Conforme observou o filósofo argentino Enrique Dussel (2000), a modernidade adquiriu um caráter global a partir de 1492, com o início da colonização da América. Nessa visão, a modernidade se vincularia à expansão marítima ibérica e à consolidação dos impérios coloniais europeus, processos que transformaram o planeta em cenário de uma História Mundial única. Antes desse período, impérios e sistemas culturais coexistiam de forma relativamente isolada. A centralidade adquirida pela Europa na História Mundial constitui, portanto, um dos elementos fundamentais da Modernidade. Dussel identifica, ainda, uma segunda fase da Modernidade, marcada pela Revolução Industrial e pelo Iluminismo no século XVIII, também centrados na Europa, com a Inglaterra emergindo como potência hegemônica mundial até meados do século XX. Esse domínio histórico se consolidou especialmente após o sucesso dos empreendimentos imperiais europeus na África e na Ásia ao longo do século XIX. Destarte, nos últimos quinhentos anos, a Europa moderna constituiu as demais culturas como “periferia” dentro da ordem mundial.
A partir de 1945, porém, a Europa deixa sua posição hegemônica para uma ex-colônia: os Estados Unidos da América. Juntos, criam uma comunidade de países cuja coesão de valores era notável. O “Ocidente coletivo”, ao incluir os EUA, formava uma comunidade próspera, que concentrava enorme parte de riqueza mundial, em detrimento dos países do Sul Global, que, no entanto, compunham a maior parte da população humana. Anne McClintock (1992) demonstrou como o capital financeiro estadunidense e suas corporações transnacionais, ao controlar fluxos globais de capitais, commodities, armas e informação, exerceram um poder comparável ao de antigos regimes coloniais formais. Nesse contexto, a consolidação do dólar como moeda de reserva mundial tornou-se o principal mecanismo de perpetuação desse domínio estrutural. Tal injustiça estrutural criou grandes desigualdades entre o Norte e o Sul do globo. No entanto, a superioridade da civilização ocidental começou a passar por contestações surpreendentes no século XXI.
O surgimento de um competidor econômico aos EUA, a China, enfraqueceu a ordem ocidental herdeira das estruturas do colonialismo dos últimos cinco séculos. Por meio de reformas que integraram um Estado forte a uma economia de mercado, a China experimentou um crescimento econômico impressionante em menos de cinqüenta anos, consolidando-se como a maior potência manufatureira e exportadora do mundo e alcançando o maior PIB em paridade de poder de compra (ppc). Centenas de milhões de chineses saíram da pobreza, e o país alcançou níveis de renda média. Paralelamente, outros países emergentes aumentaram sua participação na riqueza global, exigindo reformas nas instituições internacionais de governança, para que estas refletissem de maneira mais fiel a nova distribuição de poder mundial, cada vez mais multipolar. Assim, processou-se uma gradual “desocidentalização” da riqueza planetária, estimulando questionamentos às atuais estruturas de governança global dominadas pelos países ocidentais e frequentemente percebidas por nações do Sul Global como desiguais, unipolares e pouco democráticas.
Nesse contexto, o Grupo BRICS é de importância fundamental. O acrônimo designa as iniciais de cinco relevantes economias emergentes (Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul) e vem se fortalecendo cada vez mais. Nas últimas cúpulas, o grupo se expandiu, incorporando novos membros como Arábia Saudita, Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e a Indonésia, além de 13 novos países parceiros como Cuba, Tailândia e Vietnã. Os novos participantes incluem países estratégicos para o comércio internacional e grandes produtores de petróleo. Juntos, perfazem agora 48,5% da população mundial, 24% das trocas comerciais e 39% do PIB global em ppc. (BRICS Brasil, 2025). Seu tamanho e força permitem rivalizar com as instituições estabelecidas pelo Ocidente, como o G7, mas também o FMI e o Banco Mundial, na promoção do desenvolvimento e na governança econômica mundial.
