Batlle, Jorge

Montevidéu (Uruguai), 1927 – 2016

Por Gerardo Caetano Hargain

Em 1999, com 72 anos, depois de 55 anos de vida política ininterrupta, o colorado Jorge Batlle venceu Tabaré Vázquez no segundo turno das eleições presidenciais uruguaias, depois de firmar um acordo com os blancos.

Filho e sobrinho-neto de presidentes, Batlle já havia sido candidato presidencial em 1966, em 1971, em 1989 e em 1994, sendo derrotado em todas essas ocasiões. Paralelamente, coube-lhe presidir uma virada ideológica profunda de seu grupo em direção a ideias de um nítido liberalismo econômico. Apesar dessa guinada, foi talvez o grande agitador da agenda política uruguaia antes do golpe de Estado de junho de 1973 e depois: no período 1980-1985 e durante os governos democráticos, entre 1985 e 2000.

Tornou-se finalmente presidente da República no ano 2000, graças às novas regras eleitorais aprovadas na reforma constitucional de 1996. Coube a Jorge Batlle dirigir um governo carregado de dificuldades externas e internas, em meio à recessão econômica mais longa de que o país se recorda e com uma crise financeira explosiva. Muito desprestigiado em sua gestão, pôde, no entanto, enfrentar as conspirações para tirá-lo do poder no pior momento da crise, em 2002, e entregar em 1 de março de 2005 a faixa presidencial a Tabaré Vázquez, primeiro chefe de Estado proveniente de um partido de esquerda no país.

 

A dinastia Batlle

Apesar de ter declarado que se deu um “ano sabático” após sua controvertida gestão, nada indica que Jorge Batlle tenha se retirado da vida pública. De todo modo, seus filhos não se dedicam à política e não há indícios do surgimento de um novo Batlle presidente. O tempo dirá se terminou a “dinastia” que forneceu ao Uruguai quatro presidentes constitucionais ao longo de cinco gerações – uma família cuja trajetória política é inseparável da do país.

O primeiro Batlle a chegar ao rio da Prata foi o comerciante catalão José Batlle y Carreó, em 1800. Ao obter, em 1806, o monopólio da provisão de víveres para a Real Marinha Espanhola com sede em Montevidéu, começaram suas atribulações. Arruinado pela revolução, passou o resto de seus dias (morreu em 1854) tentando cobrar o que lhe devia a Coroa espanhola, deslocada para sempre de Montevidéu em 1814.

Entre os cinco filhos que teve com Gertrudis Grau figurava Lorenzo Batlle, nascido em 1810, que depois de uma cuidada educação na Espanha retornou ao país, em 1831. Ao iniciar-se a Guerra Grande (1839-1851), foi mobilizado dentro do grupo colorado-unitário, cabendo-lhe inaugurar a saga política da família. A partir do “sítio grande”, iniciado em 1843 e só terminado em 1851, teve ativa participação na defesa de Montevidéu, chegando a exercer o cargo de ministro da Guerra e Marinha. Nesse papel coube-lhe a difícil tarefa de capturar e mandar para o exílio nada menos que Fructuoso Rivera, caudilho rural fundador de seu partido.

Em 1852, Lorenzo Batlle foi um dos fundadores da Sociedade de Amigos do País; no ano seguinte dirigiu-se às fileiras do Partido Conservador. Em 1855, integrou a União Liberal. Depois foi ministro da Fazenda até novembro de 1857, abandonando a seguir a política por vários anos.

Com o triunfo da revolução do caudilho Venancio Flores, aceitou de seu ex-adversário dentro das fileiras coloradas o Ministério da Guerra e Marinha, que ocupou durante três anos. Em 1868, depois da morte trágica de Flores, foi eleito presidente após um conflituoso processo eleitoral, no qual acabou enfrentando o temido caudilho colorado José Gregorio Suárez.

Sua presidência ficou marcada pelas dificuldades e, em grande medida, pelo fracasso: sua política excludente (“governarei com meu partido e para meu partido”) gerou uma férrea oposição dos blancos; dentro de seu próprio partido teve também sérios conflitos com os caudilhos colorados regionais; uma grave crise econômico-financeira desestabilizou profundamente seu governo. Em 1870, liderada por Timoteo Aparicio, iniciou-se a chamada Revolução das Lanças, que colocou em xeque definitivamente o futuro de sua administração.

Deixou o cargo no fim de seu mandato constitucional, não participando do pacto de abril de 1872, que pôs fim à revolução e iniciou a política de coparticipação entre blancos e colorados. Carregando o peso de fortes críticas a seu período de governo, deixou novamente a política – afastamento que só interromperia no fim da vida para enfrentar o governo militarista e corrupto de Máximo Santos. Lorenzo Batlle integrou o Comitê Revolucionário do Quebracho em 1886 (em que lutaram seus dois filhos, José e Luis), falecendo no ano seguinte.

 

Batllistização

Entre esses dois filhos, coube fundamentalmente a José Batlle y Ordóñez assumir a herança política da família. Nascido em 21 de maio de 1856, voltou-se desde cedo para a filosofia e o jornalismo; em seus primeiros empreendimentos como jornalista (em jornais como A Razão A Luta ou O Espírito Novo), afirmou sua vocação por um ofício que não abandonaria pelo resto da vida.

