O projeto

Certa vez, saindo de uma sessão de cinema de rua em São Paulo, Sylvia Caiuby Novaes viu Claudia Andujar, Lux Vidal e Maureen Bisilliat caminhando com os braços entrelaçados. A cumplicidade entre elas mostrava não somente um gesto de amizade, mas sugeria também outras afinidades entre essas mulheres. Aquela imagem na saída do cinema ficou impregnada na memória de Sylvia durante anos, até se transformar no desejo de investigar as trajetórias dessas três mulheres numa pesquisa de antropologia visual. Suas trajetórias são extraordinárias e muitas são as coincidências entre elas: as três possuem origem europeia, todas elas da mesma geração. Claudia Andujar nasceu em Neuchâtel, na Suíça, em 1931; Lux Vidal nasceu em Berlim, na Alemanha, em 1930; e Maureen Bisilliat nasceu em Englefield Green, Inglaterra, em 1931. As três tiveram formação em artes nos Estados Unidos e uma juventude marcada pelo desenraizamento, tendo morado em diversos países até viajarem para o Brasil na década de 1950, onde se radicaram desde então. Apenas Lux Vidal é antropóloga, mas todas têm suas vidas marcadas pelo envolvimento com as sociedades indígenas brasileiras e uma relação de muita proximidade com a antropologia. Claudia Andujar e Maureen Bisilliat são fotógrafas de reconhecido prestígio; Lux Vidal também fotografa, e suas imagens a acompanham desde que iniciou suas pesquisas. A inspiração desta pesquisa vem do grande entusiasmo que as três mulheres possuem aos 90 anos, manifesto nos diversos projetos – todos de grande magnitude, diga-se de passagem – nos quais se engajaram e que concretizaram nos últimos anos.

Durante três anos (2019-2022), as pesquisadoras do projeto “Fotografias e trajetórias: Claudia Andujar, Lux Vidal e Maureen Bisilliat”, financiado pela FAPESP, debruçaram-se sobre as trajetórias dessas três mulheres a partir de suas fotografias. Partindo das inúmeras afinidades entre elas – as quais parecem se multiplicar à medida que as pesquisas avançam – colocaram em diálogo suas produções fotográficas para entender o modo como se envolveram com a fotografia. Afinal, o acervo fotográfico de cada uma é monumental, com milhares de negativos, cromos e fotos. Nos acervos de Claudia e Lux, há ainda uma preciosa coleção de desenhos por elas coletados entre os Yanomami e os Xikrin, respectivamente, durante as várias viagens em que cada uma passou longos períodos com esses povos indígenas. Importante mencionar que, apesar das inúmeras afinidades entre elas e dessas três mulheres terem uma enorme produção fotográfica, cada uma delas marca essa produção com um estilo muito peculiar e um dos objetivos da pesquisa é exatamente entender esses diferentes estilos do fazer fotográfico. Vinculado ao estilo ou modo de olhar, também refletimos sobre os usos que cada uma fez de suas fotografias, o que levou suas imagens a circular em lugares e de formas distintas.

Procuramos pensar a imagem como forma de narrar mundos e revisitá-los, não só o daquele que é registrado na imagem, mas igualmente daquele que a registra com sua câmera. Enfrentamos o desafio da montagem de fotos dos três grandes acervos, procurando evidenciar que outros conhecimentos sensíveis estariam atrelados às fotografias dessas três mulheres, seja de modo expresso ou latente. As montagens realizadas com as fotos expressam formas estéticas e poéticas ao focar enquadramentos, composições, planos, luz, pontos de vista, cores e, nesse sentido, tornaram-se dispositivos fundamentais para ver e pensar as imagens como uma forma aberta de conhecimento, que advém das relações e associações entre elas.

Colocar essas produções fotográficas em diálogo a partir das próprias imagens e dos depoimentos de suas realizadoras nos permitiu melhor entender, por um lado, suas trajetórias e, por outro, suas fotografias como elementos não apenas de comunicação entre sociedades distintas, mas igualmente como forma de produção de conhecimento sobre as pessoas e os temas fotografados. Um conhecimento visual que ultrapassa o que se pode verbalizar: o cotidiano numa aldeia indígena, a pintura corporal, os padrões estéticos, o xamanismo, o contato e suas consequências, dentre tantos outros. As fotografias dessas mulheres nos convidam a viajar juntamente com elas e, muitas vezes, nos levam ao passado – mas o poder e o fascínio dessas imagens reside sobretudo no convite a pensar os rumos do Brasil, a situação atual e o futuro dos povos indígenas.

