Primeiras Dramaturgias

Luiz Luís Paulo

Man is born
man lives
and man dies
– it’s all humanity

Personagens:

Luiz: 83 anos. Homem, cis-gênero, heterossexual. Niteroiense, viúvo, botafoguense e pai de sete filhos (seis biológicos e uma de criação). Ex-jogador de futebol, ex-técnico e sapateiro. Recebe uma mixa aposentadoria que se soma à pensão deixada por sua falecida esposa, Alcineia, mais conhecida como Neia. Será acompanhado em seu leito de morte pela nora Deisy e receberá eventuais visitas de seu filho [Luiz] Henrique. Sofre de demência. Está internado há seis semanas no Hospital Santa Martha, no bairro de Santa Rosa, em Niterói. Um princípio de pneumonia foi o que o levou até lá. Em determinado momento, após quase dois meses de internação, contrairá covid-19, que o conduzirá à intubação e ao coma. Luiz é pai do padrinho de Paulo, mas não tem relação alguma com este. Não conhece Luís.

Luís: 59 anos. Homem, cis-gênero, homossexual. Niteroiense, namorado de Pedro, que mora no apartamento em frente ao dele, no mesmo prédio e no mesmo corredor. Músico, compositor, escritor e artista plástico. Recebe desde a década de 1990 uma aposentadoria por invalidez, em decorrência de ter-se descoberto portador do vírus HIV (era prática corrente na época aposentar-se compulsória e imediatamente pessoas nesta condição, sob a premissa de que não viveriam muito). Durante a pandemia de covid-19 no Brasil, teve de suspender suas atividades presenciais cotidianas, como as aulas de natação e consultas médicas regulares. Vem padecendo de um transtorno oftálmico denominado uveíte, ocasionado em decorrência das baixas taxas de imunidade provocadas pelo HIV, e que está causando progressiva perda de visão em seu olho esquerdo. Luís é muito amigo de Paulo.

Paulo: 28 anos. Homem, cis-gênero, homossexual. Niteroiense, morador do Rio de Janeiro, onde vive só, e solteiro. Ator, escritor e produtor cultural. Durante a pandemia de covid-19, decidiu sair do Rio e retornar, depois de dez anos fora, para a casa dos pais, no interior do estado. O sexo e o dia a dia no trabalho são do que ele certamente sente mais falta. O que irá acarretar grande sofrimento para seus dias, além de toda barbárie e desgoverno relacionados à pandemia e noticiados diariamente pelos veículos de comunicação, serão os constantes desentendimentos e falhas de comunicação com sua família em relação à sua sexualidade. Depois de algum tempo recluso, ele passará, descuidadamente, a sair pelas ruas e bairros próximos à casa de seus pais buscando aventuras sexuais com fortuitos parceiros desconhecidos, a quem geralmente aborda oferecendo um boquete.

ATO
LUIZ

Prólogo

Homens morrem

“A memória é que nem doença de pele: coça e arde.” Luiz acorda; se arde e se coça. Chamusca no esquecimento um vislumbre de qualquer-coisa. Claro breu. Ele procura. Alguém ou algo, um rosto amigo. Que dia é hoje? Amigo-quem? Cadê Neia? Já foi. Passantes de branco dão o tom da ladainha – sugerem. Um troço atravessado na garganta, um corpo. “Tá difícil”, tenta virar-se; “que porra é essa”, uma linha se estica; “cadê Neia”, imagina ter balbuciado algo. Um rapaz de branco vem. Antes de ele chegar, outra vez a cerração.

Luís acorda: embaçado. Esfregou tanto antes de dormir que deve ter machucado; coçou e ardeu como nunca antes. O sol bate lá fora, o galo canta (porque sim, há um galo). Esqueceu-se de rezar à noite. Hoje é dia de mercado, mas cadê Pedro? Não sai de casa desde março. Domingo choveu bem, esse sol de agora não faz sentido algum. Será que ainda leva tempo? Tudo isso. Toda essa espera. Essa maratona imóvel. Essa baita curva. Esse dia que não chega. O colírio talvez acabe amanhã. Alongou-se e levantou-se: uma espera de cada vez.

Luiz está morrendo. Luís também.

Mas quem não está?

I

Homens
ou Falar do homem é fácil

as almas, para as quais, pelo destino,
outros corpos são necessários, bebem, junto à onda do leteio rio,
as incúrias águas e o longo oblívio

03/12/2020

11:53
Oi Paulo! Como é que tá indo aí, as coisas do covid? Tudo certo?

15:15
querido!
daquele jeito rs
nenhuma novidade efetiva
estive no rj esses dias, fiz um bate-volta rápido
decidi colocar meu apartamento à venda, por ora
mas tá bem difícil de aparecer gente interessada
os tempos são horríveis pra isso (também)
no mais, nada de novo
com essa coisa de segunda onda rolando
voltamos a apertar os cintos por aqui
e vocês? como estão?
vi que foi aniversário do Pedro esses dias
cometi a gafe de não mandar nada pra ele
vou escrever ainda hoje…

15:29
sim, tomara que vc consiga vender
Aqui andamos meio que normalizando a vida, mas com o uso de máscaras e álcool

15:32
agora eu tô voltando a ficar com medo, confesso
Pedro me disse que você já voltou a nadar

15:34
sim, o pessoal da piscina diz que os produtos pra
higienizar a água imunizam toda a atmosfera e não tem perigo, apesar de a gente respirar forte…

17:57
pois é, eu sei que o cloro mata qualquer tipo de microrganismo que houver na água (não sei se é bem isso, mas imagino que seja rs)
interessante essa questão que você levantou, da respiração fora d’água
não tinha me atentado a ela
eu tava querendo entrar na natação agora em janeiro também
mas com esse lance de segunda onda, nem sei se vai rolar
talvez eu entre pra natação no mar
aqui tem, é o mesmo preço da piscina e também é em ambiente aberto, acho que ajuda, né?
você já fez?

18:03
sim, o pessoal da piscina garante que é segura a atmosfera em torno.
já fiz natação no mar e me deu pavor de não ver a raia no fundo. Aí, nunca mais fui.

18:04
entendi
eu vou tentar fazer, porque na verdade tinha até mais vontade do que na piscina (eu amo o mar)

18:22
hummmm…

18:23
mas já me falaram que o ideal, pra quem nunca fez nada como eu, é começar na piscina mesmo

18:25
sim, mas não vá ficar como eu, dependente da raia.

19:10
você já fazia na piscina antes de tentar no mar, né? sentiu diferença? mais dificuldade no movimento, maior resistência da água ou algo do tipo?

19:37
é melhor nadar no mar, a gente fica mais leve.
Mas a gente nada às cegas, então tem que ter coragem de ir, porque o mar é escuro,
vc fica sem guia.

22:19
eu tô bem animado
tenho só que ver se a covid vai dar uma trégua, pra eu poder fazer rs
o diêgo tá fazendo, aqui em rio das ostras (cidade vizinha)
e tá adorando

04/12/2020

09:50
o Diêgo fica muito gostoso quando faz exercícios, né :)

10:01
sim hahaha
bom dia!

Foco em Paulo, sozinho em seu quarto.
Senta-se na cama com um violão:

_Parado aqui_

O céu estava azul
O sol tão brilhante
E eu aqui parado penso, onde vai minha cena
D’eu aqui parado pensando, onde vai a semana
Com tanto acontecimento
Com o homem, com a mulher
Com a árvore da calçada, com a sombra da árvore na casa
E o ar parado e o meu ar parado
Sentado aqui quieto cantando
O céu estava azul, o sol tão brilhante
O céu do beija-flor voar
O sol das janelas abrir
O céu da árvore crescer
Da sombra da árvore na casa
E eu aqui parado
Vendo você passar na rua rindo me olhando
E eu parado aqui, sentado aqui quieto cantando
Quieto aqui, parado aqui
Olhando aqui, pensando aqui
Feito um prisioneiro
Feito um cachorro preso
Feito um peixe no aquário
Feito um bicho na jaula
Feito um velho na sala
Feito a rosa na jarra
Quieto aqui, parado aqui
Olhando aqui, pensando aqui
Cantando aqui

II

Homens no escuro

Luiz sai do coma.

III

Homens e caixas

A vida em baús é triste: jamais me esquecerei das frestas por onde se finge respirar. Não morrer é a ordem do dia: permanecer. A vida em baús é monótona: dorme-se, acorda-se, sonha-se e dói-se. Ciclos sem fim de uma existência vácua. A vida em baús é tenebrosa – para o que vive e para o que morre. Ficar e partir quase que dá no mesmo. A vida em baús não tem graça: é caixa em cima de caixa, troço em cima de troço, palavra em cima de palavra, pá de cal em cima do sexo. Morrer é igual a dormir. A vida em baús é obtusa, mesquinha e chata – dá pra contar até dez sem ver o tempo passar. Aguarda-se lá e, de lá, pode-se ver o mundo; mas ver só não nos serve. Não presta. Não contribui. Toda minha infância atravessei de dentro: baús também são casas – podem ser. E o cheiro viscoso, íntimo, familiar de madeira pinho é do que, hoje, eu mais sinto falta. Sem dúvida.

A vida em baús é um inferno e eu não volto pra dentro dela.

Eu vivo sempre no fundo do  meu peito
Eu vivo só, mergulhado
O céu cai como um mar entre os edifícios
E eu ando na rua embaixo feito um peixe

entre

ATO

Luís
[áudio 1]
Oi, Paulo.
Que legal que você tá fazendo esse trabalho sobre mim.
E sobre a minha produção também.
Eu tenho uma dificuldade de entender esse nome. Esse verbo: performar. Eu entendo como você… você fazer, né. Você se dramatizar. Você se afirmar. E eu acho que o meu trabalho é muito isso: de ficar repetindo um tema… que sou eu mesmo. E que isso, essa teimosia em manter esse tema, é uma tentativa de afirmar uma coisa que é negada, que é sempre negada e eu fico afirmando, e reafirmando. Eu acho que é isso.

[áudio 2]
Eu sinto que eu preciso ficar explicando, né. Dar uma satisfação. Pra você e pra mim. Como se eu tivesse que afirmar pra mim mesmo uma coisa que eu não entendo, e que eu não sei. Que eu fico buscando através da minha produção… buscando uma explicação, uma… uma revelação, uma tentativa de descobrir o que… o que eu não sei. [risos]

[áudio 3]
Mas eu acho que essa sua afirmação tá correta, sim. Eu fico falando de mim o tempo todo. É uma forma de eu existir, né. De eu me colocar, de eu me impor. É uma coisa meio corajosa minha. Vamos ver se eu vou existir com isso.

[áudio 4]
Ou se vai ser só uma tentativa, entendeu? [risos]
E eu vou ficar tentando existir pra sempre.

ATO
LUÍS

I

Um homem é um homem

Luiz sufoca e revira numa turva bruma turva de medo e solidão de pai de sete filhos. Luís tateia toda a noite toda buscando o exato momento em que achou que estaria a sós e a salvo dos perigos do mundo – ou quem sabe procura apenas por seus óculos. Luiz tenta se virar mas não consegue: ninguém para ajudar. Luís na noite procura Pedro: ele lá está. Luiz pensou ter visto um vulto se aproximar: poderia ser a enfermeira, a cuidadora, Deisy a nora ou a clichê Morte. A Morte não seria um vulto – que graça teria? Não vê-la. Descrê-la. Luís agora agarra a mão daquele que ama, “que foi?” Nada – estava procurando seus óculos. Luiz não sabe exatamente onde está nem quem é; no entanto, reconhece ainda a existência da amarga finitude daquilo que já não identifica mais com precisão, mas a que outros (lúcidos) chamam vida. Dói saber. Luís pensa na grandeza de tudo isso e na (também imensa) sensação de alívio que é encontrar os óculos perdidos na cama em meio a alta madrugada: quando acordar, escreverá uma canção sobre isso. Luiz respira, vê, ouve – mas não absorve. Luís capta, transmite, pondera, regula, prevê, salienta, manipula, articula e comunica – o quê? A quem? Por quê? Estará a salvo por isso? Ao menos salvo de si mesmo? O desejo opera. O pau estufa dentro do pijama. Será isso viver? Todo o sentido? O mundo entre as pernas. O mundo com pentelhos, abarrotado de sangue, inteiriço, eriçado, arguto e duro. O mundo em ebulição, colérico, efervescente. Luiz não se lembra mais – tem tanto tempo! Luís acende um baseado, não vai conseguir dormir mesmo.