Nesse sentido, é importante analisar porque o BRICS constitui uma oportunidade importante aos países em desenvolvimento. Conforme explicou Frantz Fanon (1961), as independências dos países do Terceiro Mundo na segunda metade do século XX não alteraram significativamente as estruturas econômicas que levavam essas nações ao subdesenvolvimento. Assim, as massas populares lutavam contra a mesma miséria e falta de infraestrutura que existia anteriormente ao desligamento das metrópoles. As estruturas econômicas continuavam baseadas na dependência dos capitais ocidentais, o que obviamente gerava uma considerável pressão econômica para que esses países mantivessem tais estruturas. Conforme destaca Fanon: “a apoteose da independência transforma-se na maldição da independência.”(FANON, 1961, p.94)
As jovens nações permaneciam, dessa forma, num estado de retrocesso, caracterizado pela dependência de capitais externos, o que gerou muitas vezes, dívidas impagáveis denominadas em dólares. As instituições ocidentais, cuja função seria promover o desenvolvimento dos países mais pobres, funcionaram, muitas vezes, como mecanismos de instrumentalizar a hegemonia ocidental, impondo “condicionalidades” relacionadas, principalmente, à promoção da liberalização, desregulação e privatização de seus mercados. Além disso, tais instituições foram acusadas de perpetuar a pobreza dos países do Sul Global, apoiando-se em um modelo econômico de exportação de minérios e gêneros agrícolas para os mercados internacionais, que muitas vezes inviabilizou o cultivo de gêneros de subsistência e contribuiu para o problema da fome no mundo, além de ratificar uma dependência excessiva dos mercados consumidores ocidentais.
Assim, segundo Fanon, o antigo país dominado se tornou um país economicamente dependente. Tais circuitos econômicos herdados do período colonial (infraestrutura voltada para a exportação e a ocupação de terras agricultáveis por gêneros de exportação) mantinham esses países na pobreza absoluta. Poucos investimentos de longo prazo eram feitos e muitas contrapartidas requisitadas em relação à compra de produtos de maior valor agregado da antiga metrópole, o que dificultava ainda mais o equilíbrio financeiro. Ainda, exigia-se uma estabilidade política e social incompatível com os países recém independentes.
No entanto, conforme indica Fanon, a situação ficava ainda mais complexa com a falta de preparo das elites nacionais, que não contavam com uma ligação orgânica com as massas e, por isso, ratificavam esse modelo neocolonial predatório pré- independência. A burguesia nacional era subdesenvolvida, com poder econômico pífio, cujo objetivo era simplesmente substituir a burguesia metropolitana. A burguesia nacional desses países usualmente se acomodou aos circuitos de dependência, servindo simplesmente de correia de transmissão de um capitalismo neocolonial. A burguesia nacional, nesse esquema, não passava de procuradora da burguesia ocidental. Nesse contexto, a burguesia nacional se voltava cada vez mais para a metrópole e não partilhava os benefícios com o povo. Esse esquema neocolonial não produziu desenvolvimento, mas apenas uma elite ensimesmada. Destarte, a economia dos novos países se integrou à economia mundial como dependente. Embora Fanon tenha foco em sua análise no caso africano, seu diagnóstico é válido para todos os países do chamado “Sul Global” em maior ou menor grau.
Diante desse cenário, a emergência do BRICS consolida uma alternativa estrutural à ordem capitalista ocidental e uma provável ruptura com o modelo neocolonial. Diferente dos arranjos históricos de dependência, o bloco atua como uma plataforma de cooperação flexível, baseada em relações horizontais que não reproduzem a clássica hierarquia centro-periferia. Um de seus eixos centrais é a promoção da autonomia financeira, com a criação de mecanismos como o BRICS Pay e o Mecanismo de Cooperação Interbancária (ICM), que reduzem a dependência do dólar e do euro e facilitam transações diretas em moedas locais.