Sua primeira militância política o perfilou como um férreo opositor das ditaduras de Latorre e Santos. Em 1886, fundou O Dia e participou ao lado do pai e do irmão da Revolução do Quebracho, caindo prisioneiro. Acompanhou a transição civilista de Tajes, que o designou, em 1887, como chefe político do Departamento de Minas.

Seguiu Julio Herrera y Obes, presidente entre 1890 e 1894, para depois confrontar-se duramente com ele, passando a liderar a iniciativa para constituir um novo setor popular e renovador dentro do Partido Colorado. Nesse projeto, Batlle y Ordóñez desenvolveu uma ação política inovadora, por meio da criação de clubes secionais e da venda nas ruas de uma publicação mais próxima do povo, por seu custo e conteúdo. Foi eleito deputado por Salto, em 1890, integrante do Conselho de Estado que se seguiu ao golpe anticoletivista de Cuestas, em 1898, e depois eleito senador por Montevidéu, em 1899. Nessa década, afirmou uma liderança ascendente e polêmica que o levaria à presidência da República, em março de 1903.

Nessa época, no país primava a política de coparticipação, que outorgava à oposição nacionalista, acaudilhada por Aparicio Saravia, o governo de seis chefaturas departamentais. Contrário a essa política, Batlle venceu militarmente a Revolução Nacionalista Saravista de 1904, na qual morreu o célebre caudilho blanco.

Depois de uma estada na Europa entre 1907 e 1911, durante sua segunda presidência (1911-1915) impulsionou um amplo pacote de reformas em diversos planos: econômico (nacionalização, estatização e industrialização); social (legislação social de cunho solidarista e apoio crítico ao movimento operário); rural (aumento da pressão fiscal sobre o latifúndio, planos de colonização e recuperação de terras fiscais para promover um “país de pequenos proprietários” efetivamente agropecuário); tributário (aumento dos impostos diretos e diminuição dos indiretos); moral (anticlericalismo e proposta de secularização, cosmopolitismo baseado em valores universais e defesa dos direitos femininos); político (defesa de um Executivo colegiado e referendo) etc. Na defesa dessas e de outras reformas, como sintetizador a partir do Estado de um conjunto de iniciativas de transformação provenientes de distintas tendências (socialistas, anarquistas, nacionalistas etc), coube a Batlle y Ordóñez simbolizar um país que culminava desse modo em seu processo de modernização capitalista.

Depois de 1915, coube-lhe presidir por duas vezes (1921 e 1927) e durante alguns poucos meses o Conselho Nacional de Administração, o ramo colegiado desse exótico “Executivo Bicéfalo” da Constituição de 1919. Polêmico, apaixonado, admirado e rechaçado ao extremo, depois de sua morte, ocorrida em 1929, Don Pepe – como era chamado – passou a ser a figura emblemática do que se passou a chamar batllistização da sociedade uruguaia.

Embora os filhos de José Batlle (em especial César) também se dedicassem à política partidária, foi a seu sobrinho, Luis Batlle Berres, que coube tomar o posto de sua geração. Em 1947, Luis Batlle chegou à presidência da República. Com a morte de Tomás Berreta – a quem acompanhara como candidato à vice-presidência nas eleições do ano anterior –, Luis já contava com uma intensa carreira política. Tinha sido um ativo parlamentar de 1923 até o golpe de Estado de Terra em 1933, e depois dos anos de abstencionismo, na legislatura de 1942-1946; fora chefe de redação de O Dia; fundador do jornal A Luta contra a ditadura “terrista”; exilado na Argentina e revolucionário sob as ordens de Basilio Muñoz e Tomás Berreta, em 1934.

Em 1950, a fração que ele dirigia ganhou as eleições por larga margem, assim como em 1954. Em contrapartida, perdeu de forma concludente em 1958 e, ainda que tenha sabido recuperar-se nos anos seguintes, voltou a perder em 1962 por pequena diferença, apesar de ser o candidato que obteve o maior número de votos.

Eloquente e enérgico, Luis Batlle teve dois poderes centrais: primeiro, o do Estado, que colocou a serviço de seu conceito de mudança, e que lhe deu a força de seu carisma (“meu pai era caudilho até de costas”, disse seu filho, o ex-presidente Jorge Batlle Ibáñez). E, em segundo lugar, sua vocação de jornalista, tanto na imprensa escrita (em Ação) quanto na radiofônica (rádio Ariel), desde a qual exerceu uma maneira renovada de luta política.

Eleito senador em 1963, foi surpreendido pela morte em 15 de julho de 1964, quando preparava mais uma vez suas hostes para retornar ao governo nas eleições de 1966. Admirador intransigente de Don Pepe, Luis Batlle tentou restaurar os tempos reformistas de seu tio e conseguiu impulsionar várias iniciativas vitoriosas. Mas o país e o mundo haviam mudado e as propostas do primeiro batllismo já não podiam ser restauradas com êxito.