Luiz perdeu a lucidez.                                                       Luís está translúcido.

II

Homens em ação

Opa, tranquilo? Tudo bem? Posso me aproximar um pouco? Vou tirar a máscara, tudo bem? Um minutinho só.

Desculpa te incomodar, viu? – vi que você tá aí relaxando, curtindo a brisa da tarde, pegando uma fresca…
Vou ser bem rápido, pra não te atrapalhar tanto.
Então, quê que acontece? Meu nome é Paulo e eu tô atravessando esse momento maluco de pandemia, covid e tal, aqui em Macaé, na casa dos meus pais (eu moro no Rio, na real). Tô cumprindo com o home office na casa deles – eles moram aqui no bairro ao lado, o São Marcos, não sei se você conhece. Você é daqui da cidade? Ah, que bacana…

Pois é, eu tô aqui desde março do ano passado: vim achando que isso ia durar dois ou três meses, no máximo, e acabei ficando direto – loucura, né? Tenho nem previsão de retorno.
Essa situação parece que só piora, né?

Segunda onda parece que tá vindo pior do que a primeira – sim, exatamente! Mas até que a gente lá tá bem tranquilo em relação a isso: ninguém ficou doente, tamo fazendo o isolamento direitinho (meus pais são diabéticos e hipertensos, os dois, então nem pensar em dar mole com isso, né).

Não, de jeito nenhum. Mas o quê que rola? Até aí tudo tranquilo. Mas tem um único problema:
é que eu sou gay.

Claro que não, problema nenhum com isso. Muito pelo contrário (risos). Só que eu também transo, né? E transo à beça. E aí, com tudo isso de pandemia rolando, quarentena e isolamento desde março – do ano passado! –,
tu pode imaginar a seca que eu tô. Tá osso!
E aí eu não vou ficar saindo de casa pra fazer sacanagem e arriscar levar doença pros velhos em casa, né? Aí não rola…
E é aí que eu chego onde quero chegar:

Tu só precisa botar pra fora – mais nada.
Eu vou agachar rapidinho (a rua tá tranquila, eu chequei, não tem ninguém vindo de nenhum dos lados), vou fazer o que preciso fazer e meto o pé. Se liga: vai ser super tranquilo,
eu não preciso saber seu nome, não preciso saber se você tem namorada, se é hétero, não quero saber de nada.
A única coisa que tu precisa fazer é abrir o velcro do seu short, depois é só lazer – deixa comigo.

Tem certeza?
Olha lá, é como diz o outro, né – um boquete e um copo d’água não se nega a ninguém.
Tu não quer mesmo dar uma gozada gostosa nessa tarde quente? Tu não precisa fazer nada, nem vai ter esforço nenhum: é só abrir o velcro.
Tem certeza mesmo?

Então tá beleza – calma, não vou mais insistir.
Já parei, amigo. Não precisa de violência, não.
Tô indo já, pode ficar aí de boa.
Tranquilo, não tá mais aqui quem falou.
Boa tarde aí pra você.

Têm coisas que são da ordem do não-dito.

Foco em PAULO, sozinho, sentado no meio-fio:

_Céu_

Se eu não te beijo é como astrologia sem céu
Eu posso até criar asas, mas eu não voo
Eu posso até criar asas, mas eu não saio do chão
Sexo sem beijo é solidão

Se eu não te beijo é como poesia sem céu
Eu posso até criar ritmo e verso, mas fica frio
Eu posso até criar crina e rabo, mas não cavalgo
Eu posso até criar crina e rabo, mas não galopo
Pode até crescer chifre e rabo, mas eu não fervo
Sexo sem beijo é solidão

Se eu não te beijo é só pornografia sem céu
É pornografia sem céu, sem céu, sem céu

Como posso ser seu anjo, sem o céu do seu beijo
Como posso ser leve como a nuvem, sem o céu do seu beijo
Como posso ser suave como a brisa, sem o céu do seu beijo
Como posso ser azul, sem o céu do seu beijo
Como posso ter ternura, ter doçura, ser macio, ser romântico, ser feliz sem o céu do seu beijo
Sem céu, sem céu, sem céu

Se eu não te beijo é como astrologia sem céu
Se eu não te beijo é como poesia sem céu
Se eu não te beijo é só pornografia, sem céu
Sem céu, sem céu, sem céu

III

A visão dos homens

Nada impede de afirmar que o olho acaba por se habituar a essas condições e por se adaptar a elas, se não é o contrário que se produz sob forma de uma lenta degradação da visão arruinada com o passar do tempo por esse avermelhamento fuliginoso e vacilante e pelo contínuo esforço sempre frustrado, sem falar do abatimento moral que se reflete no órgão.

19/02/2021

20:31
Oi Luís!
Como você está?
Melhorou do olho?

23:22
oi, Paulo! Eu fiz o tratamento, mas o olho não melhorou, não. Quer dizer, só um pouquinho. Perdi assim uns 50% da visão esquerda. A cada vez perco um pouquinho. Mês que vem, volto no médico para o acompanhamento e vou ver se vai ser isso mesmo ou se ainda posso esperar ganhar mais um pouco dele. Não estava conseguindo ir por conta do covid.
E vc aí, como tá andando tudo?

25/04/2021

10:58
Querido!
Que maravilha essas lives todas que cê tem feito
Você tá muito pop rs
Tô gostando de ver
Como vão as coisas por aí?

11:03
oi, Paulo! Estamos bem,
voltando ao novo normal devagar…
tou tratando do olho novamente,
deu uma piorada.
e vc, tem se ocupado de que?

IV

O que faz do homem
um homem

“E daí?”

Têm coisas que são da ordem do não-dito.

V

O inferno dos homens
ou Homens vivem

Três homens.
Um dia.

(Sugere-se que as três cenas seguintes
ocorram em simultâneo.)

§

Luiz abre os olhos. Tenta observar à sua volta mas mal consegue mover o pescoço. Deisy não está. Nem Henrique. Uma mulher anda em círculos, num entra-e-sai do quarto que parece querer desnorteá-lo. Deve ser a enfermeira. Ele seria capaz de lembrar seu nome? Certamente não. Talvez se acenasse. Ou se respirasse de maneira profunda, chamando assim sua atenção. Talvez se sacudisse agitadamente o crânio, fazendo-o chocar-se repetidas vezes contra a maca. Ou se se mijasse inteiro. Talvez se urrasse, feito bicho em agonia. Quer gritar mas consegue apenas, por fim, mover a ponta dos dedos dos pés – há um investimento de energia aqui. Dos pés não, na verdade de um dos pés, o esquerdo (“ao menos esse funciona”, ele conclui). Mas não adianta: ela não o vê. Não o observa. Mal o enxerga. Talvez tenha adquirido já a materialidade de um fantasma. De um vulto. Um sopro de ar. Há também um gosto amargo na boca (antibiótico? Antiinflamatório? antidiurético? antidepressivo?). Uma vontade incontornável de mijar. Sede não. Fome talvez. Aquela infeliz de branco não vai mesmo olhar pra ele – seria ela a morte? Personificada? Encarnada logo ali à sua frente? Pelo menos, até este momento ela o ignora; talvez seja enfim um bom sinal. Provavelmente será melhor deixar como está. Quem sabe voltar a fechar os olhos, sonhar, dormir: nada mais. Ver até onde o sono o leva. O insondável – seria um bom lugar? Afinal de contas, o mundo que ele conhece não vai muito bem das pernas. Aliás, suas pernas também doem. Decide empenhar-se mais uma vez no desafio de clamar pela atenção da moça. Ele precisa, afinal, saber o que se passa ali, onde estão todos, por quanto tempo dormiu dessa vez. Mas eis que chega o médico – deve ser o médico, são tantos que ele já nem tem mais certeza. Entra no quarto, cochicha alguma coisa para ela, a mulher de branco, provável enfermeira, que subitamente passa a enxergá-lo ali, deitado. “Sim, vaca – estou acordado”, ele a ofende mentalmente, como de costume. Ela se aproxima: checa a temperatura, mede a pressão, pergunta se ele a escuta. “É claro! Surdo ainda não estou.” Ela sorri sem graça da grosseria – mas ele não fez uma piada. O médico se aproxima também. Examina aqui e ali, tal qual estivesse se relacionando com um títere, uma marionete. Parece pretender esboçar um raciocínio que no entanto não vem, não ganha concretude. Uma observação, talvez. Uma pergunta. “Que foi?”, Luiz, impaciente, arrisca. “Nada não, ‘seu’ Luiz, tudo certo. Como é que o senhor está hoje?”, o doutor responde perguntando. “Como é que eu estou… Fodido, pra variar. Onde está minha nora?” “Agora em casa, ‘seu’ Luiz. Foi descansar um pouco. Ela também é filha de Deus, certo?” (“Deus… Me deixar aqui sozinho, cercado de gente paspalha”, ele pensa, mas não diz.) “Como estão suas pernas?”, o médico paspalho insiste no diálogo. “Doendo”, ele responde. “Sim, infelizmente faz parte do seu quadro. Eu vou pedir para a enfermeira aumentar um pouco a dosagem da sua medicação pra dor.” “Não precisa, eu aguento. Na verdade, acho que se eu levantasse e andasse um pouco, já melhoraria.” O médico, ligeiramente contrafeito: “Na atual situação do senhor, talvez seja um pouco complicado levantar da cama, ‘seu’ Luiz. Que tal ficar um pouquinho mais deitado, até o senhor recuperar a força das pernas e dos braços?” Luiz, em silêncio, compreende que, muito provavelmente, nunca mais tornará a levantar e andar. O médico então, talvez para mitigar a tensão do clima que ele próprio parece ter instaurado, cavouca palavras para formular uma pergunta no mínimo intrigante: “E ‘dona’ Alcineia, vai bem?” “Alcineia, que Alcineia?”, Luiz aturdido. “‘Dona’ Neia, ora, sua esposa.” “O que é isso, rapaz? Mas o que é que tem Neia? Ela é falecida há mais de trinta anos! Do que é que você está falando?” Agora é o médico quem manifesta estranheza: “Nada não, ‘seu’ Luiz, calma! Não está mais aqui quem perguntou.” “Como não? O que é que Neia tem a ver com isso? Desembucha, rapaz!”, ele exige saber, cada vez mais agressivo. “O senhor tem sonhado com ela ou algo do tipo?”, pergunta já levemente envergonhado. “Sonhado? Como sonhado, meu filho? Que assunto é esse? O que você tem com os meus sonhos? Nem dormir eu durmo mais.” “É que… Bem…”, o médico ainda vacilando, até que Luiz perde enfim a paciência: “‘Bem’ o quê, rapaz? Que tanta firula é essa? Tô sentindo você me rodear sem parar. Vamos, fala de uma vez! O que é que está acontecendo? Eu morri e não me avisaram, foi?” “É mais ou menos por aí”, o médico deixa escapar e imediatamente se arrepende do dito. “Como?” Uma breve pausa. “O senhor dormiu por pouco mais de um mês, ‘seu’ Luiz. Coma profundo. Achamos que não fosse mais acordar.” De novo, o silêncio. “‘Seu’ Luiz? O senhor me escuta? O senhor está…” “É claro que escuto.” “O senhor quer que eu mande chamar sua nora? Ou seu filho?” “É claro que quero.” “Nós vamos ligar pra eles. O senhor está com fome?” “É claro que estou. Dormi por mais de um mês.” O médico quase sorri: “Mas pode ficar certo de que o senhor foi muito bem alimentado durante esse período.” Luiz apenas o observa. Prepara-se para falar algo, mas imediatamente volta atrás e faz outra pergunta no lugar: “Quer dizer que eu estive no inferno e voltei, foi?” O médico, ainda risonho: “Não sei se eu colocaria dessa forma, ‘seu’ Luiz.” “Rapaz, você me perguntou por Neia.” O doutor emudece. “Perguntou, não perguntou?” “Perguntei sim, ‘seu’ Luiz.” “O que é que tem Neia?” “É que o senhor…” Luiz o olha, impávido. “O senhor teve algumas alterações clínicas significativas e, digamos… bastante observáveis durante o seu sono. Quero dizer, durante o tempo em que o senhor não esteve ‘aqui’, conosco.” Ainda o silêncio. “O senhor apresentou um quadro de… excitação.” Nenhuma reação de Luiz. “De ereção. Sexual. Enfim.” Pausa. Depois de um tempo, o médico, constrangido: “O senhor me compreende?” “Quando é que eu saio daqui?”, Luiz, seco. “Daqui – do hospital?” “Eu preciso ir embora. Tenho um compromisso no sábado.” “O senhor tem um compromisso? Neste sábado?” “Isso! Você está surdo, rapaz? Eu tenho um jogo. Uma partida. No Buraco do Juca. Vou me encontrar com o Neymar. Gente fina, o Neymar. A gente vai bater uma bola. Lá no campinho. Eu combinei com ele.” “Ah, sim. Entendo. Eu…” “Os times já estão montados. Acho que o Ney vai levar o Barcelona. Os meninos do Barcelona. Jogam bem eles. Mas o Ney é o melhor. O melhor de todos. Sem dúvida.” O médico, mais uma vez, precisa esmiuçar entre as palavras que conhece as que melhor se aplicam ao momento: “Bom, vamos ver como o senhor se recupera, não é, ‘seu’ Luiz? Tudo vai depender da recuperação do senhor, de o senhor ficar bom logo. Pra isso precisa se alimentar, beber bastante água, diminuir essa febre. Vamos começar? Que tal uma sopinha? Hoje parece que é de frango com chuchu e está caprichada, pelo que pude ver!” “Pode ser.” “Uma sopinha? Vou mandar trazer” “Traz. Traz, sim. Eu tenho que jogar no sábado. Com o Neymar. Neymar Júni-or.” “Claro! E para jogar o senhor precisa estar forte, certo? Eu vou pedir pra ligarem pra sua nora, viu?” “Deisy? Sim, liga pra Deisy. Ela é quem vai me levar no jogo. No sábado. Com o Neymar. Neymar Júnior.” “Tô sabendo, ‘seu’ Luiz. Bom apetite pro senhor, viu? E bem-vindo de volta!” O médico ainda silencia outra vez. Observa a maca, olhando pasmo para seu paciente: “‘Seu’ Luiz, o senhor está…” Pausa abruptamente. “Eu vou chamar a enfermeira, viu? Pode ficar sossegado. Ela já vem.” O doutor sai, tentando disfarçar a pressa e o ligeiro, mas visível, desconforto: Luiz está banhado em urina. (“Paspalho. Só assim pra tirá-lo da minha frente… De pau duro, meu Deus. Diante de toda essa gente!”, ele pensa. “Que porra! Depois de tantos anos. E esse filho da puta me arranja esse milagre, comigo dormindo!” Ele quase sorri. Tenta acomodar-se na cama, a despeito da fedorenta poça de mijo concentrado – um líquido viscoso e acastanhado devido talvez à quantidade insólita de medicamentos com que andavam lhe abarrotando. “Eu, de pau duro. Dormindo, meu Deus! O senhor é um sacana mesmo. Depois de tantos anos…”) Vira-se para o lado e decide descansar um pouco mais enquanto aguarda pela sua sopa e pela enfermeira que limpará aquela bagunça. Discretamente, certificando-se de que ninguém perceba, desce uma das mãos até o sexo: nada. Nenhum sinal de vida além das últimas gotículas do líquido maligno que ainda vazava pela sua uretra. “O senhor é realmente um puta de um sacana!”, ele conclui mentalmente e, enfim, dá um largo sorriso.

