Violeta Leme da Fonseca (Dora Lice)

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Violeta Leme Fonseca foi professora do ensino primário, em escolas isoladas, rurais e urbanas e em grupos escolares, nas regiões de Batatais, Jundiaí, Itatiba e cidade de São Paulo (bairro de Pinheiros), no período de 1905 a 1935, data na qual se aposentou. Formou-se em 1904, pela Escola Normal da Capital de São Paulo. Presidente da Cruz Vermelha, seção de Itatiba, em 1918 participou ativamente do atendimento às vítimas da epidemia da “Gripe Espanhola”, no hospital de emergência instalado no Grupo Escolar Coronel Julio Cesar. Era conhecida na época como “excelsa educadora” e “escritora de largos recursos literários” (Imprensa Oficial, Itatiba, 02 de julho de 2005).

Com o pseudônimo de Dora Lice, publicou em 1928 o romance de cunho profissional, O Calvário de uma Professora, no qual, expressando as vozes das normalistas, dialoga criticamente com as práticas e discursos educacionais das décadas de 1910 e 1920. Faz de seu livro um romance de tese, denunciando a inconsistência dos pronunciamentos de exaltação à figura da professora primária face às precárias condições materiais e ausência de perspectiva pedagógica adequada aos contextos reais da maioria das escolas que recebiam crianças pobres, filhos de operários e trabalhadores rurais.

 

A representação literária da carreira docente e a constituição do campo educacional paulista

Podemos inserir o livro de Dora Lice no âmbito das disputas entre professores, intelectuais e dirigentes políticos pela autoridade e competência em dirigir o campo educacional em formação. Neste momento de constituição da carreira e espaço profissional – início do século XX – os professores responsáveis pela Revista de Ensino (1902-1919), órgão da Associação Beneficente do Professorado Publico Paulista, por exemplo, construíram um discurso marcado por ambiguidades e oscilações. A argumentação girava em torno de dois binômios: questões pedagógicas e questões econômicas por um lado, competência técnica e probidade moral por outro lado.

A definição de saberes específicos, – a pedagogia , metodologia e prática de ensino, somado a discursos de exaltação da função social da educação e das qualidades morais dos professoras e professores representaram um mecanismo de organização do campo educacional. Os inspetores e diretores vão procurar legitimidade por meio das funções técnicas, separadas da prática docente, e os professores, por sua vez, vão buscar inserção no campo com a demonstração da experiência pessoal. Com algumas diferenças de atuação, pois os professores ascendiam na carreira, ocupando cargos de direção, enquanto as professoras mantinham-se na docência.

A narrativa literária de Dora Lice apresenta a peculiaridade de mostrar esse momento da história do pensamento pedagógico e da constituição da profissão docente. Iniciava-se no estado de São Paulo a política de administração e controle da rede de ensino, seguindo-se o modelo teórico das ciências da educação. O romance em contraponto faz a defesa dos saberes e experiências docentes construídas na prática cotidiana da sala de aula. Por meio de histórias de vida ficcionais de mulheres professoras espera dar visibilidade à atuação feminina, às professoras anônimas.

 

O gênero biográfico e história da profissão docente

Uma variante desta prática discursiva de traçar trajetórias de vida está presente na Revista de Ensino, com a criação da seção “Pantheon Escolar” em 1907. Reportagens e artigos foram escritos para homenagear personalidades consideradas importantes para a construção de uma tradição e de uma memória da escola pública paulista. A publicação de biografias e textos de celebração tinha dupla intenção: a) mostrar as péssimas condições de trabalho, de maneira indireta, amena, leve, sem se posicionar abertamente contra o governo; b) produzir um discurso pacificador, propondo como naturais as carências do professor e como ideal do bom professor ter uma vida de sofrimento.

