Benedicta da Trindade do Lado de Christo

(11/09/1800*-11/10/1875) (Cliquez ici pour voir la version française)

* Data do registro de batismo.

Benedicta da Trindade do Lado de Christo se destacou pelo pioneirismo no magistério público paulista no século XIX. A cidade imperial de São Paulo, capital da província, foi contemplada com a criação de uma aula de meninas em abril de 1828, seis meses após a lei de 1827 que criou legalmente as aulas de primeiras letras para meninas. Ela foi a primeira professora pública na cidade e a única a ocupar o cargo entre 1828 e 1853. Para ingressar, concorreu à vaga participando do primeiro concurso aberto para cadeiras públicas femininas.

Foi reconhecida como uma boa professora pelos governantes locais e provinciais e, também, censurada por deixar de ensinar os saberes previstos por lei, denominados “prendas domésticas”. Entre as décadas de 1830 e 1850, a ausência das prendas em suas aulas constituiu uma “querela” na instrução pública paulista.

Outro pioneirismo se deu com a atuação em bancas examinadoras das novas ingressantes – as bancas até a década de 1840 eram compostas exclusivamente por examinadores homens.

A mestra foi professora voluntária no “Seminário de Educandas”, um asilo de órfãs da cidade. Em 1859, logo após a aposentadoria, ofereceu-se para ocupar a cadeira de primeiras letras do “Seminário” (recém-criada), mas sua proposta não foi aceita.

Faleceu em 1875 e a nota publicada no “Correio Paulistano” informava que “Após longos padecimentos faleceu hontem, em avançada idade, a sra. D. Benedicta da Trindade do Lado de Christo, professora publica há muitos anos aposentada […] seu viver era ultimamente obscuro e pobríssimo e o foi até a hora extrema, porém sempre digno de consideração e apreço”. (“Correio Paulistano”, 12/10/1875, p.3)

 

Ingresso por meio de exame e atuação como examinadora

A novidade da instrução elementar feminina foi acompanhada pela inauguração da experiência em exames públicos para esta população – práticas já vivenciadas pelos candidatos ao magistério masculino. A primeira professora, Benedicta da Trindade, fez exame em abril de 1828, na Capital da Província com mais duas candidatas. As três foram consideradas aptas, no entanto apenas duas foram providas imediatamente, conforme a ata publicada nas páginas do jornal “O Farol Paulistano” (07/05/1828, p.1). Benedicta da Trindade na capital e Joaquina Roza de Vasconcellos em Itu (esta professora transferiu-se para Sorocaba); a terceira, Benedicta Maria de Jezus, tornou-se professora em São Sebastião, posteriormente; as três estrearam como candidatas para cadeiras femininas e se expuseram a provas orais frente a uma banca exclusivamente masculina.

A provisão de Benedicta da Trindade ocorreu em 29 de abril de 1828 e a abertura da escola, quase um mês depois, no dia 28/05/1828, no número 39 da Rua S. José, e foi anunciada no jornal “O Farol Paulistano” (24/05/1828, p. 470).

Na década de 1840, a professora Benedicta da Trindade foi incorporada a comissões examinadoras que avaliavam as novas “opositoras”. De acordo com Leda Rodrigues (1962, p. 81), desde 1844, Benedicta da Trindade era convocada a comparecer ao palácio do governo compondo comissões “constituída[s] de bacharéis da Faculdade de Direito e clérigos”. Ao lado destes, de professores da escola normal e da escola de primeiras letras masculina, a professora ocupava o simbólico último lugar da lista, mas incluída na lista e figurava entre a “fina flor” do magistério da Capital da Província de São Paulo.

 

Pertencimentos sociais e familiares

No requerimento de inscrição, a candidata Benedicta da Trindade anexou uma cópia de sua certidão de batismo. Por meio desta, sabe-se que ela contava aproximadamente 28 anos à época do exame (foi batizada em 1800), que sua mãe se chamava Ana Buenno e era solteira. O pai era incógnito. O batismo foi realizado na Freguesia da Sé com Manuel Buenno de Azevedo, solteiro, ajudante, e Gertrudes M. Buenno, casada, como padrinhos, todos da mesma freguesia. A mãe e os padrinhos compartilhavam a residência na freguesia da Sé e o sobrenome Buenno. Não obstante Benedicta da Trindade lecionasse na Sé, não carregava o sobrenome “Buenno”.

Anna Buenno, mãe de Benedicta, era solteira e a filha era celibatária e bastarda. No Brasil oitocentista, os códigos de conduta moral classificavam, hierarquizavam e distinguiam os sujeitos concedendo ou negando acesso e impondo interdições (ALGRANTI, 1992). Como uma mulher livre, (possivelmente) pobre, bastarda e filha de mãe solteira, é provável que o acesso à instrução pública e ao magistério tenha sido crivado por alguns obstáculos.

Atuação na preparação de candidatas para o magistério

Ao se aposentar, a professora Benedicta da Trindade não abandonou o magistério. Ofereceu-se para lecionar no “Seminário de Educandas”, em 1859, mas não assumiu a cadeira.