 

Luís abre os olhos. O quarto segue vazio. Pedro ainda fora, a trabalho. Suas idas e vindas semanais a Piabetá deixam a rotina dos dias de Luís ainda mais monótona: isolado em casa, absolutamente só, sem saídas para o mercado, sem as aulas de natação, sem mesmo as breves excursões vespertinas pelo bairro – apenas o medo, fiel e único companheiro dos últimos meses. “A taxa de contágio vai alta, Luís – fique em casa. Deixe que eu faço as compras pra nós no fim de semana, de mercado e de farmácia”, recomendou Pedro, lá no início de todo esse inferno. E ele tinha razão, sempre teve, Luís não tem do que reclamar. Mas não deixa de ser uma merda. Faz dias que ele não consegue escrever uma linha sequer. Os quadros a serem pintados também permanecem em branco. Páginas e telas vazias. Mal as enxerga: o olho oscilante entre ver e não ver. Igualmente o tesão – o que para ele sempre foi fácil e prazeroso, a despeito da idade, parecia não produzir mais efeito algum em seu corpo. Em substituição, uma vontade incontornável de mijar. Constante, quase perene. O toque vão, com propósito inicialmente excitatório, chegava a entristecê-lo: movimento inócuo, tal qual aqueles que tentava desferir contra as páginas e as telas, sempre vazias, sempre apagadas, desfeitas, falidas. Mas eis que, do fundo de sua mente, afundada por sua vez em seu travesseiro, do profundo estado de inércia do qual há dias não consegue emergir, ainda semissonolento, eleva-se uma lembrança. Subitamente, sem porquê nem de quê, ali deitado, nem dormindo nem acordado, começa a rememorar os dias de sol (como este, de hoje) em que podia sair de casa para nadar. Lembra das sungas guardadas no armário, das toucas e dos óculos de natação na gaveta de cabeceira da cama. Dos trajetos de ônibus até a piscina. Do afluxo de pessoas sempre um pouco caótico na portaria do clube, dos boas-tardes dados à Vitória, recepcionista. Da longa extensão azul sem-fim de águas aquecidas, raias devidamente posicionadas, escadinha de metal para acesso. Braçadas e pernadas convenientemente instruídas por Marcelina, Domicila, Lúcio ou Germano, seus professores, a depender do dia. Germano… – É cruel não olhar escancaradamente para os rapazes lindos da piscina, para os volumes de músculos explodindo nas sungas molhadas. E acho sempre muito instigantes as sessões fisioterápicas do Germano. No geral, atende às senhoras, individualmente. Seu corpo também me instiga. Na cela do banheiro reparo na sua pele morena de homem pequeno e jovem, pelado, com lábios grossos e grandes, olhos e dentes grandes, nariz grande e bonito. Gosto das pernas dele, macias, com poucos pelos escuros e uma fina camada de gordura entre a pele e os músculos salientes. Tem peitos grandes, de homem que faz musculação. Hoje conversei durante um pouco mais de tempo com ele na arquibancada, antes de iniciar meu treino. Com os dias se passando, ele voltava a ficar mais lindo. Depois entrei na piscina. Ele se preparava para iniciar a sessão fisioterápica com uma de suas pacientes. Aguardava a moça voltar do vestiário. Enquanto isso, me observava. De repente, implicou com minha pernada de peito, a pernada que demorei meses aprendendo. Fez demonstrações. Dentro de mim, diante das pernas dele, flores se abriam, outra vez. Depois pegou-me em minhas pernas para explicar-me o movimento. As flores chamuscavam, queimavam, derretiam-se desaparecidas mais para o meu fundo. Para espairecer expliquei os choques que sinto no joelho esquerdo, quando faço a pernada de peito. Numa dessas pegadas, de um jato, os olhos de Germano viraram-se para os meus. Aproveitando-me do momento, fui audacioso. Olhei com desejo para dentro da piscina negra dos olhos de Germano, quase ostensivo. “Germano, você me escuta?” Silêncio. “Germano, você está…” Germano virou-se: sua paciente o chamava. Ele deixou-me e foi encontrá-la na borda da piscina. Dispensou a escadinha de metal e, usando a força dos braços, apoiou-se numa das bordas mesmo para poder sair da água, poupando tempo. Então, pude ver, muito de pertinho, o corpo moreno e peludo de Germano. Via imediato à minha frente, à altura de meus olhos, infernal, ampliado em mil vezes, os poros todos arregaçados do pano de sua sunga, quando sentou-se na beirinha da piscina para ajudar sua paciente a cair. Ao que ele escorregou para dentro d’água, com os fundos da sunga agarrados ao piso da borda, seu enorme pau espremeu-se derramando num desenho, suculento e carnudo, no pano que se estirou, pelo mal jeito de cair na água. Vi tudo isso muito grande e muito perto, tudo muito escancarado, tudo muito aberto, concentrado, indecente, e meu coração acelerou-se e derreteu, sorou apertando-se. Nadei. Fiz trinta e cinco chegadas. Ainda dentro da água, antes que eu saísse da piscina, num mergulho, olhei para a bunda musculosa de Germano sob a sunga ensopada d’água. Vi de relance e, depois, subi a escadinha de metal da piscina e me dirigi ao vestiário, para trocar de roupa. Ele enxugava-se ao lado da arquibancada. Sempre, quando chega a hora de voltar para casa e que saio da piscina, ele está no final, terminando de atender à paciente da vez, na direção da escada que desce para o banheiro. Costumo despedir-me, ao descer a escada, sempre preocupado com minha expressão, pois nessa hora, eu e ele nos vemos bem de perto e rápido, quer dizer, apenas os segundos necessários para que digamos tchau. Essa nossa rápida e última olhada, instantânea, é como se, no escuro, uma lâmpada fosse, imediatamente após ser acesa, logo apagada, deixando impresso na minha cabeça um flash da sua imagem, como lembrança. Essa lembrança, de vê-lo a me dar tchau, tem uma iluminação que perdura mesmo que eu já esteja no escuro, no banheiro, sem sua luz. Sua fisionomia parada em minha memória, com os seus olhos parados nos meus, é muito forte, tem a força de um homem revelado para mim, no que ele tem de mais belo e verdadeiro. Depois que desço a escada, a imagem de Germano dentro do peito, na cabeça, iluminada, faz-me pensar, pretenso, que eu também deixe essa impressão de luz, de revelação, para ele. Hoje, assim que desci a escada de trás da piscina e fui para o banheiro, Germano entrou comigo. Assim que entramos, ele ficou nu, deus tranquilo entre as nuvens. Com ele nu, no cubículo do banheiro, eu não olhava, mas via seu corpo peludo e musculoso e, às tontas, coloquei minhas coisas, mochila, tênis, num banco que havia rente à parede e, enquanto tirei minha sunga, ele entrou numa das cabines, a que tem a privada, e de pé, as costas viradas para mim, sem fechar a porta atrás de si, mijou pesado na poça d’água da privada. A sombra do veludo de pentelhos mostrada para mim através do espelho, nas dobras de sua bunda morena e larga, fervilhou novamente meu coração. Não que eu não olhasse para o centro que se mostrou, enchendo e ultrapassando todo o espaço pesado, grande e escuro do banheiro, flutuando em sua suspensão, entre as pernas de carnes muito fortes de Germano. Não que eu não tivesse olhado, mas não via, tudo ficou muito rápido. De relance, pelo espelho, também a bunda lisa, de poucos pelos, curtos, ao infinito, um pouco mais branca, bunda de homem. Não que eu não olhasse, mas tudo muito tenso, assim, uma força delirante se dispersando por dentro de mim, um lance nervoso, iluminado, difícil de dizer… Restava-me, apenas, conversar. Não me importava o que dissesse, ao menos estaria entrando um pouco mais dentro da presença bonita de Germano, mais bonito, porque nu. “Você é um competidor, Germano?” perguntei. “Não exatamente de natação, gosto de me exercitar, mas não sou competidor. Supero apenas a mim mesmo.” “Entendi.” Ele tinha as mãos fortes e magras, de veias salientes, que de repente começaram a acariciar-me os flancos, quadris e a apertar, tão leve e doce, meus mamilos. “Seus mamilos parecem os de um garoto”, ele disse. Eu não tinha os olhos suspeitos, deixava que Germano olhasse dentro de mim. E eu procurava seus olhos para não cair, eu me jogava dentro da força da piscina dos olhos dele, onde eu queria nadar. Ele pediu que eu ficasse de costas para ele, e de joelhos. Debruçando-me a cabeça sobre um dos bancos do vestiário, ele se colocou por trás de mim e – De repente, um barulho. Um tilintar, um estrondo. O que seria? O fim do vírus? Fim do mundo? Não, apenas o telefone. Pedro ligava de Piabetá. “Que foi?”, Luís atende mal humorado. Os olhos sujos de remela e a cara ainda inchada de sono. Germano, a piscina, o vestiário: tudo uma ilusão. Pedro queria saber se as coisas iam bem e avisar que já, já estaria em casa. Fazia dias que Luís não conseguia pintar nem escrever. E sentia muita, mas muita, falta das aulas de natação.