Essa mudança de paradigma também é reforçada pelo Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), que, ao conceder empréstimos em moedas locais, evita o endividamento externo em divisas estrangeiras e a submissão a políticas monetárias definidas por centros ocidentais. Ademais, também se propõe a contribuir para a solução do enorme déficit de infraestrutura ainda existente nos países em desenvolvimento, com foco na sustentabilidade, valorizando o desenvolvimento endógeno e não o extrativismo dependente.
Dessa forma, o bloco não apenas enfraquece a hegemonia das instituições financeiras tradicionais — historicamente associadas a crises financeiras no Sul Global —, mas também oferece um caminho alternativo ao enraizado sistema neocolonial. Embora não corresponda à solução revolucionária imaginada por Frantz Fanon, o BRICS apresenta às economias emergentes uma opção viável à subordinação incondicional ao Ocidente. Por meio de princípios como a não interferência e o respeito à soberania, o bloco pode construir as bases para uma nova geoeconomia, mais inclusiva e multipolar.
O suposto triunfo do capitalismo ocidental, simbolizado pelo fim da União Soviética na década de 1990, não se traduziu em desenvolvimento para as maiorias globais. Como bem observou McClintock (1992), apropriando-se da metáfora do “anjo do progresso” de Walter Benjamin — que, cego, avança sobre os escombros e as vítimas deixadas pela civilização —, a celebração do “fim da História” proclamado por Francis Fukuyama ocultou a permanência de profundas desigualdades e a dramática situação dos pobres do mundo.
McClintock ecoa a crítica de Frantz Fanon ao demonstrar que, no cenário interno dos países do Sul Global, a transição formal do colonialismo para Estados nacionais independentes não representou uma ruptura substantiva. Sob a fachada pós-colonial, as burguesias locais consolidaram-se como herdeiras do aparato administrativo anterior, reproduzindo estruturas de poder e mantendo um modelo econômico baseado na exportação de matérias-primas, o que perpetuou a dependência e o extrativismo característicos de séculos de dominação.
Essa perpetuação neocolonial foi sustentada, em grande medida, pelas instituições financeiras internacionais criadas em Bretton Woods em 1944. De acordo com McClintock, o FMI e o Banco Mundial foram corresponsáveis pela estagnação e pelo aprofundamento da pobreza no Sul Global. A partir dos anos 1980, sobretudo, a política monetária ocidental impôs um regime de serviço da dívida externa profundamente hostil, com graves custos socioeconômicos. Sob o véu da neutralidade técnica e da expertise econômica, essas instituições promoveram projetos que reforçavam a lógica neocolonial: a extração sistemática de excedentes por meio do pagamento de juros da dívida, a imposição de reformas neoliberais como privatizações, o incentivo a monoculturas de exportação, etc.
McClintock (1995, p.95) evidencia a dimensão desse mecanismo ao citar que, até 1989, o Banco Mundial já havia comprometido US$ 225 bilhões em empréstimos a países pobres, condicionados à implementação de “ajustes estruturais”. Tais medidas incluíam cortes drásticos em educação e serviços sociais, abertura forçada de mercados e a exploração predatória de recursos naturais para o pagamento de dívidas. Um relatório interno do próprio Banco Mundial, datado de 1989, conforme também referencia McClintock (1995, p.95), reconhecia que esses programas de ajuste teriam como efeito colateral inevitável o agravamento das condições de saúde, nutrição e educação dos mais pobres.
