BRICS, COVID-19 e medidas para evitar a insolvência

BRICS, COVID-19 e medidas para evitar a insolvência

Mateus Rogério S. Baraldi
Ramon Barbosa Baptistella

A COVID-19 trouxe consigo uma crise sanitária sem precedentes na história recente, cujos impactos na economia já são sentidos e, provavelmente, ainda o serão num futuro próximo – e mesmo distante. Dessa maneira, pode-se dizer que a insolvência será uma questão cada vez mais presente nos embates judiciais do mundo inteiro, não constituindo exceção os Estados membros do BRICS.
Em decorrência disso, o presente artigo visa estabelecer de maneira comparativa as principais medidas tomadas pelos países membros dos BRICS para contenção dos efeitos da COVID-19 na economia, em especial no que tange à insolvência de empresas. Para tanto, foram utilizados como base os relatórios[1] da Associação Internacional de Profissionais de Reestruturação, Insolvência e Falência (INSOL International)[2] e indicadores econômicos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para os próximos anos.
Antes mesmo de adentrar as questões específicas referentes à cada país membro, cabe pontuar que, de maneira geral, o relatório demonstra que todos os Estados membros adotaram medidas relacionadas ao distanciamento social e suspensão das atividades de Fóruns e Tribunais. Nesse mesmo sentido, a maior parte dos países definiu como urgentes e prioritários os processos referentes a questões econômicas e empresariais, para evitar que a crise se agravasse.
A Índia adotou algumas medidas importantes, porém, em sua maioria não foram implementadas efetivamente. Dentre os destaques, há a ampliação de prazos para os processos de insolvência e para o pagamento de dívidas, além de uma ampliação do valor mínimo para entrada de um processo de insolvência. Ademais, o governo indiano anunciou uma proposta para excluir da definição de “inadimplência” as dívidas relacionadas à COVID-19, nos termos do Código de Falências da Índia, com a finalidade de evitar um desencadeamento de processos de falência[3].
A Rússia foi o Estado membro do BRICS que apresentou o maior número de medidas. Foram aprovadas emendas à Lei de Insolvência para lidar com a crise COVID-19, dando poderes ao Governo para introduzir uma moratória sobre a apresentação de petições de insolvência e prescrever outras medidas de apoio para os devedores abrangidos pela moratória, incluindo um procedimento simplificado para a aprovação de acordos de liquidação. Com base nestas alterações, o Governo introduziu uma moratória à apresentação de petições de insolvência de 6 de abril de 2020 a 6 de outubro de 2020[4].
A moratória aplica-se a empresas cuja atividade comercial principal constar da lista das indústrias mais afetadas pelo COVID-19, ou se a empresa estiver incluída na lista de empresas sistemicamente importantes para a economia nacional ou de empreendimentos estratégicos. A reforma suspende temporariamente a obrigação do devedor protegido apresentar uma petição de insolvência e limita os direitos de outras pessoas de apresentar petições de insolvência em relação ao devedor protegido durante o período de moratória[5].
As alterações prevêem, ainda, um procedimento simplificado para a aprovação de acordos de liquidação se o processo de insolvência de uma pessoa protegida começar dentro de três meses após o término da moratória. Além disso, um credor pode aprovar condições específicas de um acordo de liquidação com um devedor protegido durante o período de moratória, e será uma aprovação válida de um acordo na insolvência do devedor protegido[6].
As alterações à Lei de Insolvência introduziram novas regras que regulam a reestruturação da dívida para devedores protegidos. De acordo com as alterações, um devedor protegido que entrou com uma petição de insolvência durante a moratória pode solicitar a aprovação de um plano de reestruturação após o tribunal apresentar o primeiro procedimento de insolvência e realiza-se a primeira reunião de credores. Não há necessidade de aprovação do plano de reestruturação da dívida pelos credores, porém devem ser observados os critérios estabelecidos pela reforma[7].
Sendo assim, a Rússia conseguiu efetivamente implementar mudanças legislativas na área de insolvência, de forma a proteger setores estratégicos da economia do país.
Já o Brasil, de maneira geral, adotou uma postura propositiva, apresentando diversas medidas para o combate da insolvência. Porém, verifica-se que em grande maioria as medidas não saíram do papel, e quando saíram demonstraram-se insuficientes ou inadequadas.
