aguardam a chegada de Eusébio e seus convidados. Toninho e Salomão dividem uma cerveja numa mesa afastada.

SALOMÃO:

(já embriagado, vestindo uma camisa do Noroeste) Ê, Paixão! Traz mais umas aqui pra gente!

TONINHO:

Fica esperto Salô, logo o chefe chega e ele não gosta de festa no ponto…

SALOMÃO:

Mas isso aqui não é festa. É a celebração do título do clube, do meu clube!

TONINHO:

Não quero saber, compadre. Se o Eusébio sentir seu cheiro já vai dar rodo pra gente…

SALOMÃO:

Rodo é só na mesa de corte Toninho… rodo é só pra limpar o sangue! O Sangue! (fala rindo, um tanto alucinado)

TONINHO:

Cala boca, diabo!

Eusébio estaciona a picape. Logo atrás chegam mais dois carros que completam as mesas preparadas por José Paixão.

EUSÉBIO:

(se aproximado dos capangas) Tá feliz é, “seu” Salomão? Faz tempo que esse clube aí vira com a sua cabeça, não é?

SALOMÃO:

Chefe eu… (colocando a mão no coração) Sem palavras… Sem palavras….

EUSÉBIO:

(rindo) Vem cá, me dá um abraço! (abrindo a camisa de botão) Também sou Noroeste de coração! (para Toninho) E você, Toninho, cadê seu manto?

TONINHO:

Vim a trabalho, chefe.

SALOMÃO:

(mais embriagado) Iiiiiiii, hoje ele tá brabo, tá brabo, brabinho…

EUSÉBIO:

(olhando seriamente para Toninho e fechando a camisa de botão) É… tá certo. Assim que eu gosto. Compromisso e…

TONINHO:

… e o jogo nem começou.

EUSÉBIO:

(intrigado com Toninho) Eles tão se achegando ainda, compadre.

TONINHO:

“o clássico”, chefe. Como dar vitória pra uma partida nem jogada ainda?

EUSÉBIO:

“como dar vitória pra uma partida nem…” Que foi que cê disse? Repete. Não entendi.

TONINHO:

Só canta vitória depois que o juiz apita, patrão. (apontando pra TV) olha lá, os jogadores tão ainda cantando o hino.

EUSÉBIO:

só canta vitória depois que o juiz apita, patrão” (debochando) BOA! Tá sabendo das coisas Toninho… sempre soube… sempre o impetuoso, de aviso prévio na liderança… “meu gestor”… (mudando o tom) Mas escuta aqui, já que tá bem dentro da regra do jogo… por que você não aproveita e apita (apontando pros apostadores ao longe) pra que os nossos convidados comecem logo a colocar o ouro na mesa?

Salomão indica que vai ele mesmo até os apostadores. Cantando, embriagado, um hino qualquer que lhe vem à mente.

EUSÉBIO:

Não, não, ô Salomão! não falei com você… falei com seu amigo juiz, Toninho!

SALOMÃO:

(abraçando Toninho) Vai lá, vai lá e… apita! (começa a rir, sem controle)

EUSÉBIO:

(para Salomão, rígido) Agora nosso torcedor pode voltar ao trabalho também.

Salomão coça os olhos, esforçando alguma lucidez.

TONINHO:

(sério, para Eusébio) Eu vou lá ajeitar as coisas.

EUSÉBIO:

(como se um gol tivesse saído da TV) BOOOOA! (irônico, rindo) Agora senti a firmeza desse macho, desse pequeno grande juiz. Você bem sabe que o futebol é nossa paixão, mas não nossa devoção…

José Paixão se aproxima, pegando o resto da conversa, trazendo mais bebida à mesa.

JOSÉ PAIXÃO:

Desculpa incomodar… mas sem ser intruso, qual a nossa devoção, Eusébio?

EUSÉBIO:

Chegou na hora certa! Você é o homem que sabe, Paixão!

Eusébio encara José Paixão, com olhar cheio de sangue.

EUSÉBIO:

(fazendo suspense) Não? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe… não sabe mesmo?

JOSÉ PAIXÃO:

Não, Eusébio.

EUSÉBIO:

… dou-lhe três! Ahhhh! O amor pelo próximo, Paixão! O amor pelo próximo… Essa é a nossa devoção! (inspira profundamente, como num funeral) Agora, enche aqui e quando os cabras começarem a apostar nem pensa muito, traz uma rodada daquela boazinha lá dos fundos!

