Sistemas de pagamentos internacionais dos BRICS, moeda comum, e desdolarização

Por Nicole Ayub

Durante a reunião dos ministros de finanças dos BRICS em fevereiro de 2024, em São Paulo, o ministro russo apresentou a proposta de um sistema de pagamentos para os BRICS, possivelmente utilizando tecnologia blockchain. Essa proposta visa a uma compensação de transações internacionais que seja “independente e despolitizada” [1]. Meses depois, em outubro, a proposta russa começou a ganhar forma com um documento preparado pelo ministério das finanças da Rússia e pelo banco central, distribuído a jornalistas antes da Cúpula que ocorrerá entre 22 e 24 de outubro [2] (* nota de rodapé ao final do texto). Anteriormente, o Brasil havia sugerido um sistema que não utilizasse o dólar americano, como parte de um movimento para reduzir a dependência da moeda estrangeira com a criação de uma moeda para o comércio entre os membros do grupo [3]. Assim, é importante esclarecer as diferenças entre uma plataforma de pagamentos e uma possível “moeda dos BRICS”.

Sistemas para liquidar transações internacionais possuem a função de realizar pagamentos entre contas bancárias que se encontram em diferentes países. Quando uma pessoa ou empresa precisa efetuar uma transação internacional, é necessário um intermediário para realizar a compensação entre duas contas bancárias — semelhante a uma transação nacional, na qual um banco atua como intermediário entre o pagador e o receptor. O sistema mais utilizado atualmente para isso é o SWIFT, que leva de dois a três dias para completar a compensação.

Os mecanismos de pagamento não determinam qual moeda será utilizada, mas sim as partes envolvidas escolhem a moeda de sua preferência. Não é possível esquecer, no entanto, que o mercado é pragmático. A segurança, a facilidade e o custo de empregar cada moeda impactam na decisão sobre a moeda utilizada nas transações internacionais. No caso das moedas, a taxa de câmbio e as taxas de juros atreladas aos contratos de financiamento são fatores a serem considerados.

Por isso, no caso das iniciativas dos BRICS, é fundamental distinguir entre um sistema de pagamentos semelhante ao SWIFT, mas operado pelos países dos BRICS, e uma moeda comum. O sistema de pagamentos regional proposto pelos BRICS refere-se principalmente à infraestrutura e aos mecanismos utilizados para facilitar transações financeiras entre os países membros. Esse sistema pode oferecer uma plataforma segura e eficiente para processar pagamentos transfronteiriços, reduzindo a dependência de infraestruturas dominadas pelo Ocidente. Isso, por sua vez, pode fortalecer a autonomia financeira dos BRICS e aumentar sua capacidade de resistir a pressões externas. Por outro lado, a moeda comum envolve a criação de uma nova unidade monetária que seria compartilhada entre os membros do bloco.

Contudo, ao contrário de uma moeda comum, um sistema de pagamentos regional não implica necessariamente a criação de uma nova unidade monetária. Em vez disso, ele se concentra na facilitação das transações financeiras entre os países membros, mantendo a diversidade de moedas nacionais. Já uma moeda comum é diferente. Ela pode ser semelhante ao euro, a moeda da União Europeia, na qual os países abrem mão de suas moedas nacionais e de sua autonomia monetária, ou pode ser inspirada na proposta de Keynes, em 1944, de uma moeda que seria utilizada apenas para o comércio internacional, sem promover a integração econômica completa de um grupo disperso geograficamente.

Há 80 anos, as decisões tomadas durante a conferência de Bretton Woods marcaram o início de uma nova configuração do sistema monetário internacional. Desde então, a moeda-chave utilizada na economia internacional passou a ser o dólar americano. Isto é dizer que todas as moedas são “conversíveis” em dólares (podemos trocar reais, ienes, rúpias por dólares) que, por sua vez, é amplamente aceito como a moeda na qual muitos contratos internacionais são denominados e as transações internacionais são realizadas. Nesse caso, o dólar serve não apenas como meio de pagamento, como unidade monetária (preços e valores são denominados em dólares), mas também como reserva de valor.

E como acontecem as transações internacionais? Quando brasileiros desejam exportar seus produtos para o Japão, por exemplo, denominam o preço de seus bens em dólares e recebem, dos japoneses, em dólares. Sem que precisem sair de seus países, os japoneses depositam a quantia em dólares em uma conta com titularidade de brasileiros que, por sua vez, irão converter os dólares recebidos em reais brasileiros para que possam usar no Brasil. Pessoas de quaisquer países podem realizar com maior facilidade trocas internacionalmente quando há uma moeda que é aceita na maior parte das transações.