Em 22 de março de 2020, o Presidente da República promulgou a Medida Provisória nº 927, que estabelece as medidas trabalhistas que podem ser adotadas pelos empregadores para garantir a proteção da renda e manter os contratos de trabalho durante o período de ‘estado de calamidade pública’. As novas medidas trabalhistas incluem, entre outros: ‘antecipação de subsídio de férias não vencidas para indivíduos’ e ‘concessão de férias coletivas’ – permitindo aos empregadores colocar os empregados em casa enquanto antecipam o pagamento de férias não vencidas; ‘Interrupção da atividade do empregador e estabelecimento de um regime especial de compensação do horário de trabalho’; e ‘diferimento para os empregadores da data de vencimento do pagamento do fundo de garantia especial’ que é devido a todos os funcionários de acordo com a legislação brasileira (FGTS)[8].
Em 1º de abril de 2020, a Medida Provisória nº 936 foi promulgada pelo Presidente da República criando o Programa Emergencial de Proteção ao Trabalho e Renda, por meio do qual foram estabelecidas medidas trabalhistas adicionais e complementares, incluindo ‘redução proporcional dos salários e da jornada de trabalho, por até 90 dias’ , ‘suspensão temporária dos contratos de trabalho, por até 60 dias’ e ‘criação do Benefício Emergencial de Proteção ao Trabalho e Renda’, por meio do qual o Governo Federal compensará com auxílio monetário os empregados colocados em programas de suspensão temporária ou redução proporcional[9].
Tais medidas não foram suficientes para reduzir o número de demissões pelo qual o país vem enfrentando ao longo da pandemia. No mesmo sentido, a medida de empréstimo do governo para garantia de empregos encontrou baixa aderência, demonstrando que não se adequou aos interesses dos empresários.
Em 2 de abril de 2020, o deputado Hugo Leal apresentou à Câmara dos Representantes o Projeto de Lei nº 1.397/20 que contém alterações transitórias à Lei de Insolvência Brasileira (Lei nº 11.101/05) que será válida até 31 de dezembro de 2020 ou pelo período de vigência do período de ‘estado de calamidade pública’, conforme estabelecido pelo Decreto Legislativo nº 6[10].
O Projeto de Lei acima cria um Sistema de Prevenção de Insolvência, por meio do qual todas as medidas de execução judicial e extrajudicial iniciadas em relação às obrigações vencidas após 20 de março de 2020 serão suspensas. Mais especificamente, após a publicação da Lei, todas as medidas de execução hipotecária serão suspensas por 60 dias, quando o devedor e o credor serão incentivados a renegociar suas obrigações, considerando o impacto econômico e financeiro causado pela pandemia de Covid-19. Se as partes não conseguirem fazer um acordo durante o período de 60 dias, o devedor terá o direito de iniciar um processo judicial de “negociação preventiva”, desde que haja evidências de uma redução de 30% da receita em comparação com o trimestre anterior. Após o ajuizamento do pedido de negociação preventiva, o juiz suspenderá as medidas de execução hipotecária por mais 60 dias e designará um negociador profissional para conduzir as discussões entre as partes[11].
O Sistema de Prevenção à Insolvência também altera disposições específicas relacionadas à recuperação judicial e à falência, prevendo, por exemplo, que: (i) as obrigações que vencerem após a publicação da Lei em relação aos planos de recuperação judicial ou extrajudicial homologados sejam suspensas por 120 dias, sem necessidade de convocar assembleias gerais de credores; e (ii) planos de recuperação judicial para pequenas e microempresas permitirão o pagamento de dívidas em até 60 parcelas mensais, em vez das 36 parcelas atualmente previstas na Lei, entre outras disposições que visam evitar a falência durante a pandemia[12].
Embora o Projeto de Lei nº 1.397/20 apresenta semelhanças com o que foi adotado na Rússia, ele foi intensamente criticado por juristas e especialistas da área de falência e Recuperações Judiciais[13]. Isto, pois, analisam que as medidas podem trazer impactos negativos, especialmente relacionados ao aumento exponencial de casos e a possibilidade de facilitação de fraude contra credores. Atualmente, o projeto se encontra aguardando votação do Senado, tendo sido aprovado pela Câmara.
Tendo em vista o exposto anteriormente com relação às medidas brasileiras, se faz necessário trazer para a análise as previsões da OCDE acerca do comportamento da economia brasileira no futuro próximo[14]: a previsão de retração do PIB em 2020 é de 7,4% e, em caso de haver uma segunda onda de contaminações, esse número vai para 9,1%. Também são consideráveis os dados de um levantamento realizado pela Boa Vista por meio do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) que indicam um aumento e 28,9% nos pedidos de falência entre maio e junho do corrente ano e o salto de 82,2% nos de recuperação judicial no referido período[15]. Tais números só evidenciam a necessidade de que sejam tomadas medidas efetivas que visem mitigar os efeitos da insolvência.