José Paixão indica que vai se afastar para ir até o bar, mas logo é interrompido por Eusébio.

EUSÉBIO:

E outra coisa, preparou nossa distração enquanto a bola rola na TV?

JOSÉ PAIXÃO:

Os galos tão amarrados lá no fundo, cada um tá saindo por R$ 6.000,00 e…

SALOMÃO:

(aparecendo recomposto) e essa semana eu coloquei espora nova neles, seu Eusébio.

EUSÉBIO:

Quantos tão lá, Paixão?

JOSÉ PAIXÃO:

O suficiente pro primeiro e segundo tempo…

EUSÉBIO:

Da vitória do Noroeste?

JOSÉ PAIXÃO:

Como? Não sou juiz de nada, seu Eusébio, muito menos juiz de rinha.

EUSÉBIO:

Mas tô falando do futebol, meu amigo…

JOSÉ PAIXÃO:

(amargo) Nessa vida de diabo, só advogo meu bar, “patrão”.

EUSÉBIO:

Entendi… bom… Vou me dar por satisfeito com essa resposta, mas eu sei, Paixão, que você, como eu, é também um homem que ama… que ama o próximo. (rindo) Traz logo mais uma, aqui! Pra aquecer! Pra esquentar! Pra esse devoto do seu bar!

CORTE. José Paixão volta ao balcão pegar mais cervejas. Os apostadores chegam e se sentam nas velhas mesas organizadas por Paixão nos fundos do bar, onde está localizado o espaço do jogo de bocha. CORTE. Na TV o juiz apita o início da final do campeonato paulista série C. CORTE. Salomão, mais embriagado, chega à arena do jogo de bocha com um galo enorme nas mãos. O galo tenta bicar seus olhos. Ele recua e volta a apertar a garganta do galo. Toninho entra logo em seguida com outro galo, aparentemente mais frágil. Ele acena para que Salomão solte o galo forte, sem tirar o saco que cobre a cabeça do bicho. Em seguida também ele lança o galo que segura, no chão. CORTE. Um dos apostadores atira para cima, eufórico, querendo o início do jogo. CORTE. Na primeira rodada o galo mais frágil derruba o galo encapuzado. CORTE. Na TV, o time de Eusébio abre o placar da final com um gol contra.

Vizinha, Inês, José Paixão

PRESENTE. Inês chega à sua casa acompanhada de José Paixão. Inês já suspeita que aqueles ossos no seu quintal são de antigos companheiros de trabalho da sua mãe. Na porta da casa ela vê a Vizinha, limpando a garagem.

INÊS:

(para José Paixão) Paixão, ei, espera um pouco aí… vou falar com a vizinha… (para a Vizinha), tarde, dona Vera! Tá aí na faxina, é?

VIZINHA:

(tirando da mão a mangueira e deixando no chão, com a água corrente) ah… Inês, é você! Tá diferente… a gente mora do lado uma da outra, mas pra se ver é difícil, ein menina! Como tá o trabalho? Tá trabalhando ainda lá no mercadinho?

INÊS:

Sim, dona Vera, ainda lá, só que agora no caixa…

VIZINHA:

Bom, isso é bom não é? Pelo menos tem um aumento e saindo do estoque… você tem mais visibilidade…

INÊS:

(meio baixo e mudando de assunto) Pois é… mas não sei se ganhar mais e ficar na frente das coisas é uma boa coisa, ainda mais agora que, que tô tendo que mexer com algumas coisas que não andam se encaixando muito…

A VIZINHA:

Ah é? (em tom de brincadeira) Anda mexendo com aqueles produtos parados lá do mercado, aquelas coisas sem validade que ninguém compra? Só deixa lá… uma hora o dono do mercadinho vai dar um fim, fica tranquila…

INÊS:

(chamando José Paixão pra perto) Paixão! Pode vir com a gente mais aqui? (Paixão, saindo do portão da casa de Inês, se aproxima das duas).

A VIZINHA:

(surpresa) ah… olha o Paixão aí também! (num tom irônico, amargo) nosso “amado velho palhaço”!

INÊS:

Ele tá me ajudando a juntar os pedaços…

A VIZINHA:

(mudando o tom, falando com dureza) Os pedaços… os pedaços… sei.

