O Programa de Filologia e Língua Portuguesa, elementos para uma pré-história

Patricia Carvalhinhos

Docente do PPG FLP e
Membro da Comissão FLP50

Imagem: Plano de 1949-54: sistema de vias principais e zoneamento na Cidade Universitária – ver créditos.

A paleontologia nos ensina que a vida não surge de uma hora para outra. Durante muito tempo, a Terra abrigou formas de vida bastante embrionárias e se formos considerar éons, períodos e eras comparativamente às 24 horas de um relógio, mencionando a bela analogia usada por Anielli (2016)[i], a espécie humana teria surgido após às 23h36 e muitos segundos na grande escala temporal da Terra, ou, traçando um paralelo entre a idade da Terra e um ano (BRANCO, 2016)[ii], “O Homo sapiens surge dia 31 de dezembro, às 23h36min51s”. Isso não quer dizer, contudo, que até 23h36min51s as condições para que os humanos surgissem não se estivessem consolidando.

Assim também podemos criar uma pré-história do Programa de Filologia e Língua Portuguesa e, ainda mais, da própria área homônima. Se o Programa está cumprindo 50 anos, podemos dizer que a pesquisa surgiu há muito mais tempo. Embora caracterizada por um perfil normativo e descritivo - como soíam ser pesquisas linguísticas na época - também o gérmen de todas as pesquisas modernas ali se encontravam, tal como o trilobita do Cambriano mantinha, em suas células, elementos que se replicam no DNA dos humanos do Antropoceno.

Fazem parte da pré-história da área e do programa FLP a FFLCH e a própria USP, histórias indissoluvelmente unidas. A FFLCH tem sua história ligada à história da fundação da Universidade, até mais que outras Unidades. Segundo Campos[i], a hipótese da fundação de uma Universidade em São Paulo era aventada desde o princípio do século XIX. Ao longo desse século, várias tentativas mais ou menos vagas foram cogitadas, mas somente após o advento da República os projetos passariam a tomar contornos mais definidos, muito embora a realização não se efetivasse antes da década de trinta do século passado.

Até então, São Paulo contava com vários centros de educação superior, sobretudo em nível profissionalizante:

O mais antigo desses Institutos é o Astronômico e Geofísico, cujas origens remontam ao ano de 1886 (...). No setor de Agronomia, a Imperial Agronômica de Campinas, criada em 1887, (...), é um marco da implantação da pesquisa e da tecnologia agropecuária em nosso país. (...) O antigo Instituto Serumtherapico, organizado por Vital Brasil, oficializado a 23 de fevereiro de 1901 (...), e mais tarde denominado Instituto Butantã, é outro importante organismo que subsidia a USP a nível do ensino e pesquisa. [iii]

Outros institutos e centros de ensino posteriormente integrados à USP foram o Instituto de Higiene (atual Faculdade de Higiene e Saúde Pública), o Museu Paulista, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), Escola de Farmácia de São Paulo, Escola de Medicina, Faculdade de Direito, Escola Politécnica, entre outras. Ou seja, entre o fim do século XIX e o começo do século XX, o ensino e a pesquisa estavam pulverizados no Estado de São Paulo. “A década de 20 foi rica em estudos pedagógicos e propostas educacionais[iii], e cada vez mais se percebia que só com um sistema educacional e cultural articulado seria possível mudar-se a mentalidade da República Velha. Citamos Júlio de Mesquita Filho (1969:164), que discutiu o tema:

Restabelecido o jogo natural das instituições convencionais, pelo advento da opinião pública, restar-nos-ia dar início à construção do organismo concatenador da mentalidade nacional, representado, em todos os países de organização social completa, pelas universidades[iv].

Criada a Universidade de São Paulo em 1934, e a ela anexados os vários Institutos e Escolas já existentes com o objetivo de oferecer organicidade e proporcionar uma sistemática que propiciasse maior eficácia e penetração nas várias camadas da sociedade, percebeu-se a necessidade da criação de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras: “Lamentavam, liberais, republicanos e positivistas, que adentrássemos o século XX sem os estudos de ciência pura e alta cultura, junto ao desenvolvimento da investigação original.”[v]

Com a missão, pois, de colaborar com que houvesse uma tomada de consciência e que paulatinamente houvesse a mudança da mentalidade representada pelas antigas oligarquias, nasceu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Para instituir a Faculdade e dar início a essa missão foi escolhido o Professor Teodoro Ramos, respeitado nos meios científicos internacionais. Ele foi o responsável pela contratação de professores estrangeiros para os diversos cursos da recém-instituída Faculdade de Filosofia, provindos de países como Portugal, França, Alemanha e Itália. Portugal mandou-nos Francisco Rebelo Gonçalves que, segundo STARZYNSLI (1994, 395),

Em 1937, assumiu a regência da Cadeira de Filologia Grega e Latina o professor Rebelo Gonçalves, da Universidade de Lisboa. Coube-lhe a primeira proposta de introduzir um Programa de Estudos Clássicos, orientado para os estudos filológicos e histórico-comparativos (gramática histórica, lexicografia, sintaxe histórica), conforme consta dos termos de sua Aula Inaugural de 21 de março de 1937. (...)

