Xapurí (Brasil), 1944 – 1988
Por Carlos Walter Porto-Gonçalves
O líder popular Francisco Alves Mendes Filho nasceu no seringal Porto Rico, no município de Xapuri (Acre) em 15 de dezembro de 1944, filho de pais nordestinos que migraram para a Amazônia. Desde os onze anos trabalhou como seringueiro, compartilhando o destino comum àquelas famílias cujos filhos, em vez de ir à escola, trabalham para extrair o látex. Chico Mendes teve a fortuna de encontrar aquele que seria seu grande mestre, Fernando Euclides Távora, que lhe ensinou não só a ler e a escrever, mas também a trilhar o caminho que o levaria a se interessar pelos destinos do planeta e da humanidade. Euclides Távora era um militante comunista que participou ativamente no levante comunista de 1935 em sua cidade natal, Fortaleza, e, ainda, na Revolução de 1952, na Bolívia. Retornando ao Brasil pelo Acre, Euclides Távora foi morar em Xapuri, onde se tornou mestre de Chico Mendes. O discípulo sempre falava com grande carinho de seu mentor político, que nunca mais veria depois do golpe de 1964. A educação passou a ser uma obsessão de Chico Mendes, à qual dava um sentido político muito prático, pois acreditava que, sabendo ler e escrever, o seringueiro não mais seria roubado nas contas do barracão do patrão.
Em 1975, já militando nas comunidades eclesiais de base – as CEBs –, fundou o primeiro sindicato de trabalhadores rurais no Acre, em Brasileia, com seu amigo Wilson Pinheiro. Em março de 1976, organizou com seus companheiros o primeiro empate, no Seringal Carmen. O empate consistia na reunião de homens, mulheres e crianças, sob a liderança dos sindicatos, para impedir o desmatamento da floresta, prática que se tornaria emblemática da luta dos seringueiros. Nos empates, os seringueiros alertavam os “peões” a serviço dos fazendeiros de gado – geralmente de fora do Acre – de que a derrubada da mata significava a expulsão de famílias de trabalhadores. Convidavam os peões a associar-se à sua luta, oferecendo-lhes “colocações” e “estradas” de seringa para trabalhar e, firmes, expulsavam-nos dos seus acampamentos de destruição, impedindo o trabalho. Os empates tiveram papel decisivo na consolidação da identidade dos seringueiros e essa forma de resistência acabou por chamar a atenção de todo o Brasil, sobretudo após o assassinato de Wilson Pinheiro, em 1980.
Chico Mendes insistiu com os empates, mobilizando os seringueiros, mesmo depois que as autoridades governamentais, diante da repercussão de sua resistência, começaram a fazer projetos de colonização. Chico Mendes recusou-os, uma vez que eles levariam o seringueiro a tornar-se um colono-agricultor, confinado a 50 ou 100 hectares de terra, o que demonstrou sua lúcida compreensão do significado daquela estratégia governamental que encontrava eco até mesmo entre militantes sindicais. Chico Mendes valorizava o modo de vida seringueiro, que usava uma pequena parcela de terra junto da casa para fazer seu roçado e criar pequenos animais e fazia a coleta de frutos e resinas da floresta. Para os seringueiros o objeto de trabalho não é a terra, e sim a mata. Assim, mais que por terra, Chico Mendes e os seringueiros lutavam pela floresta e foi essa firme convicção que o levou a gozar de apoio dos seus pares e aproximá-lo dos ecologistas, o que fazia com desconfiança, como cansou de manifestar a amigos. Como comunista, Chico Mendes desconfiava não só dos ecologistas, mas também de uma série de movimentos sociais que começavam a se destacar naqueles anos (mulheres, negros e homossexuais), que, acreditava, dividiam a luta dos trabalhadores. Todavia, como homem prático e com grande capacidade de subordinar os princípios à vida, sem perder o sentido da sua luta, ele percebeu que os ecologistas, ao defenderem a floresta, eram aliados importantes na luta que travava, além de permitirem que os seringueiros saíssem do isolamento. Os ecologistas, por seu lado, reconheceram a importância da luta dos seringueiros na preservação da floresta. Dessa aliança, Chico Mendes formulou um princípio que caracterizaria sua filosofia: “não há defesa da floresta sem os povos da floresta”, que bem pode ser estendido a outras situações de defesa da natureza.