 

Paulo abre os olhos. O sol claro mal permite que ele focalize qualquer imagem nítida sem o auxílio dos óculos escuros. O suor oriundo da corrida, que emana do alto de sua cabeça e escoa testa abaixo, também não colabora. Caminha tarde adentro alternando os passos entre calçada e ciclovia. Por vezes, invade a faixa dos carros. Não há veículos. Apenas alguns poucos pedestres, passantes, passageiros. Jovens mães (ou babás, pois afinal é um bairro rico) com seus carrinhos de bebê, adolescentes ciclistas, joggers por hobby. No mais, nada. Apenas o tesão. Uma discussão familiar é o suficiente para desencadear o rito (porque passa a ser um rito). As fugas vespertinas ajudam a compor o quadro de solidão. 200 mil mortos, apenas no Brasil. Uma bike, tênis de corrida, óculos de sol, celular, fone de ouvido, chaves de casa, máscara – “Hoje vai ser com violência”. Dois homens. Dois paus. Estufa a bermuda e o pensamento diz: “calma”. Só mais uma volta, mais um quarteirão. Ele circunda enfim sua presa. É uma presa. E há pressa. Observa o rapaz, que toca seu violão distraidamente. Tira uma nota, após outra, e outra; ensaia. Talvez esteja aprendendo uma música nova. Tempos de pandemia são propícios a novos aprendizados, dizem. Para não enlouquecer, eles dizem. Para nos curar da vontade de tomar as ruas e, assim, não nos expormos ao risco. Porque há um risco. Ao sair de casa já estamos em evidência. Desde sempre. Paulo havia parado de acompanhar as notícias há um tempo. As imagens recorrentes, ao longo de um ano, de covas coletivas, cadáveres aguardando sepulturas, semicadáveres aguardando leitos em hospitais, mães chorando pela morte de seus filhos, filhos clamando pela vida de seus pais estavam prejudicando em muito seu sono. Sua escrita. Seu trabalho. Suas refeições. Suas leituras. Suas orações. Sua vida. Seu tesão. Ele parou de acompanhar mais precisamente quando chegamos aos 100 mil. Para ele, havia sido o bastante. Como se extravasa? Como se coloca para fora? Colocando-se para fora. Colocando. Dentro e fora. Foda. Ele havia feito algumas pesquisas recentemente, pra tentar talvez matar um pouco mais de seu tempo e manter assim a cabeça ocupada: estimativas vistas por ele apontavam que o número de indivíduos LGBT+ que se suicidaram no Brasil aumentou cerca de quatro vezes nos últimos dois anos, e que esse aumento estaria, em parte, diretamente relacionado à pandemia de covid-19. Ele também leu sobre estudos que indicavam o disparo nos casos de depressão e ansiedade em relação a esses indivíduos ao longo do mesmo período. Outras análises pretendiam investigar ainda (Paulo andava realmente interessado nesse tema) como o isolamento social e os impactos da nova doença atingiam de maneira específica os gays, as lésbicas e as pessoas transexuais, sobretudo aqueles que não tinham sua vida afetiva bem resolvida, ou sua orientação sexual manifestamente declarada dentro de seus próprios lares, para com seus familiares. A despeito disso tudo, Paulo encontrou também, em algum lugar, a informação de que não havia dados suficientes sobre a saúde desta população em específico durante a pandemia no Brasil. Ou seja, do momento em que ela ainda está viva. Do mesmo modo, também não haverá registros oficiais a respeito de suas mortes. Silêncio. Ninguém vai saber de nada. Nunca. Em compensação, o número de homicídios de indivíduos dessa mesma comunidade também havia crescido bastante. Na verdade, absurdamente. Durante a pandemia. Durante a quarentena. Durante o isolamento. As pessoas estavam em casa. E continuavam matando gays, lésbicas e transexuais. Uma discussão familiar era o suficiente para desencadear o rito – “Hoje vai ser com violência”. Ele toca seu violão e será a presa desta tarde. Aí vai Paulo, retirando os fones: “Desculpe, posso me aproximar?” O rapaz consente. “Vou tirar a máscara durante um momento, tudo bem?” Tem-se a impressão, pela solicitude do rapaz, de que ele também não está ali por acaso. Quem saiba este seja um ponto de encontro para vendas. Paulo seria, esta tarde, mais um cliente a fim de chapar. O jovem, de alguma forma, estava no aguardo de que ele o abordasse. E Paulo vai, enfim, a seu encontro. Mas há um desentendimento. Um desacordo. O que ele tem para vender não é o que Paulo deseja para hoje. O que Paulo quer não tem preço. Mas o rapaz também tem para lhe fornecer. “Eu queria te propor uma coisa. Uma parada… divertida. Topa?” Tudo muito escancarado, tudo muito aberto, concentrado, indecente, o coração de Paulo acelerou-se e derreteu, sorou apertando-se: “Ninguém vai saber de nada. Nunca.” – O fone de ouvido reposicionado nas orelhas, os óculos de sol nos olhos e a máscara na boca. Uma última olhada para trás. Na saída da praça deserta, retornando à calçada, observa com atenção um cão, que traja uma focinheira enquanto passeia com seu dono. O animal o olha: olhos bem abertos e boca interditada. “Por hoje esses maxilares não trabalham, né? Azar o seu”, Paulo pensa e ri. Tem a impressão de que o cão sorri também. Paulo não olha para seu dono. Mal repara se é um homem ou uma mulher. 200 mil mortos no país. O pau ainda duro estufa a bermuda. Adrenalina circulando enfurecida pela corrente sanguínea. Estamos vivos. Estamos em risco. Estamos expostos. “Não serei mais um em meio aos montes da cova coletiva”, Paulo pensa, com o coração em paz e a boca cheia de saliva. Apanha a bike onde ela estava presa, volta a ganhar a ciclovia. No retorno para casa, enxerga ao longe o rapaz, a presa, também regressando à sua. O ensaio no instrumento havia chegado ao fim (ou, quem sabe, o comércio de seus entorpecentes). Pedalando em direção oposta à de Paulo, violão nas costas indo a seu encontro, o torso nu (lindo) vai ganhando contornos mais nítidos à medida que se aproxima. Há poucos metros de si, Paulo percebe que ele reduziu sua velocidade. Desejaria mais? Já teria dado tempo de se recuperar para uma próxima? Mas eis que vem o baque: uma pancada na orelha é o suficiente para atirá-lo ao chão. Um zumbido sem fim, que parece querer anunciar a explosão de seu crânio – ou de todo o universo. Um chute, seguido de outro, mais uma cusparada farta de catarro em sua face. O violonista tinha as mãos fortes e magras, de veias salientes, que de repente começam a agredi-lo com extrema violência. Sem descanso, uma delas segura a nuca de Paulo com força e precisão (a mesma mão que, minutos atrás, havia segurado a mesma nuca, com a mesma força e a mesma precisão, porém com finalidades distintas) e não tarda em arremessar a têmpora direita do infeliz contra o meio-fio da calçada, aos gritos desesperados de “não” e “não” vindos da boca da vítima. Boca em que agora misturam-se livremente o sabor férrico de seu sangue com o leve azedume do líquido seminal recém-sorvido de seu próprio agressor. Percebendo que a rua segue deserta, o rapaz, para o azar de Paulo, constata que ainda há tempo de uma derradeira e (absolutamente) gratuita crueldade: põe uma última vez seu pau, não tão bonito e nem tão grosso, para fora e mija abundantemente no corpo semiadormecido, semidesmaiado e semiputrefato de Paulo, que agora jaz abertamente em plena ciclovia de um bairro rico. Por fim, o jovem guarda seu sexo, atravessa a avenida principal e entra numa rua transversal qualquer. “Covarde”, Paulo xinga-o mentalmente, sem nenhuma coragem nem vontade de pedir socorro. Uma saliva espessa misturada com sêmen e sangue, um olho roxo e potenciais costelas fraturadas são o saldo desta tarde – terá de se explicar em casa. A começar pelas feridas regadas a mijo. Fica de joelhos, debruça a cabeça sobre o meio-fio e utiliza a força dos braços para levantar-se devagar. De repente, um barulho. Um tilintar, um estrondo. O que seria? O fim do vírus? Fim do mundo? Não, apenas o zumbido no ouvido, que iniciou logo no começo da surra e agora retorna, exercendo nova e intensíssima pressão dentro de seu crânio. Os olhos sujos de terra e a cara inchada de tanto apanhar. O violão, o pau e a sova: tudo real. Mas não fazia mal: havia meses que sua vida era névoa e solidão. O destino tem dessas. Daqui pra frente, por um tempo, talvez fosse oportuno voltar a pintar e escrever um pouco – um período dentro de casa não o faria mal algum.

 

§

Paulo, absolutamente desfigurado:

_Inferno_

Aqui é meu inferno
Seta no rabo
Aqui é meu inferno
Rabo arrastando
Aqui é meu inferno
Pobre diabo
Aqui é meu inferno
Meu rabo
Meu lugar
Meu inferno
Pobre rabo
Pobre inferno
Pobre de mim

VI

Homens machucados

Só vivo por vezes no interior de uma palavrinha em cuja inflexão perco por instantes a minha cabeça inútil.
A minha maneira de sentir aparenta-se à do peixe.

12/07/2020

11:08
Oi, Paulo! Como tá aí?

