ÉTICA EM PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS

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por: Décio B. Freitas Neto e João Victor Bonaldo

 

Para que possamos entender o papel da ética dentro da ciência e, em especial, dentro de publicações de trabalhos científicos, devemos primeiramente tentar entender seu significado. Ética é um conceito vasto, mas que pode ser entendido como o conjunto de diretrizes e reflexões sobre as relações humanas, e o modo de ser e de pensar de nós seres humanos[1]. Uma conduta que preze a lisura ética condena, portanto, irregularidades tais como fraude, omissão, adulteração, violação, e deturpação de dados e/ou conceitos, além de apresentação prematura de resultados[2].

Muitas são as questões que podem ser esmiuçadas do ponto de vista da ética envolvendo a comunicação científica. Desde o plágio (também o autoplágio), publicação duplicada, listagem incorreta de autores, “salami slicing”, entre outros. Destaca-se entre as condutas antiéticas a fraude, que é um conjunto de práticas que abrange desde o chamado “erro honesto”, ou seja, sem intenção de fraude, até a fraude total, que é representado por uma série de más condutas científicas[3].

O plágio é definido como prática em que o autor deliberadamente utiliza dados, frases ou até mesmo idéias e conceitos oriundos de trabalho de terceiros, porém sem a devida permissão ou consentimento destes[3,4]. Não é incomum também o cometimento do chamado autoplágio, que ser inicialmente definido como um tipo de plágio no qual o autor republica um trabalho inteiramente ou em partes (de sua autoria) ao submeter uma nova publicação5. Apesar de não estar tomando dados ou idéias de terceiros, o autoplágio ainda assim é observado já que os direitos autorais do órgão de publicação são infringidos.

O “autor(es)” de um trabalho científico é definido de maneira geral como sendo o(s) indivíduo(s) que realiza(m) contribuição intelectual significativa. Ou seja, o autor deve contribuir substancialmente na concepção/design, aquisição de dados, análise e interpretação dos mesmos3. Uma prática denominada ghostwriting (quem a pratica é chamado de ghostwriter ou escritor-fantasma), acontece quando não se conhece o verdadeiro autor do trabalho, ou seja, escritores são pagos para elaborar artigos científicos para publicação com o nome de pesquisadores terceiros, havendo o anonimato do verdadeiro escritor. Normalmente o autor que emprestou seu nome e credibilidade ao artigo é conivente com a situação[6].

Salami Slicing” é o termo em inglês da prática em que um trabalho significativo é dividido em dois ou mais trabalhos. Envolve a fragmentação de um trabalho de pesquisa em “fatias”, ou seja, os trabalhos resultantes tem a mesma hipótese, espaço amostral e métodos[3,7].

Uma das irregularidades mais comuns em publicações científicas é a fraude, que pode ser definida como a publicação de dados ou conclusões gerados por manipulação ou invenção de dados. Existem dois tipos de fraude, a fabricação e a falsificação. Na falsificação, os dados e as conclusões publicados são fruto de mera invenção, já na falsificação a fraude é oriunda da manipulação de dados, imagens, processos, etc, além da omissão de dados com o objetivo que as conclusões obtidas não sejam enfraquecidas[3]. De qualquer maneira, a fraude (fabricação e falsificação) são formas de irregularidades muito graves porque resultam em conclusões e idéias que não refletem a verdade de maneira objetiva. Qualquer país que almeje desenvolver-se deve ter a ciência como seu motor central, já que não há progresso sem aprimoramento tecnológico e não há tecnologia sem uma ciência profunda por trás. Contudo, os efeitos em cascata gerados por resultados fraudulentos em pesquisas acadêmicas geram mais problemas do que os benefícios trazidos com a fraude, portanto é tão importante que o assunto de ética em publicações seja tratado e entendido em todas as universidades.