O Brasil não está sozinho nesse cenário desolador: as previsões da OCDE para o mundo não são das melhores. A expectativa é que haja uma retração de 6% no PIB Global e, no caso de uma eventual segunda onda do vírus, esse número sobe para 7,4%. Dentre os países membros do BRICS, os números mais animadores e as piores perspectivas são, respectivamente: 8% e 10% no caso da Rússia, 3,7% e 7,3% para a Índia, 2,6% e 3,7% na China e 7,5% e 8,5% no caso da África do Sul[16].
Cabe pontuar que tanto a China quanto a África do Sul não apresentaram medidas consideradas relevantes por essa análise para o enfrentamento da crescente insolvência que pode ser gerada em decorrência da pandemia. Na África do Sul, vale ressaltar, a situação que se projeta parece tão sombria quanto a do Brasil, sendo urgente e necessário que tais medidas sejam desenhadas e postas em prática para evitar maiores impactos econômicos. Apesar de os impactos previstos para a China serem os menores de todo o bloco, ainda assim pode ser interessante que haja um planejamento no sentido de evitar que os impactos cresçam para além do previsto.
Diante desse cenário, fica evidenciada a importância do enfrentamento antecipado das questões relativas à insolvência. Países que não adotaram medidas mais bem estruturadas e mesmo países que já estudaram ou adotaram medidas, como a Índia e o Brasil, podem e devem procurar conhecer algumas ações adotadas ao redor do mundo, como a questão da moratória proposta pela Rússia para a apresentação de petições. O futuro aponta para uma mar de incertezas, muitas das quais podem ser combatidas ou terem seus efeitos amenizados em algum grau por meio de um planejamento antecipado – e a insolvência parece ser uma delas.

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[1] INSOL. “Global Guide: Measures adopted to support distressed businesses through the COVID-19 crisis”. Disponível em: < https://themalaysianlawyer.com/wp-content/uploads/2020/04/INSOL-World-Bank-COVID.pdf >. Acesso em 22 ago. 2020.
[2] INSOL. Home Page. Disponível em: < https://www.insol.org >. Acesso em 22 ago. 2020.
[3] INSOL International – World Bank Group Global Guide, India. Disponível em: <http://insol-techlibrary.s3.amazonaws.com/34256fea-358e-4e67-8873-4afb89abd420.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAJA2C2IGD2CIW7KIA&Expires=1598167740&Signature=e6B%2B3jqBizRhebg%2BCISfbx8mUmE%3D>. Acesso em 23 de Agosto de 2020.
[4] INSOL International – World Bank Group Global Guide, Russian Federation. Disponível em: <http://insol-techlibrary.s3.amazonaws.com/04b0f4e6-6592-4073-97db-e5d9532e8915.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAJA2C2IGD2CIW7KIA&Expires=1598167738&Signature=DarmrzVduuuolW0RsuXqaX%2B3dAE%3D>. Acesso em 23 de Agosto de 2020.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Idem.
[8] INSOL International – World Bank Group Global Guide, Brazil. Disponível em: <http://insol-techlibrary.s3.amazonaws.com/83073be7-12ba-4e8a-b892-b19f7e1d9d6b.pdf?AWSAccessKeyId=AKIAJA2C2IGD2CIW7KIA&Expires=1598167742&Signature=i0mC99vLmpw7jKgCqIfEsm5YA8c%3D>. Acesso em 23 de Agosto de 2020.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Idem.
[12] Idem.
[13] OLIVEIRA FILHO, Paulo Furtado de. OS IMPACTOS DO PROJETO DE LEI 1.397/2020, Processos de recuperação judicial tendem a se alongar até 2022, sobrecarregando a Justiça. FOLHA DE S. PAULO. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/05/os-impactos-do-projeto-de-lei-13972020.shtml>. Acesso em: 23 de Agosto de 2020.
[14] OCDE. “A economia mundial enfrenta um caminho difícil para a recuperação”. OCDE: 10 jun. 2020. Disponível em: < https://www.oecd.org/economy/a-economia-mundial-enfrenta-um-dificil-caminho-para-a-recuperacao.htm >. Acesso em 22 ago. 2020.
[15] ANGELO, Tiago. “Pedidos de falência sobem 28,9% em junho; de recuperação judicial, 82,2%”. Conjur: 14 jul 2020. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jul-14/pedidos-falencia-sobem-289-junho-recuperacao-822 >. Acesso em 22 ago. 2020.
[16] OECD Data. “GPD and spending – Real GPD forecast”. Disponível em: < https://data.oecd.org/gdp/real-gdp-forecast.htm >. Acesso em 22 ago. 2020.