A mesma autora explica que a separação dos estudos de grego e latim ocorreu no ano seguinte, 1938. Segundo Miriam Lifchitz Moreira LEITE[vi], responsável por estudos referentes à memória da Faculdade no seu 60º aniversário, este seria o perfil da recém-criada FFCL:

A Faculdade de Filosofia seria uma unidade onde se institucionaria a ciência básica, onde os estudos linguísticos seriam aprofundados e onde se desdobraria e se adequaria uma Pedagogia que formasse professores do ensino médio. A confusão frequente entre criação da Universidade e criação da Faculdade de Filosofia provém de as duas terem sido criadas juntas, mas também pela vocação da primitiva Faculdade de proporcionar a seus frequentadores uma formação nos diferentes campos da Universidade. A interdisciplinaridade que hoje se propõe como aspiração teórico-metodológica de formação cultural teve, nos primeiros tempos da Faculdade de Filosofia, condições ideais de se desenvolver num encontro de jovens europeus promissores e de professores, advogados e engenheiros brasileiros ávidos de uma profissionalização consagrada por cultura humanista. (1994: 169)

Para a autora, a nova Faculdade incomodava as elites Republicanas tanto financeira quanto intelectualmente, no que concerne à modificação do pensamento e das práticas então vigentes; no primeiro caso, porque representava uma verba que poderia ser aplicada em outros projetos (e, de fato, as verbas escassearam após a passagem de seu idealizador à oposição); no segundo, porque “Ao dogmatismo opunham a liberdade de criação, julgamento e crítica estimulando o conhecimento baseado em critérios científicos, no aprofundamento das especializações.” Desenvolvendo essa afirmação, ela prossegue:

De um lado, os professores estrangeiros se desdobrando através de conferências livres, programas de cursos e de pesquisa para aperfeiçoamento nos níveis educacional, profissional e intelectual dos alunos efetivos e ouvintes das primeiras turmas. De outro, o coro dos professores nacionais preteridos, os conservadores das escolas profissionais e o governo estadual ameaçando continuamente a vida da jovem escola, pelo corte de verbas. E possível que esse antagonismo em que se envolviam o grêmio estudantil, diretores, políticos e jornalistas tenha produzido a aura desse primeiro período da Faculdade de Filosofia. [vii]

Em termos de espaço, vários cursos de Letras, inclusive Língua Portuguesa, iniciaram seu funcionamento de modo provisório no prédio da Faculdade de Medicina, na Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo. Entre os anos de 1940 e 1950, a FFCL estava espacialmente ligada à Praça da República [viii], e já se implantavam

(...) novas atitudes de trabalho intelectual, de rigor e espírito crítico nas ciências e nas letras e a crença em que somente as verdadeiras mentes científicas suportam as dúvidas inerentes a todo conhecimento. A politização foi se acentuando com o fim da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo. [ix]

 Moraes (1994)[x] adentra a história da criação da cadeira de Filologia Portuguesa, ressaltando que Rebelo Gonçalves assume, nesse ano de 1937, a cadeira de Filologia e Literatura Grega e Latina. Othoniel Mota assume a recém-criada cadeira de Filologia Portuguesa. Nesse sentido, 

Os estudos de Português, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, nasciam, pois, sob a égide da Filologia, tomada quer em seu sentido vulgar, de dedicação aos estudos de gramática, quer no também corrente de estudo diacrônico da língua, quer no mais amplo, de estudo de uma cultura através de seus textos escritos, o que implica as duas primeiras acepções e a liga necessariamente a outras ciências, ampliando-lhe vastamente o âmbito (1994, p. 416).

Dois anos depois, em 1939, Francisco Silveira Bueno ingressou por concurso e se manteve por trinta anos atuando na área. Muitos docentes e pesquisadores passaram e deixaram grandes contribuições ao Programa ainda durante sua pré-história. Grandes projetos que persistem, como o NURC, têm sua origem nessa época recuada. Relembrando a trajetória de Silveira Bueno,  Moraes (1994, p. 418) descreve:

[...] Silveira Bueno não se ateve ao estudo da norma do português de Portugal, frequentemente ilustrando as aulas com exemplos tomados ao português falado no Brasil. Delas guardei uma recomendação que me valeu na prática do ensino de gramática, “Comecem sempre pelo exemplo, nunca pela regra!”, indicando o método indutivo, sem dúvida o melhor, no caso.

Fazer pesquisa, naquele momento, parecia mais o fruto de um autêntico interesse em um problema que a necessidade de se obter titulação (na atual conjuntura, parece-nos que há a conjunção desses dois fatores). Desse modo, Silveira Bueno não orientou muitas pesquisas em seu período de atuação.  Moraes (1994, p. 418) aventa hipóteses para tal fato:

Ou pelas condições de trabalho que tinham então os professores da Faculdade, com turmas grandes (reuniam-se em suas aulas, quando ainda não tinham assistentes, as das três secções de Letras), ou pela própria personalidade, o professor Silveira Bueno não incentivava os alunos à pesquisa, nem mesmo a exigia deles. Como consequência, são muito poucas as teses defendidas durante seu tempo de cátedra. A primeira, de 1944, é de aluna da primeira turma da Faculdade. Outras poucas (duas de doutorado, uma de livre-docência) vêm nas décadas de 50 e 60. A substituição dos cursos de Especialização pelos de Pós-Graduação (regime antigo), na de 60, não dá mostra de ter alterado muito o quadro.