18/07/2020

01:10
[áudio]
querido! boa noite, tudo bem? cara… estamos bem, né? na medida do possível, ainda tentando não surtar – e é isso, né? exercícios de convivência. eu saí de casa muito cedo, com dezesse… dezoito! dezenove anos, e agora tô com vinte e sete, né? voltar dez anos depois… eu me sinto meio que de volta à minha adolescência, mas sem ser mais adolescente, né? já sou um adulto e aí… é difícil pros meus pais aceitarem um pouco, me entenderem… às vezes eles fazem coisas que me incomodam muito e eles nem percebem; às vezes eu faço coisas que eu nem percebo que incomoda muito a eles… minha irmã também, né? somos outras pessoas e… voltando a conviver, é… é estranho e engraçado e… hoje, por exemplo, foi um dia de choradeira, todo mundo chorou aqui por algum motivo [risos] – algum motivo que às vezes se relacionava com outro, às vezes não; e é isso, é família, né? a esses exercícios de convivência eu não tô – não tava mais acostumado. Até porque eu saí pra morar sozinho, né? então… eu lido com as minhas noias, os meus traumas e as minhas questões relativamente bem; agora ter que lidar com as dos outros, né? ter que… entender o espaço do outro, entrar no espaço do outro, tentar… minha família é muito fechada também – eles não falam muito sobre sentimentos e tal, então chegar nesse lugar do outro é complicado. enfim, mas… estamos levando! espero que cês tejam bem aí também… mandem notícias. saudades. como é que tão as coisas da… das lives, têm rolado? eu tô muito desligado de… de internet, de celular, de computador nos últimos… dias – semanas, talvez.

09:14
[áudio 1]
oi, Paulo, bom dia! é… eu tento imaginar, assim, como é esse negócio: você… ocupar um território que era seu, mas você… conquistou outro [som de galo cantando ao fundo], aí você volta pra esse território que… que era seu, né?

[áudio 2]
mas que é um território [galo canta outra vez] que tem que ser dividido, né? eu, nesse isolamento aqui, tenho pensado muito na minha mãe. e… [outra vez o canto do galo, mais longo] não sei, eu não sei por quê. saudade, né? [silêncio] e… éramos eu e ela só, então o território que… da casa era todo meu porque ela era muito generosa – [fala mais pausadamente] ge-ne-ro-sa. [respira fundo] então, ela… tudo era meu, entendeu?

[áudio 3]
mas aí você tem uma família, né? um pai, uma mãe… acho que uma irmã, né? [galo] é bem diferente, isso.

[áudio 4]
não sei como que é dividido, isso – mas eu imagino que os seus pais… queiram… te dar tudo, né? [pausa] tipo: “tudo seu” – não é, não? [risos]

23/08/2020

13:43
Caramba, Luís!
Agora que me dei conta de que não tinha te respondido esses áudios aqui
Eu acho que no meu caso tem muito a ver também com minha sexualidade e com toda a intolerância/conservadorismo deles
Um saco, mas parece que o tempo passa e isso vai ser pra sempre uma questão
Quando eles me ofendem (ainda que não se percebam disso) tá muito mais ligado a aspectos problemáticos que estão neles e não em mim
Daí é muito ruim sentir vontade de se afastar por conta disso. Pra não me sentir ofendido dentro da minha própria casa, pelas pessoas que amo, apesar de tudo

13:46
sim, a gente vai criando o nosso universo é pra isso, acho, porque não dão isso pra gente.

13:48
Isso da intolerância, que cê diz?

13:48
é.

13:49
Sim, total

entre
ATO

Meninxs,

vocês também têm medo de morrer sós?

 

Na verdade, não –

eu tenho medo é de estar acompanhadx.

ATO
PAULO

I

Homens falham
ou Homens-flores

Paulo.
Rua.

Sair.
Sair para encontrar.
Sair para encontrar alguém.
Sair para encontrar alguém que queira.
Sair para encontrar alguém que queira comer meu cu.
– não, não é isso –
Sair para encontrar alguém que queira me amar.

Olhar.
Olhar alguém.
Olhar alguém que perceba.
Olhar alguém que perceba minhas intenções.
Olhar alguém que perceba minhas intenções e me atenda.
Olhar alguém que perceba minhas intenções e me atenda com seu pau.
– não, não é isso –
Olhar alguém que perceba minhas intenções e me atenda perguntando quem sou.

Tocar.
Tocar um corpo.
Tocar um corpo masculino.
Tocar um corpo masculino nu.
Tocar um corpo masculino nu naquilo que ele tem de mais belo.
Tocar um corpo masculino nu naquilo que ele tem de mais belo e verdadeiro.
Tocar um homem em seu sexo.
– não, não é isso –
Tocar meus lábios nos lábios de outro homem.

Rezar.
Rezar para não morrer.
Rezar para não morrer só.
Rezar para não morrer em bando, aos montes, em coletivos.
Rezar para não morrer numa distração, num lapso, numa inconsequência.
Rezar e entender por que se reza.
Rezar porque se dá.
– não, não é bem isso –
Rezar porque se ama.

Falar.
Falar o que se pensa.
Falar o que se pensa e o que se faz.
Falar o que se pensa e o que se faz atrás.
– não, deixe disso –
Não falar.

Falhar.
Falhar no ato.
Falhar no tão aguardado ato.
Falhar no tão aguardado ato de trepar.
– não –
Falhar no ato de escrever.

Sobreviver.
Sobreviver à queda.
Sobreviver à queda tal qual Ícaro.
– não, tal qual Dédalo, o pai –
Sobreviver à queda do pai.
Sobreviver à queda do pai sobrevivente.
Sobreviver à queda do pai ex-prisioneiro.
Sobreviver à morte do filho.

Morrer.
Morrer enfim.
Morrer enfim dormindo.
Morrer enfim dormindo e sonhando.
Morrer enfim dormindo e sonhando no chão.
Morrer dormindo e sonhando num chão de estrelas.
Morrer dormindo e sonhando num chão de estrelas, imaginando uma rola enorme que chupo incessantemente.
– não, não era isso –
Morrer por ter vivido.

Pedir.
Pedir para tirar.
Pedir para tirar a máscara.
Pedir para tirar a máscara que me olha.
Pedir para tirar a máscara que me olha com olhos incrédulos.
Pedir para olhar.
Pedir para olhar em seus olhos.
Pedir para olhar em seus olhos vermelhos, turvos, embaçados.
Pedir para olhar em seus olhos vermelhos, turvos, embaçados enquanto presto-lhe de joelhos minha homenagem.
– ou talvez não –
Pedir para parar.

Parar.
Parar de sonhar.
Parar de sonhar ao acordar.
Parar de sonhar ao acordar em plena avenida.
Parar de sonhar em plena avenida e ver que o mundo está são.
Parar e ver que o mundo é estação.
– trocadilho não –
Parar para olhar o entorno.

Um mascarado passa, observando-o.

Ser.
Ser o quê.
Ser o que por quê.
Ser o não-ser.
Ser o ser que se pergunta o porquê.
Por que não ser.
Por que fazer.
Por que não.
– ou talvez se –
Se ser.
Ser o que se é.

II

O fim do homem

15/01/2020

Paulo
Madrinha, a senhora consegue me falar um pouco sobre como era o “seu” Luiz em relação à família dele?

Deisy
Então, Junior, veja bem: ele nunca foi uma pessoa muito carinhosa, isso é fato. Têm várias coisas aí que eu poderia dizer. Ele tinha lá o gênio difícil dele, a gente sabe. Não era uma pessoa ruim, mas também não era muito fácil, não. Tinha dificuldade, muita dificuldade, de colocar os sentimentos pra fora, falava pouco, resmungava muito. [risos]
E esse comportamento arredio acabava reverberando um pouco nos filhos, né? Nos filhos e na esposa, quando ela era viva – “dona” Neia.

Paulo
Reverberava como?

Deisy
Você via um pouco como seu padrinho tratava ele quando ia lá na casa dele, não via? Você e sua irmã eram muito pequenos, mas vocês devem se lembrar: isso tudo é reflexo de como ele tratava ela (ela, ele e os irmãos) quando eles eram mais novos, pelo menos eu acho que era.
“Seu” Luiz não foi um pai muito presente. “Dona” Neia cuidava de tudo em casa: das crianças, da comida, das compras, da casa, tudo. Ele passava mais tempo no campinho do bairro, jogando bola – até ter problema no joelho. Depois que deu esse problema, ele passou a trabalhar como técnico.

Paulo
Ele jogou profissionalmente, não jogou? Chegou a viver disso.

Deisy
Jogou, jogou, sim. E trabalhou muito tempo como técnico também. Ele acabou tendo que parar um pouco com a carreira quando casou e teve filhos, né? Aí começou a ter que sustentar a casa de outras formas, porque o dinheiro só do futebol não chegava pra pagar as contas.

Paulo
Mas mesmo depois de ter aposentado as chuteiras ele vivia no campo, imagino.

Deisy
Ah, vivia! Ô, se vivia! Não saía de lá. E isso deixava “dona” Neia um pouco chateada.

Paulo
Por quê?

Deisy
Ela gostava de reunir toda a família no domingo, por exemplo, pra almoçar. Domingo era sagrado na casa de “dona” Neia e “seu” Luiz” (via de regra, tava todo mundo lá). Mas “seu” Luiz quase nunca almoçava com a gente – era muito raro. Ele ficava no campo, jogando bola, dando pitaco nos jogos, ou jogando conversa fora mesmo.

Paulo
Ele não almoçava com a família aos domingos?

Deisy
Não, quase nunca. E isso deixava ela bem triste; deixava todo mundo triste, na verdade.

Paulo
Entendi. E os filhos?

Deisy
Quê que tem?

Paulo
Como ele tratava os filhos? Como eles o tratavam?

Deisy
Olha…
Durante esses cinco anos que nós estamos cuidando dele (desde que ele começou a apresentar os primeiros sinais de demência e que acolhemos ele na nossa casa), pouquíssimas vezes os irmãos do seu padrinho foram visitá-lo. Henrique ficava bravo, reclamava comigo – mas fazer o quê? Eu falava: “a gente não pode fazer nada”, mas não adiantava.
(O engraçado é que, depois de demente, o que ele mais fazia era chamar pela esposa, “dona” Neia – o dia inteiro!)

Paulo
Jura?

Deisy
Juro! Ele sempre dizia que precisava ir encontrar ela, que deixou ela esperando em casa, que ela tava esperando ele pro almoço –
era impressionante.

Paulo
E o que a senhora fazia?

Deisy
Dizia que ela já vinha ou que já, já nós iríamos até ela. Falava que era só ele terminar de comer que a gente ia, isso se ele estivesse comendo na hora. Se ele estivesse vendo jornal na TV (“vendo”, né? porque ele até assistia, mas não absorvia mais nada), eu falava pra ele esperar só o jornal acabar;
e por aí ia.
Eu, na verdade, confesso que tinha lá minhas dúvidas se ele próprio acreditava nisso ou não.

Paulo
Como assim?

Deisy
Eu às vezes achava que ele fingia um pouco – a própria demência, sabe? Ele alternava, sim, momentos de loucura com momentos de lucidez. Mas, às vezes, eu tinha a impressão de que ele se fingia um pouco, fazia um pouco de firula.

Paulo
E por que a senhora acha que ele fazia isso?

Deisy
Pra não amolarem ele. Geralmente, quando o assunto o incomodava, ele ficava rapidamente demente, dizia coisas sem sentido, fazia, até, coisas sem sentido. Ou ele se usava disso pra disfarçar um pouco as próprias dores – entende?

Essa era a minha impressão, pelo menos.

Paulo
Entendo, claro. Foi a senhora que ficou com ele a maior parte do tempo no hospital, não foi? Você ficava de dia e meu padrinho ficava à noite?