Chico Mendes percebeu que a luta dos seringueiros era de interesse da humanidade e, pouco a pouco, foi firmando a convicção de que, além da exploração dos trabalhadores, o capitalismo tinha uma força destrutiva e voraz que precisava ser combatida e, com isso, tornou-se um dos maiores próceres do ecossocialismo. Com sua fina percepção holística, recusou tanto um sindicalismo como um ecologismo restrito. Em 1984, em um encontro nacional de trabalhadores rurais, Chico Mendes defendeu uma proposta ousada para a época, a de que a reforma agrária deveria respeitar os contextos sociais e culturais específicos e, um ano depois, ao fundar o Conselho Nacional dos Seringueiros em Brasília, já desenvolvia, com seus companheiros, a proposta de Reserva Extrativista – uma verdadeira revolução no conceito de unidade de conservação ambiental que, pela primeira vez, não mais separava o homem da natureza. A Reserva Extrativista – que Chico Mendes costumava chamar de reforma agrária dos seringueiros – consagrava todos os princípios ideológicos que ele propugnava, pois, ao mesmo tempo que cada família detinha a prerrogativa de usufruto da sua colocação, com sua casa e com suas estradas de seringa, a terra e a floresta eram de uso comum – ideia comunitária inspirada nas reservas indígenas. Com base nisso, ele empenhou-se, com seu amigo Ailton Krenak, na construção da Aliança dos Povos da Floresta, unindo índios e seringueiros e invertendo a história de massacres instigados pelas grandes casas aviadoras e seringalistas do complexo de exploração de borracha. Nessa ação, também, o profundo sentido humanístico da ideologia de Chico Mendes ganhava sentido prático. Registre-se que a proposta da Reserva Extrativista contemplava, ainda, uma inovadora relação da sociedade com o Estado. Embora a propriedade formal da reserva fosse do Estado – no caso, do IBAMA –, a gestão dela passava à responsabilidade da própria comunidade, cabendo ao órgão público supervisionar o cumprimento do contrato de concessão de direito de uso que, nesse sentido, era o pacto que se estabelecia entre o Estado e os seringueiros.
Em toda sua vida, Chico Mendes jamais deixou de se dedicar à construção de instrumentos de lutas sociais e políticas, tendo sido dirigente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT), assim como do Conselho Nacional dos Seringueiros. O legado político e moral de Chico Mendes é enorme e pode ser visto tanto pelos intelectuais que reconhecem a originalidade de suas ideias e práticas políticas como pelos políticos que, tanto no seu estado como no seu país, têm os cargos associados às lutas que protagonizou. Seu trabalho foi reconhecido no Brasil e no mundo: em 1987 ganhou, em Londres, o Prêmio Global 500 da ONU e, em Nova York, a Medalha da Sociedade para um Mundo Melhor; em 1988, recebeu o título de Cidadão Honorário da cidade do Rio de Janeiro.
Sua enorme crença na capacidade humana de superar as contradições do mundo em que vive, se organizando social e politicamente, foi capaz de inspirar todo um conjunto de ideias e práticas que vê a natureza, com sua produtividade e capacidade de auto-organização (neguentropia), e a criatividade humana na sua diversidade cultural como base de uma racionalidade ambiental (Enrique Leff) ou, como ele gostava de chamar, de uma sociedade que combine socialismo com ecologia.
Em 22 de dezembro de 1988, assassinos ligados à União Democrática Ruralista puseram fim à vida de Chico Mendes, pensando calar aquela voz que, tal como uma poronga – instrumento que os seringueiros carregam sobre a cabeça para iluminar as trilhas quando saem, ainda de noite, para trabalhar –, continua iluminando caminhos.