Rota da Seda Digital na África

Rota da Seda Digital na África

Por Octávio Henrique Alves Costa de Oliveira

Desde seu anúncio em 2013, a Iniciativa de Cinturão e Rota (BRI) rapidamente se tornou um dos principais projetos de expansão geopolítica chinesa e de cooperação para o desenvolvimento a nível global. Contando com 151 membros de todos os continentes [1], o projeto possui também um braço digital, a chamada Rota da Seda Digital (DSR), anunciada em 2015 e lançada oficialmente em 2017, pretendendo estender o alcance da influência chinesa em uma área extremamente sensível e disputada internacionalmente: a tecnologia. Dentre as obras e iniciativas promovidas pela DSR, estão previstas a construção de cabos de fibra ótica terrestres e submarinos, links de satélite, além intensificação da cooperação em áreas como economia digital, inteligência artificial, nanotecnologia, computação quântica, big data, computação em nuvem e cidades inteligentes [2].

Dentre as regiões pelas quais o projeto perpassa, o continente Africano possui uma histórica deficiência infraestrutural, ainda mais latente no campo das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), a qual pode ser adereçada pelos projetos levados à cabo pela DSR. A crescente relação Sino-Africana é um elemento importante a ser analisado tanto no processo de desenvolvimento africano como um todo, quanto no desenvolvimento da sua infraestrutura digital, sendo representativa das discussões sobre o estado da arte no campo das relações Sul-Sul, da presença chinesa globalmente, bem como seus efeitos na disputa hegemônica entre China e EUA no campo da tecnologia.

No continente africano, a DSR possui crescente importância, tendo sido articulada por meio do Fórum de Cooperação China-África (FOCAC, na sigla em inglês), uma plataforma multilateral abrangente criada em 2000 e que representa, atualmente, o mais importante e impactante fórum diplomático sino-africano [3]. A presença chinesa na África no setor de TICs é importante para que a região escape do mapa da exclusão digital. Segundo a União Internacional de Telecomunicações (ITU, na sigla em inglês), órgão da ONU para as TICs, em 2021, 2,9 bilhões de pessoas não tinham acesso à internet, cerca de 37% da população mundial. No caso africano, somente 33% da população possui acesso à internet, enquanto 871 milhões de pessoas permanecem fora do mundo digital [4]. Neste sentido, a DSR pretende contribuir de ponta-a-ponta no que tange ao acesso à internet e a criação de um ecossistema digital, influenciando muitos aspectos das TICs no continente africano; desde a construção de bens públicos que requerem engenharia pesada como cabos submarinos, satélites e toda infraestrutura de transporte de dados – backbone -, até sistemas operacionais, celulares e apps [5].

Se trata de uma iniciativa central para a disputa sino-estadunidense pelo mercado de TICs na África. Este contencioso é um conto de duas narrativas: sob uma perspectiva liberal, as parcerias chinesas via empresas do setor tech na DSR apoiam regimes autoritários, causando brechas de segurança para os países receptores, em um processo duplo de exportação de autoritarismo e extração de dados locais. Do ponto de vista chinês, potências tecnológicas transnacionais como Microsoft, Google, Facebook e Amazon configuram uma “hegemonia cibernética” na internet, sem respeito pela soberania cibernética de outras nações e os dados dos seus cidadãos, como lembrou o CEO da TikTok em seu depoimento ao congresso dos EUA [6]. De fato, em 2018, essas quatro empresas juntas possuíam ou arrendavam mais da metade da largura de banda submarina mundial [7].

Um fator a ser considerado para o sucesso da China no mercado africano de TICs é a sua abordagem em relação à cooperação e investimento. Diferentemente das economias ocidentais, a China adota uma postura pragmática, “sem amarras”, em acordos de cooperação e investimento, abstendo-se de sugerir ou forçar quaisquer medidas regulatórias ou projetos específicos com base em seu modelo a ser adotado pelos países africanos [8]. Desta forma, a China se expõe a diferentes ambientes políticos, casando seus próprios projetos e empresas com as configurações governamentais locais, em uma cooperação baseada na soberania dos Estados. Nesse processo, os países caracterizados como “autoritários” ou “autocráticos” são tratados igualmente como nações “democráticas”, o que torna a China um parceiro adequado para muitos governos africanos. No setor de auxílio, esse foco e agência dados aos governos locais foram caracterizados por Gagliardone (2019, p. 43) [9] como a abordagem chinesa de state-strings attached.

Assim como outros projetos realizados no âmbito da BRI como um todo, os projetos da DSR envolvem atores e temas extremamente sensíveis do ponto de vista dos direitos humanos e da segurança internacional, como o fornecimento de equipamentos de vigilância para países considerados autoritários e ditatoriais. Contudo, é de se levar em consideração que a China tem sido capaz de prover soluções de TICs em regiões que não conseguiram angariar apoios financeiros externos por fatores de risco político e complexidade dos projetos desenvolvidos. A controversa atuação chinesa permite relações mais equânimes, onde o interesse econômico e geopolítico chinês se compatibiliza com históricas e urgentes necessidades materiais dos governos locais africanos.

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[1] CHINA. China Economic Information Service. List of countries that have signed cooperation documents with China to jointly build the “Belt and Road” – China Belt and Road Network. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2023.
[2] JINPING, Xi. 2017. Work together to build the silk road economic belt and the 21st Century Maritime Silk Road. CGTN, Washington, DC. Disponível em: . Acesso em: 01 out 2022.
[3] SIBIRI, Hagan. FOCAC at Twenty: A “Bargained Institutional Framework” for Shared Impacts. China Quarterly of International Strategic Studies, v. 7, n. 02, p. 199-217, 2021; BODOMO, Adams. Africa-China-Europe relations: conditions and conditionalities. Journal of International Studies, v. 12, n. 4, 2019.
[4] ITU. Measuring digital development: facts and figures 2021. Geneva: ITUPublications, 2021. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2022.
[5] ADEGOKE, Yinka. The real reason China is pushing “digital sovereignty” in Africa. 2021. Rest of World. Disponível em: . Acesso em: 01 out. 2022; AGBEBI, Motolani. 2022. China’s Digital Silk Road and Africa’s Technological Future. Council of Foreign Relations.
[6] OREMUS, Will. TikTok hearing obscures wider issue of Americans’ online privacy. Disponível em: . Acesso em: 23 abr. 2023.
[7] SATARIANO, Adam et al. How the Internet Travels Across Oceans. The New York Times, Cad: 0, 10 mar. 2019. TechnologyDisponível em: . Acesso em: 27 abr. 2023.
[8] BRAUTIGAM, Deborah. The Dragon’s Gift the Real Story of China in Africa. Oxford: Oxford University Press, 2011; CALLAHAN, William A. China. Oxford: Oxford University Press, 2012; GAGLIARDONE, Iginio. China, Africa, and the Future of the Internet. London, UK: Zed, 2019; GAGLIARDONE, Iginio. China’s information infrastructures in the Horn. Routledge, 2022; MOHAN, G.; LAMPERT, B. Negotiating China: Reinserting African Agency into China-Africa Relations. African Affairs, v. 112, n. 446, p. 92–110, 1 jan. 2013; SHAMBAUGH, David L. China Goes Global. Oxford: Oxford Univ. Press, 2014.
[9] Op Cit.