Em seguida, publicou um anúncio no jornal “Correio Paulistano”, dispondo-se a instruir senhoras nas matérias necessárias para a realização dos exames para ingresso no magistério, ou seja, engajou-se na preparação de candidatas mulheres para concursos públicos, disposta a ensinar gratuitamente as que fossem muito pobres. Disputava, assim, um espaço na formação das novas gerações docentes do sexo feminino. Como modo de conferir legitimidade e prestígio à sua própria trajetória, ela destacou que algumas ex-educandas foram suas discípulas e já haviam se tornado professoras.

 

Aposentadoria

Entre o anúncio de 1859 e a notícia do seu falecimento em 1875, localizamos apenas dois registros sobre a mestra, ambos referentes à aposentadoria. O “Almanak da Província de São Paulo para 1873” (p. 84) trouxe os valores das pensões dos professores aposentados. O valor da pensão de Benedicta da Trindade era de 920$000 anuais, o maior valor entre docentes do sexo feminino. O anúncio do falecimento informava que à época, “seu viver era obscuro e pobríssimo”. Os últimos valores localizados de sua aposentadoria são discrepantes com uma condição tão precária. Uma hipótese é a de que a mestra Benedicta não tenha recebido a aposentadoria no período final da vida, talvez por estar fisicamente incapaz de cumprir exigências burocráticas para o recebimento.

 

A produção existente em história da educação sobre a educadora

A mestra Benedicta da Trindade foi objeto de estudo de duas importantes pesquisadoras da história da educação feminina paulista, Leda Rodrigues e Maria Lúcia S. Hilsdorf (RODRIGUES, 1962; HILSDORF, 1997, 1998, 2000). Ambas destacaram a resistência da professora em contemplar, em suas aulas, as prendas domésticas previstas pela lei.

Leda Rodrigues (1962) dedicou-se a uma extensa pesquisa sobre a instrução feminina em São Paulo desde o período colonial até a Proclamação da República e publicou o livro “A Instrução feminina em São Paulo”. A obra discorre, inventaria fontes sobre o tema e problematiza questões, numa perspectiva diacrônica. No interior desta obra ampla, a autora destaca momentos significativos da trajetória da mestra Benedicta da Trindade, tais como: o concurso de ingresso, as denúncias por não ensinar as prendas domésticas e a sua atuação como examinadora.

Já Maria Lucia Hilsdorf dedicou-se mais especificamente à trajetória da mestra. Ela partiu da questão da ausência das prendas, apontada por Rodrigues (1962), e formulou hipóteses sobre as possíveis motivações que levavam Benedicta a “teimar em dissociar a boa educação das ‘súditas do império e mães de família’ do aprendizado das prendas domésticas” (HILSDORF, 1997, p. 97). A autora cogitou desde que talvez a mestra não ensinasse por não saber praticá-los, até uma possível “convicção” da professora, uma intenção de possibilitar, para suas alunas, um futuro diferente das opções mais comuns naquele cenário. Para a autora, o comportamento de Benedicta da Trindade não significava que “ela infringia uma norma e revertia uma imagem, [que] era ‘avançada para a sua época’ ou até feminista” (HILSDORF, 1997, p. 99); mas que ocorria um movimento de pressão da sociedade, via legislação e normatização, “para fazer com que todas a mulheres figurassem o ‘anjo do lar’”. Ou seja, ela considera que este processo de imposição dos “lavores feminis” às aulas públicas deu-se ao longo do século XIX via fiscalização, denúncias e admoestações às mestras. Maria Lucia Hilsdorf problematiza, também, o pertencimento familiar de Benedicta a partir da informação de que ela era irmã de “Jesuíno Buenno de Azevedo, o popular padre Colchete” e de Maria Leocádia do Sacramento. Para a autora, tratava-se de “uma família de ‘devotos’, que viviam, com intermitências, reunidos em congregação e adotavam o magistério particular como meio de subsistência” (HILSDORF, 1997, p.98). Os fragmentos da trajetória e pertencimentos da mestra foram interpretados, por Maria Lucia Hilsdorf, em relação com a história das ações educativas religiosas na Província de São Paulo.

Trata-se, portanto, da pioneira como professora pública de primeiras letras da Província de São Paulo que, ao longo da vida, tomou iniciativas inovadoras, como a de se inscrever para um concurso no magistério, fazer exame, ser aprovada, lecionar por 32 anos cumprindo exigências administrativas do cargo, atuar como examinadora de outras candidatas, além de acionar outras possibilidades de docência em cena.

 

Palavras-Chave: Escolas de primeiras letras femininas; inauguração do ensino público feminino no século XIX em São Paulo; prendas domésticas.

 

Referências

ALGRANTI, L. M. (1992). Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia. Estudo sobre a condição feminina através dos conventos e recolhimentos do sudeste – 1750-1822. São Paulo: Faculdade de Filosofia Ciências Humanas e Letras (FFLCH-USP).

HILSDORF, M. L. (1997). Mestra Benedita ensina Primeiras Letras em São Paulo. Seminário Docência, Memória e Gênero (pp. 95-104). São Paulo: Plêiade.

HILSDORF, M. L. (2010). Tão longe, tão perto. As meninas do Seminário. Em M. STEPHANOU, & M. H. BASTOS, Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Vol. II: Século XIX (pp. 52-67). Petrópolis-RJ: Vozes.

RODRIGUES, L. M. (1962). A instrução feminina em São Paulo. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas.

 

Arquivos

– Arquivo Público do Estado de São Paulo

– Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

– Site Family Search

 

Autoria: Fabiana Garcia Munhoz