O romance de Dora Lice confere uma significação diferente às biografias das personagens-professoras. A autora procura identificar as causas das péssimas condições de trabalho e da educação pública. Essas causas não estariam situadas no tipo de formação ou incompetência das professoras normalistas, tomadas em sua generalidade, como era hábito sugerir e sim à ausência de políticas educacionais voltadas às camadas pobres da sociedade. O discurso não é pacificador. As biografias ficcionais no romance surgem como um “corpo de imagens” que celebra não os grandes vultos, mas a professora do ensino público. O recurso retórico da narrativa romanceada postula certa atitude interpretativa, a qual poderíamos chamar de “atitude analítica”. Sugere-se que as sínteses, isto é, as teorias pedagógicas e discursos políticos, descarnados dos atores sociais, não são potentes para descrever das questões educacionais.

A autora, explicitamente contrária a ações administrativas de diretores e inspetores, abre as “portas das escolas”, como diz no prefácio, para que o Secretário de Estado do Interior veja o ensino pelo olhar das professoras e não pela visão dos técnicos e dirigentes do ensino. Alguns temas discutidos à época atraem a atenção da protagonista e narradora no romance, por meio de histórias e situações de enredo. São eles: 1. Presença significativa das mulheres no exercício da profissão e as dificuldades enfrentadas por elas em escolas isoladas; 2. Defesa de autonomia pedagógica no ofício docente e afirmação da legitimidade dos mestres no trato das coisas do ensino; 3. Reivindicação de uma formação pedagógica específica voltada ao atendimento da população pobre das áreas rurais e urbanas; 4. Luta contra o analfabetismo e melhoria na educação popular, entendida como um esforço civilizatório.

A obra mereceu uma resenha crítica contestatória dos episódios narrados, escrita pelo Diretor do Ensino Sud Mennucci publicada no Jornal O Estado de São Paulo, em 15 de dezembro de 1928. Violeta Leme em 1952 reedita o livro, revelando-se como autora. Interpõe um novo prefácio, com trechos do texto do resenhista e, item por item, justifica a construção dos personagens e narrações, demonstrando que se tratava de relatos de situações reais vividas em sua trajetória profissional. O motivo do uso de pseudônimo deveu-se à impressão da autora de que “os mandatários de várias categorias…não perdoariam o atrevimento de um comentário a seus atos”. (LEME, Violeta, 1952, p. 5).

Dora Lice e o movimento feminista

Em seu livro, outras dimensões do ambiente cultural de sua época podem ser acessadas e talvez compreendidas. Defende posições não somente em relação à educação, mas também a respeito da figura feminina. Usa expressões fortes para marcar a condição social da mulher professora. Ao tratar de aspectos da administração escolar, ressaltando o autoritarismo, o compadrio e o clientelismo reinante no exercício e ascensão na carreira, faz uma leitura cruzada de gênero e poder, inserindo um discurso militante feminista à interpretação. No romance, Hermengarda, protagonista “teve ímpetos de abandonar essa carreira ingrata, que eleva nulidades, só por apresentarem a forma de homem, e abate e humilha sem distinção a mulher, tenha ou não habilitações.” (DORA LICE, 1928, p. 54).

O movimento feminista, fundamentado na reivindicação de educação feminina e na concepção do magistério como sendo um trabalho feminino são ideias mestras no romance. D. Eugênia, por exemplo, como personagem que representa a professora mais antiga do grupo escolar, com uma sabedoria especial, faz a publicidade dessas convicções. Incentiva a necessidade de educação sexual, a conquista do direito ao voto, mudanças na mentalidade feminina. A mulher, responsável pela educação masculina, deveria promover nas mentes dos meninos o princípio da igualdade entre os sexos. Representando uma tendência esclarecida nessa luta pela igualdade total entre os sexos não se deixa iludir por um discurso compensatório, que, no fundo, visava manter a mulher em uma situação de desigualdade. Afirma D. Eugênia: “Para não nos darem a emancipação que pedimos, exploram o nosso sentimentalismo. E nos enganam com as velhas e batidas phrases – rainhas do lar, anjos, fadas, e nem sei o que mais.” (DORA LICE, 1928, p. 71)

Podemos identificar, no romance, portanto, um trabalho intelectual de totalização da realidade, a partir de certas motivações sociais. Como texto de combate a uma imagem negativa do trabalho da professora do ensino primário, a autora elabora uma nova representação. O texto funcionaria como um espaço de reflexão sobre as identidades das professoras e um manifesto de luta.