Deisy
Não, eu ficava de dia e, à noite, quem ia, ou era Marilza ou algum dos netos, geralmente Juju, Cacau ou Gustavo (Gustavo não é neto, mas chegou a ir algumas vezes pra ajudar).

Às vezes nós pagávamos uma moça de confiança pra ficar, também (uma enfermeira do próprio hospital – quando ela não tinha que fazer plantão, no hospital mesmo, a gente acertava com ela e ela ficava olhando “seu” Luiz pra nós). Gente idosa, maior de sessenta e cinco anos, não pode ficar sozinha em hospital, é contra a lei.

Paulo
Meu padrinho não ia?

Deisy
Olha, seu padrinho detesta hospital! Nunca gostou. Ele ia de dia, quando eu tava lá. Levava umas coisas pra mim, a gente conversava, ele ficava um pouco com o pai…

Depois vinha embora.

Paulo
E os outros filhos?

Deisy
De “seu” Luiz? Jorjão foi uma vez – saiu lá do Espírito Santo e veio ver o pai.

Paulo
Os outros quatro?

Deisy
Não chegaram a ir, não.

Paulo
Ele ficou quantos meses no hospital mesmo?

Deisy
Pouco mais de três. Três? [perguntando a si mesma] – Isso, por aí: três meses e pouco.

III

Homens nascem

Três homens.
Uma vida.

(Sugere-se que as três cenas seguintes
ocorram em simultâneo.)

Luiz abre os olhos. Quarto escuro. Ao redor ninguém. Talvez alguém passe. É uma questão de tempo. Sempre é. Gosto doce na boca. Passa a língua nos lábios, nos dentes, no céu e nos cantos, nas bochechas. O ar entra e sai pelas narinas, sem entraves. Não faz frio. Também não há mais um tubo enfiado em sua goela. Sem agulhas espetadas em suas mãos ou braços. Não sente fome, sede, nem vontade de mijar. Somente ele, o corpo – sem cheiro, sem peso, sem dor: um saco cheio de carne e vazio de sensações. Não espera por nada nem por ninguém. Apenas acordou. No meio da noite. Alta madrugada. Silêncio nos corredores. “Ninguém morreu hoje”, pensa enquanto se levanta. Sentado à beira da cama, procura o relógio de mesa, sempre a postos na cabeceira. Não o encontra. Calça as pantufas fornecidas pelo hospital, primeiro a direita, depois a esquerda. Faz uma rápida busca por cigarros perdidos nos bolsos – encontra um, sorte! Acende-o com um isqueiro que também descobre ali próximo. Há quanto tempo não fumava, meu Deus! Provavelmente desde que fora interditado e levado à força para a casa de sua nora Deisy e de seu filho Henrique. Tinha se esquecido da delícia que é! Mesmo antes da demência, nos anos imediatamente anteriores a ela, já não se lembrava do quanto de fato gostava daquela sensação de nicotina, presente em larguíssima escala no tabaco das cigarrilhas vagabundas que consumia, penetrando em seus pulmões: fumava, de certa forma, já de modo meio automático, apenas na intenção inconsciente de gerir a manutenção do vício, ou do rito, que seja. Fica subitamente feliz ao dar de cara com seu chapéu (panamá branco), em cima de uma cômoda, também próxima. Desce a escadinha de metal que serve de apoio à maca, caminha em direção ao chapéu e o apanha. “Muitos anos, companheiro”, veste-o. Sorri. Empolgado, arrisca um brevíssimo passo de gafieira (fica surpreso ao constatar que ainda se lembra como faz) e o encerra após um ligeiro salto, típico do malandro carioca (“niteroiense, faz favor!”), desembainhando por fim o panamá em saudação cortês à invisível dama – seu tiro de misericórdia, senhores. Dali para frente, a noite estaria garantida: “bons tempos, Luiz, bons tempos”. Ele daria um trago nalguma cachaça mineira agora, ô se daria! Escarraria com vontade na escada da frente de sua casa. Leria um pouco de seu jornal. Divagaria um pouco sobre o atual panorama político do país com o Gabriel, sócio de anos na sapataria. Agacharia de cócoras na calçada quebrada e lá permaneceria por longas horas de seu dia. Eventualmente, levantaria para apanhar um café. Em dado momento, respiraria fundo e, sem que precisasse dizer nada, nesse único suspiro seria capaz de suscitar, nalguém que porventura passasse, a impressão fugaz de que ali havia uma vida. Mas ele não estava em casa agora. Estava num quarto de hospital – que não era mais tão frio quanto já foi noutros momentos. E que talvez já não fosse tão tenebroso quanto antes. Nem mais fedia a éter e clorofórmio. O espaço exíguo também não comportava mais seres cadavéricos, em estado de putrefação aparente, vidas que se iam sem ainda se terem definitivamente ido. Indômitas nas despedidas de seus corpos. Insurretas na obstinação de permanecerem matéria. Inadvertidas da consciência de seu fim. Atrasadas. Postergadas. Indignadas. Ele até moraria nesse lugar deserto, desertificado: pior que sua casa não haveria de ser. Passaria nele sua eternidade, quem sabe. “Mas por que esse pensamento agora?” Hoje é hoje, amanhã só amanhã. Ninguém sabe o que vem lá. Quem vem lá. Mas sempre vem. Ela atravessa a porta do quarto, encaminha-se para o fim do corredor. Não sem antes parar por longuíssimos dois ou três segundos na entrada de sua alcova: “Neia”. Mas já foi. Ela o chamava? Instigava? Seduzia? Ou apenas o cumprimentava, de passagem? Independentemente do que fosse, ele não poderia ficar simplesmente ali, esperando. Era necessário ir até ela, persegui-la, abordá-la. “Tantos anos, meu Deus”, a loucura tem dessas. Seria a febre? Não estava mais quente. O desvario do moribundo? Mas parecia tão bem. O coquetel de analgésicos introjetado diariamente em suas veias? Poderia. Mas o fato se deu. Estava dado. Ignorá-lo era impossível. Perscrutá-lo, imperativo. Não sendo nada, tornaria à cama e pegaria novamente no sono. Isso pra ele não era tarefa difícil. Abandona o quarto e ganha o corredor, longo, branco, asséptico. Ela ao fundo, esvoaçante. Some imediatamente. Ele avança. Passa pelas portas dos outros quartos, vazios. Todos se foram – “para casa ou para cova?” Sorri da própria injúria (mas não foi uma piada). Só Neia para colocá-lo nessa situação e, mesmo nela, fazê-lo rir. Mas por um instante a perde: teria descido de elevador ou de escada? Ele opta pela escada, nunca gostou de elevador (lugares fechados sempre foram para ele sinônimo de problema). Chega à recepção, onde está ela? Lá fora: cruzou a porta de vidro e atravessou a portaria. “A desgraçada vai me fazer sair deste lugar em andrajos, vestido de doente”, mesmo assim vai. Estacionamento com vagas semiociosas. Carros mortos, vazios de gente. Portões abertos: o porteiro não está. Talvez não importe muito conhecer as motivos de tamanha desolação, decerto teria maior relevância imaginar os fins: “onde é que isso vai dar?” Ele nunca havia sentido a necessidade de se fazer esta pergunta. Cruza então a fronteira que delimita o espaço hospitalar e segue rumo ao vulto: está em plena rua. É ela – sua mulher, Neia. Ela caminha cerca de trinta passos à sua frente e ganha a travessa Elzir de Almeida Brandão, em direção ao Viradouro. Ninguém na ru-a, a lua imensa alumiando a infinda clareira urbana. A brisa fresca o faz lembrar das noites em que, jovem, vagava de quadra em quadra, pelos ônibus que o levariam de volta à sua casa, no Buraco do Juca, recém-saído das tradicionais rodas de samba, sessões de gafieira, campeonatos de dança de salão. O bafo cheirando a cachaça e a roupa fedendo a cigarros sem filtro, puro desleixo boêmio. As noites cercadas de gentes e companhias mil tendiam a findar sós, irremediavelmente sós. O vulto parou: pela primeira vez volta-se contra ele e olha-o no fundo dos olhos. Luiz também estaca, na espera do que virá. A mulher talvez tenha acenado, mas ele próprio não seria capaz de afirmar com absoluta clareza. “Que saudades, Neínha”, talvez ele tenha dito. “Não fode”, talvez ela tenha respondido, com palavras ou apenas no indicar do seu corpo, que novamente se viraria contra ele e tornaria a traçar seu caminho bairro adentro. “Essa filha da puta sempre foi assim, difícil” – ele decide ir com ela. Não há mais tempo para indecisão. A incessante perseguição ao rastro do vulto fá-lo encontrar, no entanto, um bairro em ruínas, calçadas destroçadas, pedregulhos eclodindo por sob canos rachados, desaguando água e esgoto nas avenidas, nos carros, nas fiações dos postes de luz agora tombados. Os ratos e outros animais do submundo trinem à caça de alimento e parecem querer certificar o mundo de sua insólita e infame existência. Árvores derrubadas, raízes expostas colaborando para o desbaratamento generalizado das tubulações. Atirados ao chão os ninhos de pássaros que as mesmas árvores outrora abrigavam, filhotes de aves clamando por suas mães, presas fáceis, ainda vivas, disponíveis para o ataque voraz dos algozes roedores. No centro de todo o caos, um galo canta ininterruptamente, anunciando a manhã que, contudo, não parece próxima de nascer. Mais à frente, carros e viaturas de ponta-cabeça indicam algo que, a despeito de possíveis e óbvias deduções, nem de longe viria se assemelhar à passa-gem de um ciclone ou de um terremoto – mas sim, à ensandecida e disparatada mão humana agindo contra a materialidade das coisas, o trabalho civilizacional já feito, a construção secular da cultura. “Mas o que aconteceu enquanto eu dormia?”, ele se indaga e não é capaz de compreender. Ao fim da rua devastada, a mulher o aguarda. Vestida inteiramente de branco, observa-o com um olhar de compaixão nunca antes visto. Luiz não é capaz de discernir entre admiração, encantamento ou espanto o sentimento com que agora seus olhos contemplam o hediondo espetáculo que se desdobra em seu entorno. Neia, porém, não deixa de se divertir ao anunciar o convite há tantas décadas guardado e que não via a hora de se materializar – “vem comigo, meu amor.” Luiz acata e compreende então seu fim: no ocaso de tudo, não haverá homem que não necessite de descanso. As pernas bambas, o calor fustigante e o assombro das coisas todas derruídas não permitem ao homem olhar por uma última vez o mar – plácido, cinzento, distendido no imenso horizonte à sua frente.

