Diversidade e tutela – A pós-graduação na USP

Por Ronaldo de Breyne Salvagni, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da USP

O Regimento da Pós-Graduação está em discussão na USP, e é um bom momento para fazer algumas reflexões. Em especial, a reflexão sobre dois princípios básicos que deveriam nortear a elaboração desse regimento: a diversidade e a tutela.

A Universidade abrange uma grande quantidade e variedade de áreas de conhecimento, cada uma com suas características e particularidades em todos os aspectos, seja em formas de organização, operação, relações e inserções sociais etc., e ela deve atender a essas demandas da melhor maneira possível. A Universidade é uma “multiversidade”.

A ideia de se ter as mesmas regras para todos, ter-se um “modelo único” centralizado de pós-graduação, choca-se com essa realidade, limitando possibilidades e provocando extraordinário empobrecimento dessa pós-graduação. Um “modelo único”, qualquer que seja, dificulta enormemente iniciativas de interdisciplinaridade, e é totalmente incompatível com tentativas de inovação.

Além disso, a centralização aumenta tremendamente a burocracia, dificultando e atrasando qualquer tramitação. Atualmente, qualquer processo se inicia na Coordenação do Programa (CPP), às vezes precisa passar no Conselho do Departamento, depois segue para a CPG (em geral passando antes por um parecerista ou relator), em seguida pode precisar passar pelo CTA ou pela Congregação da unidade, depois vai para (pelo menos) uma das câmaras do Conselho de Pós-Graduação (CoPGr), muitas vezes passando antes por novo parecerista/relator, e finalmente entra na pauta do CoPGr, para aprovação. Lembrando que:

* cada passo desses é dado em reuniões ordinárias dos órgãos colegiados citados, e que cada um deles se reúne periodicamente, com frequência não maior do que mensal;

* não há sequenciamento lógico no calendário dessas reuniões (com frequência o órgão superior se reúne antes do inferior); e
* alguns desses órgãos, como o CoPGr, se reúnem ordinariamente apenas quatro vezes por ano;

a realidade é que qualquer coisa leva meses para ser aprovada, às vezes mais de um ano. Um simples credenciamento de orientador ou atualização de disciplina não consegue ser formalizado em menos de seis meses. Mesmo um procedimento rotineiro, como emissão de diplomas, tem levado mais de um ano até se poder fazer a entrega ao aluno. Mais grave ainda, se em alguma dessas etapas surgir qualquer dúvida ou faltar alguma informação, o processo todo é interrompido e, na melhor das hipóteses, volta para a CPP – muitas vezes, fica simplesmente parado, até que o interessado procure descobrir o que está acontecendo e reinicie todo o processo.

O segundo princípio que merece reflexão corresponde à crença de que cada Coordenação de Programa, em princípio, é incapaz de estabelecer suas próprias normas e tomar suas próprias decisões. Ela precisa ser tutelada por uma instância superior, que sabe o que é melhor para cada programa e vai dizer o que cada coordenação deve fazer e como fazer. A CPP não tem capacidade de escolher e credenciar seus próprios orientadores nem de definir e aprovar suas próprias disciplinas nem de definir e aprovar suas bancas – todas as decisões finais são do órgão superior, e não podem ser implementadas até que essa decisão final seja tomada. Uma simples mudança de critério de aprovação também precisa ser pré-aprovada pela Câmara do CoPGr antes de entrar em vigor. Essa concepção tutelar distorcida existe e salta aos olhos ao se observar o tamanho e o conteúdo dos regulamentos específicos dos programas atualmente em vigor: são quase todos muito pequenos e não definem quase nada. Não sobrou nada para eles decidirem.

As ideias de centralização e tutela já estão fortemente presentes no Regimento da Pós-Graduação em vigor e, de forma preocupante, estão sendo ampliadas e aprofundadas na nova proposta.
Um exemplo típico disso é uma proposta, que está em discussão e gerando forte polêmica, sobre a criação de um “comitê de avaliação de tese”, que atuaria antes de a tese ser submetida à banca. A ideia é interessante, tem seus prós e contras, mas o fulcro da questão é: será que é necessário colocar isso no Regimento e exigir que todos os programas tenham esse “comitê de tese”? Não seria mais razoável o Regimento apenas possibilitar a criação desse “comitê” e deixar que cada programa discuta e decida no seu âmbito se deseja ou não criá-lo? Será que cada CPP não seria capaz de levar em conta a realidade da sua área de atuação e, dentro dela, decidir se é bom ou não criar esse “comitê”?

O papel do Regimento deveria ser o de estabelecer a natureza, os objetivos e os valores da pós-graduação, definindo a essência dessa atividade na USP, e atribuindo à Pró-Reitoria e ao Conselho Central a missão de zelar por essa essência. Sua ação deveria se limitar a:

* cobrar e avaliar o Plano de Metas específico de cada programa, e aprová-lo;

* avaliar periodicamente a sua realização, cotejando os resultados alcançados no período com a proposta inicial e tomando as providências cabíveis, caso a caso;

* receber e registrar todas as informações referentes aos programas, inclusive sobre as ações e decisões tomadas localmente – essas decisões entrariam em vigor a partir da data de sua aprovação local, na CPP ou na CPG correspondente, evitando a introdução de atrasos burocráticos desnecessários;

* examinar aquelas ações e decisões, retendo o direito de cancelá-las e revertê-las se forem absurdas, a posteriori e apenas nesses casos.

O Regimento não deveria, de forma alguma, entrar em detalhes operacionais nem estabelecer que o programa devesse fazer isto ou aquilo, desta forma ou daquela forma – estas são decisões internas a serem tomadas no âmbito de sua própria coordenação. A preocupação da Pró-Reitoria (e do Regimento) deveria ser apenas com os resultados globais.

O Regimento atual é muito extenso, com 143 artigos. A nova proposta, mais ou menos, mantém essa quantidade de artigos, mas acrescenta parágrafos e itens que aprofundam a uniformização e tiram flexibilidade das Coordenações de Programas. Isso não é nada bom.

Acreditamos que aqui, como em muitos outros casos, vale a expressão small is beautiful. E acrescentaríamos: and works much better.