No entanto, o surgimento do BRICS no século XXI aponta para um novo paradigma, distinto do soviético e do ocidental. A ascensão da China como novo centro financeiro abriu fontes creditícias que possibilitaram o desenvolvimento de grandes projetos de infraestrutura em todo o mundo, por meio de sua iniciativa Belt and Road. Da mesma forma, o NDB permite sofisticar a cooperação Sul-Sul, por meio da diversificação das parcerias desses países, enfatizando a horizontalidade e o desenvolvimento autônomo. O grupo BRICS constitui, assim, um caminho para uma integração global mais equitativa, com ênfase em valores como a soberania e independência. A expansão recente do grupo é sinal da sua importância crescente como contraponto a comportamentos hegemônicos, contribuindo para a constituição de um mundo multipolar. Nesse contexto, é importante mencionar que, em 2023, pela primeira vez, os países dos BRICS+ superaram o PIB ppc do G7 e a perspectiva é que a diferença continue aumentando no futuro. (GAVRILENKO e SHENSHIN, 2024, p.45)
Em 2025, o Brasil presidiu o grupo e sediou a Cúpula dos BRICS ocorrida no Rio de Janeiro entre 6 e 7 de julho. Na Declaração Final com título: “Fortalecendo a Cooperação do Sul Global para uma Governança mais inclusiva e sustentável”, os membros enfatizaram a necessidade urgente de reforma das instituições de Bretton Woods, para torná-las mais ágeis, eficazes, confiáveis, inclusivas, representativas. Ainda, a Declaração reforçou a necessidade de reforma da estrutura de governança econômica internacional para refletir as transformações na economia mundial desde sua criação, advogando a maior representação de países em desenvolvimento e emergentes. (MRE, 2025)
A reação ocidental à ascensão dos BRICS materializou-se em 2025 por meio da política comercial agressiva de Donald Trump, que implementou tarifas punitivas não apenas contra a China, mas também contra o Brasil, sob o pretexto de combater práticas comerciais “desleais”. No entanto, a ofensiva não tem sido bem-sucedida até aqui em seu objetivo de fragmentar o bloco, reforçando a independência e a soberania desses países perante a hegemonia ocidental e demarcando uma nova era nas relações internacionais.
Em suma, a ascensão dos BRICS como polo geoeconômico global representa uma inflexão de proporções históricas, revertendo mais de quinhentos anos de domínio ocidental sobre o mundo. Ademais, oferece um contraponto estrutural inédito às estruturas assimétricas de configuração do poder global, que perpetuaram desigualdades e dificultaram a promoção do desenvolvimento. Ao promover sistemas financeiros alternativos, incentivar o comércio em moedas locais e defender uma governança internacional fundada na multipolaridade, sustentada por valores como soberania, independência e desenvolvimento autônomo, o bloco constrói as bases de uma descolonização efetiva, não apenas política, mas também econômica, ainda que enfrente resistências previsíveis e o desafio constante de evitar novas formas de dominação.
Referências
BRICS Brasil. Site da presidência brasileira. 2025. Disponível em: https://brics.br/pt-br. Acesso em: 15 jun. 2025.
BRICS BRASIL. Afinal, o que é o BRICS? Planalto, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/agenda-internacional/brics/afinal-o-que-e-o-brics. Acesso em: 29 jun. 2025.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidad y eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 41-53.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Serafim Ferreira. 1. ed. Lisboa: Ulisseia, 1961. Capa de Sebastião Rodrigues.
GAVRILENKO, Vladimir; SHENSHIN, Victor. BRICS expansion: a geopolitical triumph of partner countries. BRICS Law Journal, [S.l.], v. 11, n. 3, p. 9–53, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.21684/2412-2343-2024-11-3-9-53. Acesso em: 15 jun. 2025.
McCLINTOCK, Anne. The Angel of Progress: Pitfalls of the Term “Post-Colonialism”. Social Text, n. 31/32, p. 84-98, 1992.
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Declaração de Líderes do BRICS — Rio de Janeiro, 06 de julho de 2025. Brasília: MRE, 06 jul. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-de-lideres-do-brics-2014-rio-de-janeiro-06-de-julho-de-2025. Acesso em: 20 out. 2025.
SOBRE O AUTOR
Fábio Thomazella é graduado em Relações Internacionais (2013) e em Direito (2021) pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado, é Mestre (2022) e atualmente doutorando em Direito Internacional pela mesma instituição. Seus principais interesses concentram-se em Direito Internacional Econômico e, de forma mais ampla, em Direito Internacional Público.