Um dos desafios do projeto foi ter sido desenvolvido, em grande parte, durante o período de distanciamento social devido às restrições sanitárias impostas pela covid-19. Tivemos menos diálogos presenciais com Claudia, Lux e Maureen do que gostaríamos. A ideia inicial do projeto, de uma antropologia compartilhada, em que conversaríamos sobre as memórias das três a partir de suas fotografias, pôde ser realizada apenas parcialmente. Nossas pesquisas se concentraram sobre alguns encontros que tivemos com elas ao longo dos anos, e também em entrevistas publicadas em revistas, sites, livros e vídeos. As entrevistas concedidas pelas três mulheres, as imagens fotográficas por elas produzidas, seu ativismo político em prol da causa e dos direitos indígenas demonstram que há um desejo por trás da trajetória dessas três mulheres. E esse desejo, tal como o mostrou Freud, é indestrutível, pois ele se dirige ao futuro – o futuro dos grupos com que elas conviveram e aos quais dedicaram suas vidas – sempre a partir de uma certa memória.

Claudia, Lux e Maureen são, hoje, mulheres conhecidas, reconhecidas e prestigiadas. Sobre cada uma delas já se escreveu; foram muitas as entrevistas em que elas expuseram suas vidas e trajetórias. O desafio nesse projeto foi fazer com que, a partir do distanciamento, que mostra e desarticula o olhar, que propõe sua decomposição e posterior recomposição numa montagem (como o fazia Brecht) o passado por elas vivido e rememorado e as imagens fotográficas por elas produzidas se transformasse em movimento.

O que diz Claudia Andujar sintetiza o que as três pensam a respeito das fotografias: 

“Se algum dia eles tiverem curiosidade em saber como viviam seus antepassados, terão essas imagens à disposição. Deixar essa herança da memória étnica para os Yanomami me preocupa tanto quanto deixar os originais em algum lugar seguro para ser lembrada por estudiosos da cultura indígena, por alguma fundação, instituto ou museu de arte”.

Ainda que as três trajetórias certamente não caibam em um relato e tampouco sigam um caminho único, optamos por essa construção – ou ficção, se preferirem – para possibilitar a navegação pelas fotografias de Claudia, Lux e Maureen que vão dando corpo às narrativas biográficas. Afinal, como fazer a montagem visual de cada uma das trajetórias, tão absolutamente singular? Como dar a ver as muitas coincidências entre elas? Como situar cada fotografia que produziram no passo da história do país, do qual participaram tão ativamente? Parte das respostas a essas questões pode ser um pouco decepcionante. Pois uma linha é uma forma clássica de representação da história e uma linha reta certamente é mais fácil de navegar do que uma série de linhas tortas e descontínuas, típicas daquelas que fizeram muitas rotas. Mas se o recurso das linhas temporais parece reduzir a própria vida a uma sucessão de eventos, dando a ilusão de uma linearidade, ele também permite que possamos acompanhá-las de perto em alguns momentos de suas vidas e que o espectador trace suas próprias relações.

As trajetórias dessas três mulheres são extraordinárias, como mostramos a partir de seus depoimentos em entrevistas. Registradas em fotografias ao longo de várias décadas, são testemunho de três formas muito singulares de olhar o mundo. Sobretudo, esses olhares são também formas de estar no mundo, nos convidando para percorrermos junto com elas — tantas vezes quantas quisermos — os lugares onde estiveram e as pessoas que encontraram. Essas fotografias são convites para revisitarmos os mundos que Claudia, Lux e Maureen conheceram e amaram. Talvez por isso suas fotografias sejam e sempre serão uma fonte inesgotável para imaginarmos como eram esses mundos e como desejaríamos que ainda fossem. Sem abarcar uma totalidade, essas fotografias nos abrem enigmas, combinações inesperadas, diálogos sempre renovados que se esquivam de interpretações totais. Convidamos vocês, então, a entrarem nessas trajetórias fotográficas.

Desenho: Jeferson Carvalho