 

A produção existente em História da educação sobre a educadora

A dissertação de mestrado de Dislane Zerbinatti Moraes, Literatura Memória e Ação Política: uma análise de romances escritos por professores paulistas, defendida em 1996 na FEUSP, toma o livro e professora escritora Dora Lice como objeto de análise literária e historiográfica. Aspectos da história da educação na Primeira República (1889-1930) foram discutidos, tais como: representações sobre o magistério, a escola isolada, diretores e inspetores, a prática pedagógica e a posição do romance no debate pedagógico. Um pouco da história da recepção do livro no campo educacional paulista também foi traçado nessa pesquisa. Sud Mennucci, em 1928, jornalista no O Estado de São Paulo, ex-Delegado Regional do Ensino em Campinas e Piracicaba, publicou resenha sobre o romance. Em 1930, em Crise Brasileira da Educação, o autor refere-se novamente ao livro. Em 1956, Antonio Viera, em A professora: ensaio sobre contos relacionados com a atividade dos professores inspira-se em Dora Lice ao desenhar novas histórias sobre professoras.

Na década dos anos de 2000 o livro transformou-se em documentação preciosa para o ensino e a pesquisa em história da educação, didática e formação de professores. Vem sendo analisado em trabalhos sobre narrativas e escritos de professores, presença feminina da profissão, autonomia didática, práticas e organização do trabalho nas escolas.

 

Palavras-chave: biografias de educadoras, história da profissão docente, fontes literárias.

 

Arquivos: Documentação esparsa com dados biográficos e trajetória profissional da educadora encontram-se no Acervo Digital da Biblioteca Nacional, no Arquivo do Museu “Padre Francisco de Paula Lima” e no arquivo da Imprensa Oficial de Itatiba.

 

Bibliografia:

DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri; ANTUNES, Fátima Ferreira (1993). Magistério primário: profissão feminina, carreira masculina. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas (86).

DORA LICE. (1928). O calvário de uma professora. São Paulo: Estabelecimento Gráfico Irmãos Ferraz.

CATANI, Denice Barbara. (2003). Educadores à meia-luz: um estudo sobre a Revista de Ensino da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo, 1902-1918. (originalmente tese de doutorado defendida na FEUSP em 1989). Bragança Paulista/SP: EDUSF.

____________________(1994). Memória e Biografia: O Poder do Relato e o Relato do Poder na História da Educação. In.______ Ensaios sobre a circulação dos saberes pedagógicos. Tese de Livre-Docência. São Paulo: FEUSP.

____________________ (1994). A participação das mulheres no movimento dos professores e a imprensa periódica educacional (1902-1919). Projeto História, Dossiê Mulher & Educação. São Paulo-SP, PUC (11).

LEME, Violeta (Dora Lice) (1952). O Calvário de uma professora. 2ª. ed., São Paulo: Gráfica Mercúrio, 1952.

MORAES, Dislane Zerbinatti (1996). Literatura, memória e ação política: uma análise de romances escritos por professores paulistas. (dissertação de mestrado). São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

________________________ (2006). As máscaras da profissão docente: um estudo sobre as biografias de filósofos, pedagogos, políticos e professores publicadas na Revista de Ensino (1902-1919). IV Congresso Brasileiro de História da Educação. Goiânia – GO: Universidade Católica de Goiás: SBHE-Sociedade Brasileira de História da Educação.

 

Autoria: Profa. Dra. Dislane Zerbinatti Moraes (FEUSP)