INÊS:

Você sabe de alguma coisa? Encontrei ossos no quintal de casa, dona Vera. E também o isqueiro da mãe. Você trabalhou com ela no matadouro, não foi? Eu lembro de você trazendo as marmitas pra gente e depois… depois não tinha mais nada. As marmitas acabaram e a mãe começou a ficar calada. E aí depois…

A VIZINHA:

(olhando o chão, a água escorrer pelo chão, falando para o chão) Eu lembro Inês… (pausa)… das marmitas, sim. Você veio me perguntar sobre elas? É isso? Era uma comida simples, resto do refeitório e a gente trazia porque ainda tava na validade…

INÊS:

E aí depois ela sumiu, você lembra daquela noite, não lembra? Tudo foi desaparecendo, tudo meio que foi se desfazendo, e nenhuma ligação de volta… nada de volta…

A VIZINHA:

(mudando o tom, cortando Inês) Olha, minha querida, minha querida menina, pensei que você já tivesse superado tudo isso. Já faz tanto tempo! Gente como a gente precisa deixar as coisas partirem… (longa pausa) dói, não é? Mas nós suportamos a dor. Olha para mim. (rindo sarcástica, apertando as mãos trêmulas) Eu suportei.

JOSÉ PAIXÃO:

(tossindo) Desculpe, Vera. Mas não passamos aqui por acaso… Você era a pessoa mais próxima da MÃE DE Inês naquela época, e nós suspeitamos que…

A VIZINHA:

Suspeitam o quê? Que eu saiba onde ela está? Ela deixou as crianças e foi embora! CANSOU! Simples assim! Mãe de três! Deixou a mais velha aqui… tinha a casa aqui pra cuidar e levou os dois meninos embora… eram pequenos demais. Ela sabia que Inês, que você, em pouco tempo, ia dar conta da casa, formar na escola, arranjar um trabalho… Ela cansou, foi embora. Sempre quis ir… Sempre foi assim.

INÊS:

(baixo) “Sempre foi assim”… assim como?

A VIZINHA:

Quando seu pai foi embora com a outra mulher, Inês, sua mãe ficou triste. Foi fazendo as coisas sem pensar muito. Só fazendo. As pessoas podem estraçalhar seu coração se você não estiver preparada. Sua mãe não estava preparada. Mas ela te preparou, por isso te deixou… por isso ela foi embora sem…

JOSÉ PAIXÃO:

(interrompendo) Não, não é assim que as coisas são…

A VIZINHA:

Ah, é, Paixão? E como elas são? Você também tem as suas pra contar, não é…

INÊS:

Como assim, Paixão? Tem o que pra contar? (José Paixão se afasta, olhando apenas a Vizinha)… então, a senhora não sabe de nada desses ossos?

A VIZINHA:

(seca) Aposto que do seu pai não são Inês… José Paixão estremece, se exalta com A vizinha.

INÊS:

Ei, Paixão! Tá doido? Que deu em você? Tá maluco? Bebeu a mais?

A VIZINHA:

Esse aí já perdeu a linha faz tempo… não sei o que tá fazendo aqui… (para Inês) e menina, vou te dizer uma coisa, se eu fosse você, não seguia querendo saber da sua mãe. O melhor que cê pode fazer é dela herdar só o teto…

JOSÉ PAIXÃO:

(ainda sob a guarda de Inês) Mentirosa! Passa o tempo e você continua como eles…

A VIZINHA:

(dura, indo até a fuça de Paixão) Paixão, vou te dizer uma coisa… escuta bem: cê é homem…. Homem pobre…. Mas homem… Cê ainda pode sobreviver. E eu? Quem sou eu? Eu sou a que tem que negociar pra sobreviver… ainda… ainda. (para Inês) Vive a sua vida, Inês… e esses ossos aí, deixa na terra. Bem fundo.

CORTE. Inês e José Paixão saem de cena. Inês primeiro e depois Paixão. CORTE. A vizinha entra na sua casa e deixa a mangueira escorrendo água, levando o resto de lixo que tem pela rua para o bueiro.

Briga de galos VI

PASSADO. MESMA NOITE QUE OS GALOS DA NOITE SÃO OS TRABALHADORES DO DIA. A Mãe de Inês, ao testemunhar a morte dos companheiros, quer deixar o esquema. Eusébio manda Toninho e Salomão atrás dela, na sua casa. Toninho, Salomão e Eusébio estão no abatedouro.