 

Luís abre os olhos. Acorda outra vez com o canto do galo do vizinho, mas ainda não é dia. Talvez o sol se demore, preguiçoso. Ou, insistente, a lua tenha resolvido alongar sua estadia no imenso céu negro. Respira ofegante, mas não é capaz de entender o porquê. Algo parece estar fora – fora de lugar, fora de contexto, fora de ordem. Não há fome, sede ou vontade de mijar. Somente ele, o corpo – sem cheiro, sem peso, sem dor: um saco cheio de carne e vazio de sensações. Não espera por nada nem por ninguém. Apenas acordou. Vira-se na cama de um lado para o outro, como se chacoalhar-se deitado fosse solução eficaz para afastar todos os males, angústias, inquietações ou dissonâncias internas. O olho ainda embaçado, o mundo turvo. Apenas de um lado, uma face em névoa, apenas uma. Talvez a cegueira parcial não seja algo assim tão tenebroso. Talvez esteja sofrendo à toa – já passou por tanta coisa, por que não mais essa? Por que não mais uma? Quem sabe seja hora de encarar a realidade de frente, enfrentá-la tal qual homem adulto. Homem. Adulto. Ou, talvez, de vociferar com a médica, da próxima vez que encontrá-la; exigir da fulana um expediente efetivo para seu problema, um remédio genuinamente eficaz. Afinal de contas, por que estudara tanto se nem mesmo um jeito para solucionar uma mera uveíte essa pobre-coitada conseguia arranjar? Agora, vendo em perspectiva, não lhe parece possível que ele, paciente, tenha se submetido por tanto tempo a tamanho sofrimento, oriundo de um único e mesmo mal. Nenhuma doença deveria durar tanto, que ser humano é capaz de tolerar? Manter a sanidade física e mental diante de tão severa provação? Algo já deveria ter sido feito, um novo tipo de medicamento inventado, experimentos revolucionários já deveriam estar em fase de execução. Onde está a força da ciência quando mais se precisa dela, meu Deus? Se não pudermos confiar sequer nela, em quem mais? Muito em breve o galo cantará outra vez e fará apenas lembrá-lo de que o dia ainda está longe de nascer. Luís então se levantará da cama e irá até a cozinha, onde tentará, no escuro, encontrar um copo limpo que poderá usar para beber um pouco d’água. Não conseguirá (muita louça acumulada) e verterá do próprio gargalo vultosas goladas de um líquido gelado, etéreo, caliginoso. Noite calada. Presságio de dia quente. Mais um. Igual ao anterior. Talvez idêntico ao próximo. E mais um, e outro, e outro… Ele então retornará a garrafa recém-esvaziada à geladeira e irá até a sala – vazia. Pedro fora. Trabalhando. Ele respirará fundo e, sem que precise dizer nada, nesse único suspiro será capaz de suscitar a impressão fugaz de que ali havia uma vida. Os livros pelo chão. O quadro em branco à sua frente. A janela aberta e a luz do poste na rua sem nenhum mosquito vagando em sua órbita. Todos se foram. O fim da noite se aproxima? Ele se recusará a olhar o relógio, não o terá visto assim que deixar sua cabeceira, como geralmente lhe é de costume. Terá inclusive a impressão de ele não estar lá, mas deverá ser somente uma impressão, de fato. Não haverá vento nas árvores, assim como ruído algum perturbando o silêncio noturno das ruas, tão vazias quanto sua sala – vazia de gente, de carros, de cães, de pássaros. Haverá algo de convidativo nesse silêncio: penetrar o vazio. Mal demora e ele já estará com seu casaco e chaves de casa em mãos, chinelos nos pés e olhos e espírito abertos para ganhar a Martins Torres (fugas da madrugada, os bons e velhos tempos). Terá descido as escadas do velho prédio e trancado um portão após o outro evitando fazer barulho, para não acordar os vizinhos e arriscar provocar algum distúrbio no sagrado sossego da noite. Estará na calçada, tentando decidir-se para que lado irá. Escolherá o sentido em direção ao centro da cidade, talvez também em homenagem aos tempos em que podia deslocar-se livremente para as aulas de natação, as idas ao mercado, para os passeios de domingo no terminal rodoviário urbano. As aventuras do sexo. As visitas rotineiras a seus médicos. Excursões à farmácia. Pensará ter ouvido o ronco do motor de um carro, mas não terá sido nada, apenas impressão. “Será perigoso, meu Deus?”, ele refletirá enquanto segue sua caminhada. Logo ele, tão acostumado à rua e há tanto tempo! A rua era seu lar. Na rua ele se encontrava, passava a ser. Na rua ele adquiria nome, história, desejo. Era na rua que ele compreendia, em tempos outros, o sentido, o sentido oculto, aquele que empresta e fornece razão de ser às coisas e às tormentas. Na rua ele se via agente. De sua vida, seu destino, seu descontrole. A rua era que o nomeava, classificava, enquadrava. A rua era seu local. Mas agora, porém, ironicamente não haverá destino para o qual ele almeje se dirigir, mas talvez apenas andejar pelas calçadas quebradas sob a luz da grande e alva lua torne sua noite algo mais amena, mais, quem sabe, aprazível. O ponto de ônibus vazio e as pichações urbanas ao lado dos tradicionais folders de putas o levarão inevitavelmente a constatar que a vida parece ter seguido por ali. Tido continuidade. Oferecido resistência ao tecido de barbárie. (Ou a barbárie terá sido justamente o prosseguir? Ignorar o meio milhão de vidas oficialmente perdidas? Ele opta por não pensar sobre isso.) E agora não saberá exatamente por que nem o que o levou a sair de casa, mas pode eventualmente conjecturar algumas possibilidades: o medo da morte? o calor da noite? a falta de sono? de ar? o tesão reprimido? a inércia criativa? ausência de um baseado? Talvez não importe muito conhecer os motivos, decerto terá maior relevância imaginar os fins: “onde é que isso vai dar?” Ele nunca haverá sentido a necessidade de se fazer esta pergunta tanto quanto agora. Olhará ao redor e constatará que algumas casas parecerão ter alterado significativamente suas fachadas durante os meses em que ele esteve “fora” – mas talvez seja, de fato, apenas impressão. Decerto também será apenas uma impressão o vulto que ele verá erguido à sua frente, numa distância de mais ou menos trinta passos. Um homem? Uma luz? Um fantasma? Ninguém na rua, a lua imensa alumiando a infinda clareira urbana. A brisa fresca o faz rememorar as noites em que, jovem, vagava de quadra em quadra, pelos ônibus que o levariam de volta à sua casa, em Santa Rosa, recém-saído das incandescentes tardes passadas no Cinema Orly, das matinês com violão e cerveja nas casas dos amigos, das aulas da graduação assistidas no Instituto de Letras, no Gragoatá. O vulto virá, cada vez mais á-gil e grandioso, diretamente a seu encontro. Será alguém mal intenciona-do? Se for, isso talvez torne a noite ao menos mais divertida. Pois imagine: uma história pra contar aos amigos depois de tantos meses! E fresquinha, vivida agora, no tempo presente! Nada de passados, de outroras, de “tempos normais” – o normal já foi, está morto. Morto como os 500 mil. Talvez seja um mendigo. Um ladrão. Ou um trabalhador braçal, iniciando mais um dia na trajetória infinita de sua exploração. Quem sabe um comerciante, de sexo ou de drogas. Talvez Pedro – que dirá ele se for Pedro? Inventará uma desculpa por ter saído de casa? Por ter-se arriscado? Dirá a verdade, mesmo ele próprio não sabendo qual seja exatamente ela? Justificará que precisou ganhar a rua para apanhar uma fresca, uma brisa, um ar? O vulto se aproxima cada vez mais e ele não tem tempo para pensar em desculpas. Um calafrio na espinha o fará compreender que algo ali acontecerá, independentemente do que tente ou não fazer para evitar. De repente, um tremor na pálpebra anunciará todo o resto por vir – esse tremor, no entanto, não se restringirá à vista afetada pela doença, mas se dará em ambas, que não cessarão de reverberar um estranho movimento involuntário. Aos poucos, o sentimento de total perda de si pretenderá dominá-lo, partindo da planta dos pés e se estendendo até o topo da cabeça, que fervilhará e parecerá querer estabelecer uma impossível conexão entre céu e terra, raiz e chão, real e ilusão. O mundo inteiro ganhará uma coloração que ele sequer imaginou um dia existir e, num lapso, num vislumbre, espécie de encantaria, o branco se fará. Travados para algumas direções, precisando ir mais alto, abrir frentes, Luís e o mundo se transubstanciarão. Tudo a ele se revelará e os olhos abertos, agora bem abertos, deixarão entrever o que o tempo desde sempre escondeu: na transcendência da matéria, o fluxo de sempre fez com que as coisas, coisas incríveis, antes ocultas, pudessem ser enfim verdades. “Mas o que aconteceu enquanto eu dormia?”, Luís indagará e não será capaz de compreender. Embora nada tenha parado, ele estará em suspenso e o sol terá brilhado outra vez. As pernas bambas, o calor fustigante e o assombro das coisas agora para sempre iluminadas não permitirão ao homem olhar por uma última vez o mar – plácido, cinzento, distendido no imenso horizonte à sua frente.

 