O próximo elo dessa corrente é Segismundo Spina, professor e pesquisador que orientou vários docentes ainda vivos, já aposentados. Moraes explica que Spina assumiu a cadeira quando Silveira Bueno se aposentou. Era, até então, livre-docente de Literatura Portuguesa, criador da "[...] disciplina de Camonologia, mas com trabalhos e apaixonado pela Filologia.” (1994, p. 418). Era 1969, período de grandes inquietações políticas e sociais, e também época da Reforma do Curso de Letras e também de sua expansão significativa. Ia-se desenhando, nessa antessala do Programa FLP, um semblante cujos traços ainda hoje são visíveis:

Partindo do estudo do texto (recepção e produção) como objeto primeiro de análise, os programas passam pela morfossintaxe e pela estilística, chegando aos processos da língua falada e abrangendo, ainda, o estudo diacrônico da língua e a iniciação à filologia (MORAES 1994, p.419).

Constituindo um verdadeiro mosaico, os docentes atuais pertencem a várias gerações de pesquisadores. Em meu caso particular, tive formação universitária integral na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – graduação, mestrado, doutorado. São vários que hoje lecionam nesta mesma Faculdade. Docentes dessas gerações foram discípulos de mestres formados por discípulos dos primeiros mestres da Universidade instituída como um todo orgânico, em 1934. Ou seja, somos a “quarta geração” de docentes, considerando as aposentadorias em série ocorridas (e em curso) desde o início do século XXI.

Muitos docentes dessa nova geração não conheceram, empiricamente, a figura clássica do “catedrático”. Os primeiros mestres dos anos 1930 apareciam (e aparecem) no ideário discente como autores de obras (muitas vezes famosas) da bibliografia, e o ingressante não logra estabelecer uma relação entre a pessoa, seu nome e seus laços pretéritos com a atual FFLCH. Se os catedráticos não ocuparam o mesmo espaço físico – os prédios dos Departamentos de Letras são modernos, com seus módulos construídos a partir dos anos 1980 –, ocupam o mesmo espaço ideológico.

Por fim, como afirma Leite,

A memória dá mais importância à reflexão sobre os fatos que à descrição. Insere o indivíduo na memória coletiva, fornecendo uma mistura variável de dados concretos, num labirinto de imaginário coletivo, composto por quadros do passado e reflexões atuais.[xi]

Esses quadros do passado – a pré-história do FLP – merecem ser revisitados e é esse convite que deixamos ao leitor. O presente e o futuro falam por si nas seções Obras e Teses e Dissertações.


[i] ANIELLI, Luiz E.O guia completo dos dinossauros do Brasil. Brasil: Editora Peirópolis, 2016.

[ii] BRANCO, Pérsio de Moraes. Breve histórico da Terra. Serviço geológico do Brasil – Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais (CPRM), publicado em 03 dez. 2016. Acesso em: http://www.cprm.gov.br/publique/CPRM-Divulga/Canal-Escola/Breve-Historia-da-Terra-1094.html, 22 out. 2021. 

[ii] CAMPOS, Ernesto de Souza. História da Universidade de São Paulo. São Paulo, Universidade: Reitoria, 1954.

[iv] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. O Espaço da USP: presente e futuro. São Paulo, Universidade de São Paulo, Prefeitura da Cidade Universitária “Armando Salles de Oliveira”, 1985, p. 25.

[v] Idem, ibidem. P. 21.

[vi] MESQUITA FILHO, Júlio. Universidade, realização da revolução democrática. Discurso de paraninfo da primeira turma da FFCL da USP, 25/01/1937. Política e Cultura. São Paulo: Ed. Martins, 1969.

[vii] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. O Espaço da USP: presente e futuro. Universidade de São Paulo, Prefeitura da Cidade Universitária “Armando Salles de Oliveira”. São Paulo: 1985. P.23.

[viii] LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994). Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, 1994.

[ix] Idem, ibidem, pp. 170-171.

[x] Além do colégio Caetano de Campos, na Praça da República, a FFCL funcionou no prédio da Maria Antônia, de onde, após a traumática invasão e incêndio, houve a mudança abrupta e total para o atual campus da Cidade Universitária, no Butantã, em 1968, funcionando primeiro em precários barracões até a construção das Colmeias, no CRUSP, de onde foi novamente transferida, na década de 1980, para o atual prédio da avenida Luciano Gualberto, nº. 403.

[xi] LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994). Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, 1994, p. 167.

[xii] MORAES, Lygia Corrêa Dias de. Filologia Portuguesa: histórico.  Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22), 1994, p. 415-421.

[xiii] LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Memória da Faculdade de Filosofia (1934-1994). Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, 1994, p. 168.