Desde que os brasileiros troquem reais por dólares, podem utilizar essa moeda para comprar produtos de japoneses, indianos, australianos, sul-africanos e ingleses, sem a necessidade de trocar reais por ienes, rúpias indianas, dólares australianos, dólares sul-africanos ou libras esterlinas. Isso porque o dólar funciona como reserva de valor no atual sistema monetário internacional, e pode ser prontamente convertido em qualquer moeda sem perda de valor, ou pode ser o meio de pagamento utilizado para adquirir bens cujo preço já é denominado em dólares. Nesse sentido, na hipótese, por exemplo, de o Brasil ter déficit comercial com um país e superávit com outro, desequilíbrios no comércio bilateral não implicam em excesso ou escassez de uma moeda nacional específica, em razão do comércio ser frequentemente realizado em dólares americanos (ou euros). O excesso de uma moeda nacional específica favorece transações bilaterais em detrimento da ampla escolha por bens no comércio internacional, uma vez que teria que ser utilizada em bens e serviços denominados nessa moeda.

Pessoas de todas as nacionalidades sabem que podem converter suas moedas nacionais em dólares, e que estão sujeitas às taxas de câmbio entre suas moedas e o dólar, além de que podem utilizar instrumentos financeiros como swaps cambiais ou hedges para tornar mais seguras suas operações nessa moeda, protegendo a estabilidade financeira de suas empresas das flutuações da taxa de câmbio e da incerteza quanto ao valor futuro da moeda. Como o dólar é a moeda mais utilizada no comércio internacional e no fluxo de investimentos e de aplicações financeiras internacionais, há uma diversidade de instrumentos financeiros disponíveis nessa moeda. Se as transações fossem realizadas em outras moedas, poderia haver maior dificuldade para formar o instrumento financeiro adequado pois há necessidade de que haja uma contraparte disposta a realizar a operação na moeda em questão. Assim, quanto mais pessoas utilizam a mesma moeda, há uma maior disponibilidade de instrumentos financeiros que eleva a segurança das operações, além de maior liquidez implicando em menor risco e custo de conversão.

Agora, para que a transação seja concretizada é preciso que o dinheiro seja transmitido de uma conta e depositado em outra. Na maior parte das transações internacionais, a moeda utilizada é o dólar americano (e o euro) e a transação é concretizada com o intermédio de um sistema de pagamentos. Hoje, o principal sistema de pagamentos utilizado para transações internacionais é o SWIFT.

O SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) é uma rede global de comunicação financeira que permite que bancos e outras instituições financeiras enviem e recebam informações sobre transações financeiras de forma segura e padronizada. Em termos simples, o SWIFT é um sistema de mensagens utilizado para facilitar transferências de dinheiro entre instituições em todo o mundo, proporcionando um meio seguro para transmitir instruções de pagamento, detalhes do beneficiário e outras mensagens relacionadas às transações financeiras [4]. Este sistema é fundamental para as operações de pagamento internacionais e para a comunicação entre bancos em diferentes países.

Em contraposição ao SWIFT, a iniciativa dos países do BRICS tem base na tecnologia blockchain, que funciona como um livro de contas digital onde todas as transações são registradas. Mas, como funcionaria o blockchain nesse sistema? Imagine uma corrente feita de elos, onde cada elo contém informações sobre uma transação. Uma vez que um elo é adicionado à corrente, ele se torna imutável. Essa estrutura torna o sistema mais seguro, já que tentativas de alterar uma transação exigiriam a modificação de todos os elos subsequentes, o que é praticamente impossível em uma rede descentralizada. Além da segurança, a descentralização elimina um ponto central de controle, tornando o sistema mais resistente a ataques e falhas.

Nesse sentido, a proposta do novo sistema de pagamentos é de uma estrutura mais centralizada dentro de cada país, enquanto mantém uma abordagem descentralizada em nível internacional, com sistemas nacionais separados que sejam interoperáveis com uma única infraestrutura integrada de múltiplas moedas, utilizando um conjunto compartilhado de regras [5]. Adicionalmente, possivelmente utilizaria a Tecnologia de Registro Distribuído (Distributed Ledger Technology – DLT) para o sistema de pagamentos transfronteiriços com as transações registradas em múltiplas localizações ou nós em uma rede, em vez de serem centralizadas em um único banco de dados [6]. No sistema de pagamentos, uma rede de bancos comerciais nacionais estão interligados por meio dos bancos centrais dos países dos BRICS, de forma que a tecnologia blockchain é usada para armazenar e transferir tokens digitais respaldados por moedas nacionais o que permitiria que essas moedas fossem trocadas, evitando a necessidade de transações em dólares [7] [8].

Mas, qual a relação disso com o processo de “desdolarização”? O sistema, quando em funcionamento, proporcionaria uma forma rápida e segura para realizar transações em moedas dos países membros do BRICS e possivelmente seria imune a sanções políticas que visassem excluir países das operações (como ocorreu com a Rússia sendo impedida de utilizar o SWIFT [9]). Contudo, isso não elimina a necessidade de moedas que funcionem como reserva de valor no sistema monetário internacional (como o dólar americano e o euro), tampouco é equivalente ou similar a uma moeda comum para o bloco que seria um passo mais significativo na tentativa de gradual desdolarização.