Paulo abre os olhos. Pensar no que fará hoje torna seu desejo de permanecer na cama maior. Talvez um livro. Um filme (dois, três). Um passeio a pé pela praia. Uma conversa com amigos. Uma garrafa de vinho, seguida de outra. Um maço inteiro de cigarros. Neste momento não há fome, sede ou vontade de mijar. Somente ele, o corpo – sem cheiro, sem peso, sem dor: um saco cheio de carne e vazio de sensações. Não espera por nada nem por ninguém. Apenas acordou. No meio do dia. Procura seu relógio de cabeceira antes mesmo de tentar adivinhar que horas devem ser, mas não o encontra. Não tardará a vestir-se com algum short e alguma camiseta, tênis de corrida, boné, óculos escuros; máscara e chaves de casa à mão – um desconhecido excitado o espera. Um passeio excitante: talvez apenas isto esteja o mantendo vivo. Ao menos dando-lhe uma impressão de vida. Vida que escorre, que se esvai. Que não consegue respirar. Que se afoga no leito intensivo, no ostracismo improdutivo ou na rotina árdua e mal remunerada dos últimos dias. Vida que estancou, parou no tempo. Que se suspendeu e se desarmou. Desamou. Andou para trás. Vituperou a si própria, ofendeu a nós todos, por toda sua fragilidade, efemeridade, indignidade. Uma fuga e um gozo, instante único, audacioso encontro com o outro, com o real, o externo. Parece haver já uma certa monotonia na forma como se movimenta, se orienta no mundo, pedala sua bike e aguarda pela presa certa e o momento perfeito. Ele talvez esteja ficando um pouco blasé. Respira fundo e, sem que precise dizer nada, nesse único suspiro seria capaz de suscitar, nalguém que porventura o observasse, a impressão fugaz de que ali havia uma vida. Mas ainda há. E essa vida precisa ser gasta, ser vivida. Senão, de que terá valido? Em que terá servido? Tanta dor, tanto descontentamento, tanto embate. O dedo em riste na face do pai e as lágrimas da mãe evidenciando a incompreensão extrema. A inadequação perene, o sentimento de desencaixe que não o abandona. A chegada ao momento-limite, de esgotamento de todas as forças – que parece vir se estendendo dia após dia, semana após semana, mês após mês. “Agora chega, pra mim não dá mais”, mas não dá o quê? Não chega aonde? Há tudo tanto, há tanto tempo. Ou talvez não, talvez haja pouco. Talvez menos, cada vez menos. O tempo no osso, no esqueleto, na raiz do problema. Ele agora passeia na tarde nublada e, feito criança, brinca de se equilibrar no meio-fio da calçada. Ele contempla a água parada da lagoa imensa, implacável, quase mórbida: feito um grande túmulo. A rua é seu lar. Na rua ele se encontra, passa a ser. Na rua ele adquire nome, história, desejo. É na rua que ele compreende o sentido, o sentido oculto, aquele que empresta e fornece razão de ser às coisas e às tormentas. Na rua ele se vê agente. De sua vida, seu destino, seu descontrole. A rua é que o nomeia, classifica, enquadra. Sem rua não há vida. Não há calor. Não há motivo – de comer e beber; de se levantar da cama e trabalhar; de amar. A rua é sua redoma e seu lugar de liberdade. A rua é seu local. Sua praia, sua laia. A rua, para ele, é a antítese máxima da caixa, da tumba, do armário, do baú. A rua é onde ele respira. Onde seu peito se abre e ele recebe em cheio as maravilhas do mundo. Rua é completude, é lazer, labuta e agenciamento de si. Na rua é onde ele encontra o homem que será sua fonte de prazer esta tarde, cortando a grama das calçadas do bairro: macacão laranja identificando sua condição de trabalhador, baseado na mão indicando um intervalo no exercício da função. Talvez não importe muito conhecer os motivos, decerto teria maior relevância imaginar os fins: “onde é que isso vai dar?” Ele nunca havia sentido a necessidade de se fazer esta pergunta. “Você está sempre por aqui?”, palavras que ele próprio não acredita ter sido capaz de formular. (Mas, afinal de contas, o que é a linguagem? Para que serve? Menos para comunicar do que para se alcançar determinado fim: palavras são meio, tão-somente meio – nisso sim ele acreditava.) “Você quer?”, pergunta o trabalhador, estendendo o braço com o cigarro aceso. “Posso?”, sentado a seu lado, puxando fumo, num acanhado meio-fio embaixo de uma grande castanheira. “Essa é da boa”, arrisca-se para quebrar o gelo: silêncio do operário. “Nunca te vi por aqui – e olha que venho sempre!”, efusividade descabida, comentário inócuo: mesma resposta taciturna. “Talvez chova, né”, falar sobre o tempo: auge do fracasso na comunicação humana. O gari observa ao longe o horizonte líquido e fúnebre. “Será que eu posso tirar a máscara um momento?”, pergunta pateticamente no automático, seguindo seu rito, sem sequer perceber que já a tirou há muito tempo, para fumar. O trabalhador insiste em não dar a mínima atenção a suas investidas. “Na real eu queria te propor uma coisa um pouco mais… divertida”, ele mesmo passa a se perguntar por que está insistindo nisso (o bolado passa de uma a outra mão lentamente, sem que nenhum dos dois perceba a inconsciência que rege os movimentos desse entorpecimento coletivo). “Eu queria saber se você era a fim de, de…”, a palavra falta-lhe entre os dentes. “Queria saber se você, digo, se nós. Se nós não.” – o homem coloca seu pau para fora, imenso, rígido, lindo. E permanece olhando ao longe. Por um momento, Paulo precisa recompor-se do susto, engolir em seco a mensagem que ainda estava por lapidar-se na boca. A total inércia facial e corporal por parte do trabalhador talvez tivesse sido para ele, noutra ocasião, um fator a mais de excitação – mas não foi esse o caso agora. “Se bem que. Na verdade, eu…”, o homem em silêncio. “Eu tinha vontade de. Bem, acho que vou tentar de novo, eu…”, a imensa pica do rapaz refulgindo à luz de pleno dia. “Se eu te dissesse que eu, eu…” Respira. “Eu poderia olhar pra esse horizonte imenso e imaginar que fim nos espera. Eu poderia vislumbrar isso. Eu poderia inclusive, se quisesse, andar por cima dessas águas e chegar até o outro lado, a outra margem. Eu poderia. Eu poderia agora olhar no fundo dos seus olhos e te dizer que, não importa o que façam ou o que venham a fazer comigo, eu permanecerei. Eu serei mais um. Mais um que permanece. Eu queria ser capaz de olhar o mundo e ver as coisas como elas não são, mas eu não consigo. Eu queria não ver as entrelinhas, os entreatos, os movimentos da margem. Aquilo que fica eclipsado – nas nossas rotinas mesmo, no dia a dia. Eu queria poder dormir em paz. Eu queria acordar em paz. Sem aquela voz que nos lembra o tempo todo aquilo que verdadeiramente importa. Eu queria. Mas eu não sou assim. Eu não sou desse jeito. Eu sempre digo que faria tudo diferente do que já fiz até hoje, mas no fundo, lá no fundo, eu sei que é mentira. Uma mentira confortável, dessas que a gente repete pra nós mesmos todos os dias. Na verdade, eu faria tudo igual repetidas e reiteradas vezes, até me foder, até não aguentar mais, até me acabar, porque é assim que eu sou. É assim que a gente é – não é? Eu faria agora uma dança, um memorial, uma festa, sei lá, só pra lembrar a mim mesmo que eu existo. Eu ainda existo. Eu arrastaria meu corpo de um lado pro outro nesse asfalto sujo, até me esfolar inteiro, só pra me sentir parte disso tudo. Só pra sacar qual é a minha vibração agora, meu peso, meu nexo, meu fluxo. Só pra me levantar cuspindo sangue e gritar: eu sou, caralho! Eu sou. E eu sinto muito, eu sinto tudo. E eu sei que você me entende. Eu faria uma prece pra mim mesmo quando tudo isso passasse, uma prece agradecendo, da maneira mais egoísta possível, o quanto eu – e somente eu! – estou feliz pra caralho por estar vivo. E diria que seria só pra não perder o costume, mas eu também sei que não seria verdade. Eu rezaria porque isso também sou eu. Faz parte de mim. Então eu te olharia mais uma vez no fundo dos seus olhos e me perguntaria, da maneira mais genuína, que diabo aconteceu enquanto eu dormia. E aí, talvez, você também seria capaz de me olhar, bem lá no fundo, e me dizer – ‘sossega esse coração, te acalma; tudo vai ficar bem’. E eu levantaria e iria embora, sem dizer uma palavra e sem olhar pra trás. Não seria bonito?” O operário, então, olha para Paulo. Encara-o no rosto. Cerimoniosamente, guarda seu lindo e (ainda) rijo pau dentro do macacão laranja e, sem dizer nada, levanta-se e vai embora. Paulo fica só, observando o horizonte. Chora longamente. Ninguém nas ruas, o sol prestes a se pôr, apesar de não se deixar ver por detrás das nuvens. Seu choro absorto e abundante não o deixa perceber que há um galo solto na calçada, praticamente do seu lado, entoando um vigoroso canto e anunciando o fim do dia. Ao longe, o mar – plácido, cinzento, distendido no imenso horizonte à sua frente.

§

 

IV

Homens e seus fins

Em meu juízo final, fui o único juiz
Eu resolvi me perdoar
Quero amor, muito amor
Algo assim pra eternidade
Algo assim, algo assim

20/06/2021

17:31
Luís!
que saudades!
como você está?
acho que volto essa semana pra aí…

17:35
oi, Paulo! Tenho pensado em você.
Aqui está tudo bem, com a sensação esquisita desse tempo louco do mundo…. rs.
Sigo tratando do olho.
Está melhor, mas continua bem embaçado.
vc vai voltar a trabalhar ou vc vem, porque vem?

17:51
acho que isso, essa sensação de “tempo louco”, ainda deve perdurar um tempinho rs
que bom que o olho está melhor!
ainda não temos previsão alguma de retomar as atividades presenciais no trabalho
cada vez mais angustiante tudo isso
mas acho que minha estadia aqui nos meus pais já deu por ora rs
vou, porque vou mesmo.

Beira do mar.

Luiz olha Luís e Paulo.

Luís olha Paulo e Luiz.

Paulo olha Luiz e Luís.

Os três, juntos:

_Homens machucados_

Eu era um menino quando homens machucados
Eram mais bonitos pra mim
Um homem machucado de tudo perfeito
O peito ferido, belezas escorrendo
Do peito dele, dos olhos dele
No pescoço, pelos flancos, no seu centro
Dentro dele, pernas abaixo
Beleza assim de Cristo na cruz
Os braços abertos, sagrado coração
Cabelos sangrentos, no vento frio
Chagas abertas, coroa de espinhos
Sangue vermelho, no céu azul
Homens machucados eram mais bonitos pra mim
Lindeza de Jesus que veio me salvar
Que vai morrer por mim
Homens machucados eram mais bonitos pra mim
Lindeza de Jesus que veio me salvar
Que vai morrer por mim

Epitáfio

Homem

Luiz agora traga as águas do leteio rio:
o patriarca jaz.

Luís esfrega, limpa, lubrifica:
desembaça as perspectivas de futuro que se tem pela frente.

Paulo encara uma estranha e nova normalidade:
a morte próxima e a certeza iminente de que algo sucumbirá.

A última lembrança que Paulo tem de Luiz é a de ele ir até sua casa, já demente. Ao fim da visita, quando perguntado se gostou de ter estado lá, o velho responde:
“eu não, aqui é triste”.

Ele não vê Luís pessoalmente há mais de um ano –
sente muitas saudades.

Por aqui, seguimos morrendo.

Luiz Luís Paulo não teria sido escrita sem:

Xyko Peres, Maria Flora Sussekind e Luís Capucho,
generosos, atentos e apaixonados interlocutores

USP, Teatro da USP, UNIRIO e a universidade pública brasileira

Leonardo Villa-Forte,
especialmente em seu livro Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI (PUC-Rio; Relicário, 2019), um importante referencial teórico para este trabalho

A obra de Luís Capucho,
especialmente suas canções “Parado aqui”, “Peixe”, “Céu”, (álbum Cinema Íris, 2012, transcritas, na íntegra ou parcialmente, nas pp. 411, 416 e 424 deste trabalho, respectivamente); “Os gatinhos de Pedro” (Poema maldito, 2014, livremente adaptada para o gênero narrativo nas pp. 468-471); “Inferno” (em parceria com Marcos Sacramento, ainda não lançada em disco, transcrita na íntegra na p. 448); “Algo assim” (Lua singela, 2003, parcialmente na p. 475) e “Homens machucados” (também ainda não lançada em disco, integralmente na p. 476)

seu romance Diário da piscina (É selo de língua, 2017), cujos trechos foram livremente apropriados e reorganizados em colagem produzida pelo autor deste trabalho nas pp.443-445

e ainda o roteiro experimental da performance transmídia Ave nada, produzido em parceria com Paulo Barbeto, Diêgo Deleon e o coletivo teatral Prática de Montação, ainda não publicado

José Sanchis Sinisterra,
especialmente em seu livro Da literatura ao palco: dramaturgia de textos narrativos (É Realizações, 2016), tradução de Antonio Fernando Borges

Florencia Garramuño,
especialmente em Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea (Rocco, 2014), tradução de Carlos Nougué

Eugenio Barba e Nicola Savarese,
especialmente em seu texto “Dramaturgia: trabalho das ações”, capítulo do livro A Arte Secreta do Ator: um Dicionário de Antropologia Teatral (É Realizações, 2012), tradução de Patricia Furtado de Mendonça

Janaina Fontes Leite,
especialmente em Autoescrituras Performativas: do Diário à Cena (Perspectiva; Fapesp, 2017)

As falas hediondas proferidas pelo Presidente Jair Messias Bolsonaro
durante os dez primeiros meses de pandemia da covid-19 no Brasil 

Os casos de suicídio, depressão e sofrimento psíquico de indivíduos LGBTQIA+
durante o isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19 no Brasil 

Os casos de homicídio de indivíduos LGBTQIA+ e mulheres durante a pandemia de Covid-19 no Brasil

Cake, banda musical estadunidense,
especialmente em sua canção “Thrill” (B-sides and rarities, 2007), citada em livre apropriação na epígrafe deste trabalho

Virgílio,
especialmente em sua Eneida (livro 6, versos 713-15), transcritos na íntegra na p. 408

Samuel Beckett,
citado por Georges Didi-Huberman em seu livro O que vemos, o que nos olha (Ed. 34, 2010), na tradução de Paulo Neves, e transcrito na p. 425

Franz Kafka,
citado por Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro Kafka: para uma literatura menor (Assírio & Alvim, 2003), em tradução de Rafael Godinho, e transcrito na p. 449

Deisy e Luiz Henrique,
pessoas de coração imenso

A trágica morte de “seu” Luiz,
niteroiense, viúvo, botafoguense e pai de sete filhos.