SALOMÃO:

(para Eusébio) Melhor ir atrás dela, chefe?

TONINHO:

Acho que não vai ser necessário, Salomão…

SALOMÃO:

Eu perguntei pro chefe, Toninho!

TONINHO:

Iiiii tá perdendo a cabeça, cabra? Cuidado que os apostadores ainda tão por perto, ein (rindo), vai que você vira a casaca e…

EUSÉBIO:

cala a boca, Toninho! qual que é a questão, Salomão?

SALOMÃO:

A Inês saiu, tava com uma cara, uma cara de morte, de um jeito que nunca vi aquela mulher…

TONINHO:

(resmungando, provocando) Tá preocupado demais com a mulher… tá de qual lado, Salomão? Perdeu mesmo a cabeça?

SALOMÃO:

(quieto, tremendo) Patrão, ela saiu que nem fera daqui, ela pode abrir a boca, pode…

TONINHO:

…cara de morte (rindo) você foi pouco nessa Salomão, aquela lá sempre teve cara de carniça…

SALOMÃO:

Vai tomar no cu, Toninho!

EUSÉBIO:

Opa, opa, opa… Toninho, fica quieto, FICA QUIETO. Salomão, que emoção é essa, companheiro? (irônico) O que é que te aflige?

SALOMÃO:

Seu Eusébio, ela pode abrir a boca pra cidade, tem jornal, tem comerciante, língua pra tudo quanto é lugar… se a polícia baixa aqui, o esquema, o esque…

EUSÉBIO:

(interrompendo Salomão) O esquema o quê? A polícia não vai baixar aqui, “seu” Salomão. (pausa) A POLÍCIA SOU EU. (pausa) Mas você tem razão… (olhando pra Toninho) Quero cês dois atrás da Inês…

TONINHO:

(mudando o tom) Mas, patrão, peraí, aí a coisa não encaixa mesmo… Se a gente pega ela, vai dar muito na telha, muita gente na cidade conta com a mulher…

EUSÉBIO:

(interrompendo Toninho) Quem disse que aquela cabra também tá marcada pra morrer, Toninho? Vão sim atrás dela, mas não precisa fazer nada não… Só leva os dois galo da noite e faz terra rasa naquele roseiral da casinha branca que ela mora com os filhos.

Salomão confirma em silêncio, numa respiração profunda. Toninho, contrariado, tenta ainda desenrolar uma outra saída.

TONINHO:

Seu Eusébio, não seria me…

EUSÉBIO:

(interrompendo) Cê fala demais, Toninho… mas na hora do tiro mesmo, na hora da ação, pede muita licença. Vão logo! Que diabo!

CORTE. Toninho e Salomão colocam os dois corpos na picape. Eusébio se despede dos apostadores marcando a próxima noite de “show”.

Vizinha, Salomão, Eusébio, Toninho

ALGUNS SEGUNDOS ANTES DO JUIZ APITAR O FIM DO JOGO. A Vizinha chega no bar de José Paixão acertar a conta do mês. O jogo da final do campeonato está no segundo tempo. Nos fundos do bar, gritos de euforia e cansaço. Na frente do bar: os que restaram. Quem?

JOSÉ PAIXÃO:

(falando do balcão, assustado com a presença da Vizinha ali) ô, dona Vera!

A VIZINHA:

Que cara é essa, Paixão… parece que viu um fantasma…

JOSÉ PAIXÃO:

É que geralmente cê passa aqui em dia de semana… aconteceu alguma coisa?

A VIZINHA:

Tava indo na igreja e voltei… vim aqui… voltei pagar a minha conta.

JOSÉ PAIXÃO:

Mas não precisa acertar agora não, podemos esperar o fim do mês… e, eu sei Vera, fiquei sabendo pela Inês… tá sem aposentadoria, não é? Fica difícil, mesmo… Então, tudo bem…

A VIZINHA:

Aqui, Paixão, entre nós, soma tudo e vê quanto fica… não sei o que a Inês te disse, mas não sou mulher de dever, ainda mais em boteco!

