Artigo escrito pelo Professor Doutor Guilherme Adolfo dos Santos Mendes
16 de Dezembro de 2025
A Emenda Constitucional nº 132/2023 promoveu profunda reconfiguração do sistema de tributação do consumo no Brasil, especialmente ao instituir o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Entre as inovações mais relevantes está a remodelação das formas de apuração e extinção do crédito tributário, com destaque para o mecanismo denominado split payment, disciplinado pela Lei Complementar nº 214/2025.
De forma sintética, o split payment consiste no recolhimento do IBS e da CBS no momento da liquidação financeira da operação, mediante segregação automática dos valores pela instituição responsável pelo pagamento. O montante correspondente aos tributos é direcionado diretamente aos entes arrecadadores (Comitê Gestor do IBS e Receita Federal do Brasil), enquanto o valor líquido da operação é repassado ao fornecedor. Trata-se de formulação que altera profundamente a lógica tradicional de arrecadação ao modificar o momento e o agente responsável pelo pagamento do tributo.
Esse instituto insere-se em um novo modelo integrado de extinção do crédito tributário relativo ao IBS e à CBS. A Lei Complementar nº 214/2025 elenca cinco modalidades de extinção dos débitos: compensação com créditos, pagamento direto pelo contribuinte, recolhimento via split payment, recolhimento pelo adquirente e recolhimento por responsável tributário.
A inovação mais sensível, contudo, não está propriamente na multiplicidade das formas de extinção, mas na vinculação do direito ao crédito do adquirente à efetiva liquidação do débito tributário correspondente. Essa vinculação rompe com o arranjo então vigente da não cumulatividade, no qual o direito ao crédito deriva da ocorrência do fato gerador na etapa anterior, e não do efetivo recolhimento do tributo.
É exatamente nesse ponto que reside o vício constitucional. O art. 156-A, §5º, II, da Constituição Federal, introduzido pela EC nº 132/2023, autoriza a lei complementar a estabelecer hipóteses de vinculação entre o direito ao crédito e a liquidação do débito. A excepcionalidade constitucional, portanto, não está no split payment em si, mas na própria vinculação entre crédito e pagamento, que representa uma ruptura estrutural com a técnica clássica de não cumulatividade.
O texto constitucional é claro ao empregar a expressão “hipóteses”, o que evidencia se tratar de autorização excepcional, e não de um permissivo para a transformação dessa vinculação em regra geral do sistema. O split payment surge, nesse contexto, como um instrumento operacional necessário para viabilizar essa vinculação atípica, e apenas por essa razão encontra respaldo constitucional.
Ao estabelecer a vinculação entre crédito e liquidação do débito como regra geral, a Lei Complementar nº 214/2025 extrapola o permissivo constitucional. E, por decorrência lógica, ao transformar o split payment em regra estrutural e generalizada, também excede a autorização conferida pela Constituição, já que esse mecanismo só foi constitucionalmente admitido como meio para implementar regimes especiais de vinculação.
A inconstitucionalidade, portanto, é dupla e concatenada: (i) a lei complementar converte em regra geral uma vinculação que a Constituição tratou de forma restrita; e (ii) generaliza o split payment, instrumento que apenas se legitima constitucionalmente como técnica auxiliar dessa excepcionalidade.
O descompasso torna-se ainda mais evidente quando se observa que a lei complementar estendeu o split payment inclusive às hipóteses de pagamento antecipado, nas quais a liquidação financeira ocorre antes mesmo do fornecimento do bem ou da prestação do serviço. Nesses casos, o recolhimento do IBS e da CBS antecede o próprio fato gerador e se caracteriza como verdadeira substituição tributária para trás, isto é, uma antecipação do pagamento do tributo antes da ocorrência do evento tributável.
Esse modelo agrava a inconstitucionalidade, pois não apenas vincula crédito à liquidação do débito de forma generalizada, como também antecipa o recolhimento para momento anterior ao próprio fato gerador e, desse modo, tensiona princípios estruturantes do sistema tributário nacional, como anterioridade, irretroatividade e capacidade contributiva.
Em síntese, embora a Constituição tenha admitido, com cautela, a possibilidade de vinculação excepcional entre crédito e pagamento, a Lei Complementar nº 214/2025 desconsiderou essa prudência constitucional. Ao generalizar essa vinculação e, por consequência, o split payment, bem como o estender inclusive a hipóteses de antecipação do pagamento, a lei complementar ultrapassou os limites materiais traçados pela Constituição, comprometeu a coerência da nova estrutura e abriu espaço para um debate incontornável sobre a inconstitucionalidade do regime adotado.
