Artigo escrito pelo Professor Doutor Guilherme Adolfo dos Santos Mendes
22 de Dezembro de 2025
A Reforma Tributária sobre o consumo foi apresentada como um movimento estrutural de racionalização do sistema, tendo como eixos centrais a neutralidade tributária e a não cumulatividade plena. Nesse contexto, o regime de devolução de valores pagos ou creditados indevidamente, em especial o ressarcimento de saldos credores, assume papel absolutamente estratégico. Sem mecanismos eficazes e tempestivos de retorno desses valores ao contribuinte, a não cumulatividade deixa de ser um princípio operativo e passa a ser mera proclamação normativa.
A Lei Complementar nº 214/2025 organiza o tema ao prever três modalidades distintas de devolução: ressarcimento, restituição e transferência. Cada uma delas atende a finalidades próprias e responde a diferentes causas do indébito ou do saldo credor. O ressarcimento, objeto central deste texto, destina-se à devolução de créditos acumulados periodicamente, justamente para impedir que o tributo se transforme, na prática, em custo econômico incorporado ao preço.
Sob o plano normativo, os prazos previstos para análise dos pedidos de ressarcimento são, em tese, razoáveis. A lei estabelece janelas temporais diferenciadas, que variam de 30 a 180 dias, conforme o perfil do contribuinte, a natureza do crédito e o valor envolvido. Além disso, na ausência de manifestação da Administração Tributária dentro desses prazos, impõe-se o dever de entrega dos valores ao particular em até 15 dias.
A arquitetura legal, portanto, responde adequadamente ao problema no plano abstrato. O verdadeiro desafio, contudo, não está na formulação da regra, mas na sua capacidade de induzir comportamento institucional efetivo. A pergunta central não é se os prazos são razoáveis, mas se serão efetivamente cumpridos.
É nesse ponto que o modelo revela sua fragilidade.
A lei prevê sanção para o descumprimento dos prazos, que corresponde à alteração do regime de atualização dos valores devidos. Ao revés de correção a partir apenas do segundo mês subsequente ao do protocolo do pedido e com base na taxa Selic acumulada mensalmente, a atualização dos valores passa a ser calculada diariamente desde o início do prazo para apreciação do pedido até o dia anterior ao do efetivo pagamento. À primeira vista, poderia parecer um mecanismo suficientemente dissuasório. Uma análise mais cuidadosa, entretanto, revela o contrário.
Primeiro, trata-se de juros simples, e não compostos. Isso significa que a mora estatal não cresce exponencialmente, como ocorre com os encargos financeiros que recaem sobre o próprio Estado quando se custeia por meio da dívida pública, ou mesmo sobre o particular na obtenção de empréstimos para financiar suas atividades.
Apesar desse modelo ser adotado de forma simétrica pela legislação – tanto quando o Fisco é devedor do contribuinte quanto quando o contribuinte é devedor do Fisco –, em ambos os casos, os juros simples punem o credor, e não o devedor.
Esse desenho normativo produz efeitos bem conhecidos e amplamente discutidos na literatura quando o contribuinte é o devedor. A incidência de juros simples sobre créditos tributários, aliada à suspensão da exigibilidade durante o contencioso administrativo, estimula comportamentos estratégicos de inadimplemento, sonegação e litigância. Mesmo quando a infração é identificada e autuada, a contestação administrativa impede a cobrança imediata, e quanto maior a duração do processo, menor será o valor real da dívida ao final, em razão da ausência de capitalização dos encargos.
Há estudos que demonstram, inclusive, a existência de um prazo crítico de duração do litígio a partir do qual a conduta ilícita se torna economicamente vantajosa, ainda que ao final o contribuinte seja vencido. O sistema, portanto, transforma o tempo em aliado do devedor.
Esse mesmo raciocínio aplica-se também à lógica do ressarcimento do IBS e da CBS. Ao prever juros simples como sanção pelo descumprimento dos prazos legais, o legislador replica um modelo estruturalmente disfuncional, no qual a demora favorece quem deve. O resultado é um regime que, mais uma vez, desestimula a celeridade, penaliza o credor e compromete a neutralidade econômica do tributo.
Segundo, a sanção é aplicada de uma única vez, de forma automática, a partir do simples transcurso do prazo. Uma vez configurada a mora, ainda que por um único dia, o acréscimo punitivo incide integralmente. Paradoxalmente, isso reduz o incentivo à rápida regularização do atraso, pois o custo marginal da demora adicional tende a ser irrelevante; na verdade, negativo. Em outras palavras: ultrapassado o prazo legal, o sistema deixa de fomentar a celeridade e passa a incentivar a procrastinação.
O efeito econômico é claro: a mora opera em favor do devedor público, e não do credor privado. O contribuinte, por sua vez, permanece sem instrumentos eficazes para compelir o cumprimento tempestivo da obrigação.
Esse desenho normativo compromete diretamente a promessa de neutralidade tributária. Um tributo que se pretende neutro, mas cuja devolução de créditos é incerta, tardia e financeiramente desvantajosa, reintroduz cumulatividade por vias transversas. A acumulação de créditos deixa de ser um ônus transitório e passa a funcionar como fonte de financiamento do próprio Estado.
Em última análise, o sucesso do IBS e da CBS dependerá menos da elegância de suas fórmulas legais e mais da credibilidade do compromisso estatal com o cumprimento dos prazos que ele próprio instituiu. Sem sanções verdadeiramente eficazes, o risco é repetir, sob nova roupagem, um problema antigo: um sistema que promete neutralidade, mas entrega custo financeiro; que proclama não cumulatividade, mas pratica retenção indevida de valores.
A reforma não falhará por excesso de ambição normativa, mas poderá falhar por timidez sancionatória. E, nesse ponto, a experiência brasileira recomenda cautela.