JOSÉ PAIXÃO:

Eu insisto… pode ficar entre a gente, pode ficar tranquila… Deve ser pouca coisa…

A VIZINHA:

(certeira) Pra mim é muita, Paixão. Se você tá ocupado eu espero. Já rezei demais essa semana, hoje vou orar por aq…

Chega no balcão Salomão, cambaleante. O cheiro de aguardente já impregnado na roupa.

SALOMÃO:

(para José Paixão) “Alôoo chefe”, precisa repor mais lá no fundo… (olha para a Vizinha) Ah! Olha só! (fala meio arrastado, como cantando uma música que não existe) Que prazer, que prazer, que prazer te rever! (pra Paixão) Leva lá, chefe? Ou quer ajuda? Ahhh! melhor! (puxando a mão da Vizinha) Vamo todo mundo! (começa a rir, descompassado) Juntos a gente leva o dobro!

Salomão entra no balcão, abre o freezer e coloca garrafas de cerveja nas mãos da Vizinha e de Eusébio.

SALOMÃO:

(eufórico, para Eusébio) Cheguei patrão e… trouxe o dobro! (indicando a Vizinha e José Paixão no espaço)

EUSÉBIO:

(para Toninho, próximo a ele) O que ela tá fazendo aqui?

TONINHO:

Sei não chefe, mas vou já dar um jeito nisso.

Eusébio, ao longe, acena para a Vizinha, que OLHA diretamente para todo o sangue e penas nas raias do jogo de bocha. José Paixão abre as garrafas e enche os copos dos apostadores. A Vizinha OLHA os apostadores. Dentre eles: pequenos comerciantes da cidade, os donos do mercado, outros vizinhos, a polícia local, homens… muitos homens tristes. Toninho vai em direção à Vizinha mas é atravessado por Salomão.

SALOMÃO:

Eeeee, meu irmão Tonho! Toninho! Antonio! Olha que maravilha… (apontando pra José Paixão servindo os apostadores) Agora todo mundo “medicado”, com a santa Boazinha! A santa Boazinha! (rindo alto)

Eusébio, ao longe, grita para os dois capangas.

EUSÉBIO:

Vamo pra próxima rodada! Tragam os dois penúltimos!

Toninho e Salomão trazem dois outros galos. Os apostadores conversam alto, o espaço é tomado por ruídos. Ao entrarem numa das raias do jogo de bocha, Salomão tropeça e deixa o galo escapar. A arma que carrega na cintura dispara e ele toma um tiro no pé esquerdo. Um dos apostadores se assusta e dispara outro tiro em direção à raia. O tiro acerta o centro do peito de Salomão, cambaleante de aguardente, cambaleante pelo tiro no pé, tentando se reorientar. CORTE. Toninho aperta com força o galo que carrega no braço e dispara um tiro no outro galo, que pula desorientado pelo chão. Os apostadores ficam imobilizados e aos poucos deixam o bar. A Vizinha olha. Olha meditativamente o corpo de Salomão no chão, entre penas naturalmente vermelhas e penas manchadas de sangue.

José Paixão vai até o corpo de Salomão e fecha aqueles dois olhos bêbados, aqueles dois olhos violentamente inocentes. CORTE. Eusébio se aproxima da Vizinha.

EUSÉBIO:

(depois de um longo de tempo olhando diretamente nos olhos dela) Só não entendi uma coisa… o que a “senhora” veio fazer aqui hoje?

A VIZINHA:

(responde, olhando para Toninho que está sentado diante de Salomão enquanto Paixão cobre, improvisadamente, o corpo com um saco de lixo) Vim… passei… eu só voltei pagar a minha conta, Toninho… Eusébio. A conta.

Ouve-se, vindo da frente do bar, o apito final do juiz, declarando vencedor, com dois gols de virada no segundo tempo, o time de Salomão: CORTE. Eusébio manda Toninho procurar uma terra rasa, um quintal, um jardim, para o corpo de Salomão: CORTE. O céu de Paraíso dos Perdões é tomado por uma chuva de fogos de artifício. Brilho, explosão. Torcedores espalhados pela cidade comemoram o título, comemoram o desempenho agressivo da grande artilharia do time. CORTE. Inês atravessa a cidade na sua bicicleta com abafadores de ouvido. Inês Viva, Inês Morta, com ódio, escuta alto seu coração.