Uma nova moeda comum apresentaria certas vantagens, pois, ao invés de eleger o real brasileiro, o rublo russo, a rúpia indiana, o renminbi chines, o dolar sul africano ou qualquer outra moeda nacional de um país dos BRICS para realizar transações (que podem utilizar o sistema de pagamentos transfronteiriço dos BRICS ou qualquer sistema alternativo), a moeda utilizada seria a nova moeda comum dos BRICS (e não o dólar) como meio de pagamento para a compra de bens e serviços entre membros do bloco.

Por exemplo, no caso do Brasil que realiza com grande frequência transações comerciais com a China ao invés de optar por realizar comércio em reais ou renminbis — caso no qual a China precisaria converter seus renminbis em reais para comprar do Brasil, ou o Brasil precisaria ter renminbis a sua disposição para conversão de reais nessa moeda, ou trocar essas moedas pela de outros países membros para comprar seus bens e serviços — a nova moeda funcionaria dentro do bloco de forma “análoga” a qual o dólar americano funciona no comércio internacional (comparação feita com ressalvas, para fins didáticos, pois há diferenças significativas).

Paulo Nogueira Batista Jr., integrante de um grupo de especialistas independentes que discutiu a reforma do sistema monetário internacional e a possibilidade de uma moeda dos Brics, propõe as seguintes características para uma nova moeda de reserva (NMR):

“Não seria uma moeda única, que substituiria as moedas nacionais dos países participantes. Não seria, portanto, uma moeda semelhante ao euro, emitida por um banco central comum. Seria uma moeda paralela, projetada para transações internacionais. As moedas nacionais e os bancos centrais continuariam a existir em seus formatos atuais. Não haveria perda de soberania e nem mesmo necessidade de coordenar as políticas monetárias. ” [10]

Essa sugestão, que lembra a proposta de Keynes de uma moeda que seria utilizada apenas para o comércio internacional, possui a vantagem de não enfrentar os obstáculos que uma intensa integração financeira exigiria, nem a existência de um banco central emissor da moeda e sem afrontar a soberania dos países envolvidos. Destaca-se que essa iniciativa não se confunde com a existência do Novo Banco de Desenvolvimento – NDB, que é um banco criado para financiar projetos para o desenvolvimento econômico dos países do bloco, com capital aportado pelos seus membros, mas que nada tem a ver com um sistema de pagamentos, nem com uma moeda comum.

Diante disso, reitera-se a importância de acompanhar as novas iniciativas dos BRICS que visam tanto facilitar as trocas econômicas entre seus membros, quanto contribuir para a desdolarização. Que fique claro, no entanto, que sistemas de pagamento transfronteiriços possuem objetivos distintos e contribuem de maneira diferente para a “desdolarização” do que uma nova moeda para o bloco que, por sua vez, também não seria um substituto perfeito ao dólar.

(* nota de rodapé) Ressalta-se que a proposta teria participação voluntária, e não é um sistema oficial já em operação. Houve a divulgação pela imprensa [11] do “teste” de um sistema chamado “Brics Pay” [12], porém, não encontramos fontes confiáveis para confirmar sua veracidade, de forma que esse artigo ignora sua existência.

REFERÊNCIAS
[1] “’Mais eficiente’ e ‘menos assimétrico’? Sistema de pagamentos do BRICS é viável, avalia economista”
https://noticiabrasil.net.br/20240228/mais-eficiente-e-menos-assimetrico-sistema-de-pagamentos-do-brics-e-viavel-avalia-economista-33298760.html
[2]https://www.reuters.com/world/brics-summit-russia-push-end-dollar-dominance-2024-10-16/
[3] https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2023-08/lula-diz-que-moeda-do-brics-reduzira-vulnerabilidades
[4] https://www.investopedia.com/terms/s/swift.asp
[5]https://www.ledgerinsights.com/russia-outlines-proposal-for-brics-dlt-cross-border-payment-system/
[6] https://www.investopedia.com/terms/d/distributed-ledger-technology-dlt.asp
[7]https://www.reuters.com/world/brics-summit-russia-push-end-dollar-dominance-2024-10-16/
[8] https://www.bloomberg.com/news/articles/2024-10-11/russia-pitches-brics-payment-system-aiming-to-break-us-dominance
[9] https://www.bbc.com/news/business-60521822
[10] https://www.brasildefato.com.br/2024/10/18/brics-como-chegar-a-uma-nova-moeda-de-reserva-internacional
[11] https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/russia-realiza-teste-oficial-do-brics-pay-novo-sistema-de-pagamentos-do-grupo/#:~:text=Opera%20Entrevista-,R%C3%BAssia%20realiza%20teste%20oficial%20do%20BRICS%20Pay,sistema%20de%20pagamentos%20do%20grupo&text=O%20governo%20da%20R%C3%BAssia%20introduziu,feira%20(18%2F10).
[12] https://brics-pay.com/

Biografia da autora:
Nicole Ísis de Ayub é economista e advogada. Doutora em Economia, mestre em Desenvolvimento Econômico, graduada em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Concluiu seu primeiro pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (INCT-PPED/UFRJ). Além disso, possui pós-graduação em Gestão e Estratégia de Empresas, bem como Direito e Economia pelo Instituto de Economia da UNICAMP.