No ano de 2018 uma das universidades mais prestigiadas do mundo teve problemas envolvendo falsificações em pesquisa. Uma investigação interna da Harvard Medical School determinou que 31 trabalhos do professor Piero Anversa, renomado cardiologista, possuem dados fraudulentos[8]. Em seus trabalhos, Anversa e colaboradores afirmaram ter encontrado uma população de células no coração com capacidade de se regenerar, mas as chamadas “c-kit stem cells” não foram observadas em trabalhos de outros grupos de pesquisa. Anversa usou estes dados em diversas publicações e arrecadou milhões de dólares para dar continuidade ao seu projeto. E como se não fosse o bastante, com esta teoria de regeneração do tecido cardíaco os pesquisadores deram inicio em testes clínicos em diferentes hospitais. O problema maior reside na contaminação causada no pensamento científico dos que estão iniciando na área médica, afinal, grande parte do seu trabalho foi publicado na New England Journal of Medicine revista que alcançou em 2017 o relevante fator de impacto de 73,95.
A China é tema recorrente quando se discute práticas duvidosas na ciência. A transformação de um país emergente na maior potência econômica mundial nos próximos 20 anos contou com um investimento amplo do governo em diversas universidades e áreas de conhecimento. Hoje é difícil não encontrar qualquer grupo de pesquisa que queira publicar seus dados com antecedência pelo motivo justo de “se não publicarmos, algum grupo da China publicará”. Uma rápida busca na internet com os termos “chinese paper fraud” retorna na página inicial uma série de artigos questionando a reprodutibilidade dos resultados obtidos, como exemplo um artigo publicado na renomada revista Nature de 12 de junho de 2018. possui o sugestivo título de China sets a strong example on how to address scientific fraud [9].

Para ilustrar a situação, 100 trabalhos de aproximadamente 500 colaboradores publicados entre os anos de 2012 a 2016 foram retratados por conterem falsificação nas referências, coincidentemente todos os trabalhos foram publicados na mesma revista Tumor Biology[10]. Após esse escândalo, o governo chinês anunciou a adoção uma politica de tolerância zero com fraudes em pesquisas acadêmicas, ratificado pelo exemplo citado acima. Dos 500 colaboradores envolvidos neste escândalo especifico apenas 11 se provaram inocentes. Este alerta levou o próprio governo a investigar mais a fundo o que vem ocorrendo dentro das próprias universidades, então uma investigação da Chinese State Food and Drugs Administration mostrou que no ano de 2016 cerca de 80% dos dados de novas drogas desenvolvidas pelos chineses apresentavam fabricação de dados ou ocultação diversos efeitos colaterais[11].


Referências:

  1. TORRESI, S. I. C; PARDINI, V.L.; FERREIRA, V.F. Ética nas publicações científicas. Quimíca Nova, Vol. 31, No. 2, 197, 2008;
  2. RODRIGUES, A.V.F.; CRESPO, I.M.; MIRANDA, C.L. Ética em pesquisa e publicações científicas. Em Questão, V. 12, n. 1, p. 33-50, 2006;
  3. Ethics in research & publication. Disponível em www.ethics.elsevier.com. Acesso em: 26 de Novembro de 2018;
  4. Committee on Publication Ethics (COPE). Principles of Transparency and Best Practice in Scholarly Publishing. Versão 2, 2015. Disponível em http://www.publicationethics.org/resources/guidelines-new/principles-transparency-and-best-practice- scholarly-publishing . Acesso em: 28 de Novembro de 2018;
  5. iThenticate. THE ETHICS OF SELF-PLAGIARISM. Disponível em https://www.ithenticate.com/hs-fs/hub/92785/file-5414624-pdf/media/ith-selfplagiarism- whitepaper.pdf . Acesso em: 28 de Novembro de 2018;
  6. GRIEGER, M.C. A.; Escritores e Comércio de Trabalhos científicos na Internet. A Ciência em Risco. Revista da Associação Médica Brasileira. Vol. 53, n3. 2007;
  7. ABRAHAM, P. Duplicate and salami publications. Journal of Postgraduate Medicine, Vol 46, n.2, p.67-69, 2000;
  8. JOHNSON, C. Y.; Harvard investigation finds fraudulent data in papers by heart researcher. Disponível em https://www.washingtonpost.com/science/2018/10/15/harvard- investigation-finds-fraudulent-data-papers-by-heart-researcher/. Acesso em: 27 de novembro de 2018;
  9. China sets a strong example on how to address scientific fraud. Disponível em https://www.nature.com/articles/d41586-018-05417-1. Acesso em: 27 de novembro de 2018;
  10. NORMILE, D. China cracks down after investigation finds massive peer-review fraud. Disponível em https://www.sciencemag.org/news/2017/07/china-cracks-down-after-investigation-finds-massive-peer-review-fraud Acesso em: 27 de novembro de 2018;
  11. MACDONALD, F. 80% of Data in Chinese Clinical Trials Have Been Fabricated. Disponível em https://www.sciencealert.com/80-of-the-data-in-chinese-clinical-trial-is-fabricated. Acesso em: 27 de novembro de 2018;