Epílogo,

“O pior é quando as coisas se enrijecem em palavras, ficam duras, machucam ao serem jogadas, jazem mortas . Elas precisam ser incitadas, esfoladas, tornadas más, é preciso nutri-las e atraí-las para fora da casca, assobiar para elas, acariciá-las e espancá-las, carregá-las num lenço, adestrá- las. Têm-se roupas próprias, lava-se de vez em quando. Não se tem as próprias palavras, e nunca são lavadas. No princípio não era a palavra. A palavra está no final. É o cadáver das coisas. Que criatura estranha é o ser humano! Como põe coisas dentro do próprio corpo, trota ao redor sob a chuva e vento, faz das pessoas homúnculos, colando-as em si e enchendo-as de líquido sob gemidos de prazer! Meu Deus, deixa o olhar passar através das crostas e cortá-las 
(Nota final de 6 set. 1920, Bertolt Brecht em Augsburgo-Munique. p. 70 da tradução de André Vallias no volume Bertolt Brecht Poesia, Perspectiva.)

TRÊS MINUTOS À FRENTE DO FUTURO. A Vizinha está sentada na entrada do abatedouro. Ela veste roupas comuns, roupas de trabalho. Vemos lentamente os trabalhadores chegarem para mais uma jornada. Ela tira da bolsa um pequeno estojo. Dentro dele, maquiagens com data de validade vencida há anos. Os trabalhadores vão passando por ela, configurando dois planos. O segundo, que termina com a entrada deles na fábrica. O primeiro, com a mulher solitária que começa a se maquiar. Suas mãos tremem. Suas mãos tremem muito desde os dias gelados limpando as esteiras. Mesmo que as esteiras acabem, as mãos continuam. O tempo da terra é maior que o tempo do inferno. Com essas mãos a Vizinha reproduz a maquiagem do velho palhaço. O velho palhaço que lhe ensinou a odiar. A odiar para suportar a felicidade daqueles homens que trabalham para o assombro do mundo.

 A VIZINHA (cantando):

o assombro do mundo não descansa
o galo da manhã continua a trabalhar
Descanso o pássaro sem rumo As tantas voltas que a vida dá
desfeita a tristeza da minha sina
na invenção do palhaço posso agora
triste cambalear
vejam só ai que graça, Santa Agonia!
vejam só, sombra, mordaça Santa Agonia!
Tudo é noite, mas é solar

a arrogância dos Vivos impede que imaginem:
também os Mortos podem imaginar!

três minutos à frente do futuro
será o bastante para o destino me alcançar?

a arrogância dos Vivos impede que imaginem:
também os Mortos podem imaginar!

três minutos à frente do futuro
será o bastante para o destino me alcançar?

INÊS:

Vera, você lembra quando o rio passava aqui embaixo? Você lembra daquele som, o som do rio? A gente tinha a sensação de ser outro, cada vez que o rio passava. Tinha a sensação da dor menor. Minha mãe amava aquele rio. Amava ver o rio encher. Não tinha medo de enchente. Tinha medo de que o rio desaprendesse a enchente.

A VIZINHA:

Sua mãe era doida, Inês! Onde já se viu brincar com enchente…

INÊS:

(brincando) Sim, a doida da enchente!

A VIZINHA:

(rindo) Mas ela nunca viu uma enchente, pelo menos aqui em Paraíso dos Perdões. Aqui tudo é, desde sempre, na firmeza… rígido… Rígido como o espinho daquele roseiral.

INÊS:

Vocês viram muita coisa juntas, não viram? Da época do abatedouro…

Silêncio.

A VIZINHA:

(olhando Inês e depois de uma longa pausa) Inês, nesse mundo, o único medo que eu ainda tenho é o de que a enchente esqueça do rio. A enchente esqueça do rio.

Inês olha de rabeira para a Vizinha. Respira profundamente, olhando o céu, roxo, com nuvens laranjas, laranjas como uma fruta estragada. Pega as mãos da

Vizinha, tira do bolso da camisa o isqueiro da mãe, encontrado no jardim, e o coloca no centro daquelas mãos.

INÊS:

Olha, Vera. Olha só mais um pouco. Olha só mais uma vez. (fechando as mãos da Vizinha e fazendo com que ela aperte aquele isqueiro entre os dedos) Essa aqui, essa aqui é a minha sensação da dor menor.

Primeiro Corte, maio de 2022.