Artigo de Opinião: Multipolaridade monetária e o New Development Bank: Como está o Sul Global?

Multipolaridade monetária e o New Development Bank: Como está o Sul Global?

Rafael Voigtel Cesar

Vivemos em uma economia globalizada, marcada pelo comércio e fluxo de bens, sejam eles intensivos em capital ou em trabalho, entre os países do globo. Para que haja esse comércio/fluxo é necessário que se utilize de uma moeda que sirva como um meio de pagamento e unidade de conta de cada transação internacional. Esse processo dá significado ao que chamamos de Sistema Monetário e Financeiro Internacional (SMFI). O SMFI é, então, marcado pelo uso de diferentes moedas nacionais, assim como a posição de diferentes bancos centrais (responsáveis pela emissão de cada moeda nacionalmente) nos intercâmbios do sistema internacional, onde, ao final, resulta-se uma estrutura hierarquizada devido ao fato de que cada moeda e banco central desempenha um certo nível de poder e importância no capitalismo mundial (De Conti; Prates; Plihon, 2013). É por isso que vemos, por exemplo, que o dólar estadunidense tem um papel de importância e poder muito maior do que o real brasileiro, justamente porque ele está melhor posicionado no SMFI.

A posição de cada moeda e banco central no SMFI depende de diferentes fatores, mas, resumidamente, está ligada à capacidade da moeda de cada país em exercer as suas três funções clássicas internacionalmente: meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor. Já o fato dos países terem ou não a possibilidade de que suas moedas exerçam essas três funções clássicas vai ao encontro com a importância e poder político, econômico, militar e ideológico de cada um.

Atualmente, vivemos em uma realidade na qual o SMFI é amplamente dominado pelo Norte Global, principalmente pelos Estados Unidos. O dólar estadunidense é a moeda central do SMFI. O FED (banco central dos EUA) e as instituições financeiras multilaterais submissas ao país, FMI e World Bank, são as instituições financeiras mais importantes do mundo. Conforme dito por Serrano (2002), o FED tem em mãos o poder de decidir, unilateralmente, a taxa de juros mundial e funciona como “Banco Central do mundo”, pelo fato de emitir a principal moeda internacional. O FMI e o World Bank, além de seus trabalhos como principais emprestadores de dólar para economias periféricas, fazem um trabalho ideológico para a aplicação de sua ortodoxia econômica nas políticas destes países, como exemplo a tentativa de convencer o governo chinês a aplicar sua “terapia de choque” neoliberal nos anos 1980, assim como o seu trabalho de influência na expansão da era neoliberal brasileira a partir do governo FHC etc. O FMI, ao aplicar juros muitas vezes abusivos e termos que infringem na política econômica dos países tomadores de empréstimos através de sua política de empréstimo, faz com que estes tenham uma maior dependência para com o dólar estadunidense, fato que também reitera e amplia a hegemonia da moeda.

O Sul Global, até 10 anos atrás, tinha uma relevância irrisória no SMFI, onde as poucas moedas que tinham uma pequena importância internacional, como o rublo russo e o yuan chinês, limitavam-se a uma importância regional, ou seja, limitada em transações com países da região que os entornam. Entretanto, com a ampliação do poderio dos países do BRICS, maior atuação do BRICS como grupo político estratégico, criação do New Development Bank (NDB) e atual ampliação do BRICS para BRICS+, o conceito de multipolaridade monetária vem sendo cada vez mais estudado. Esse conceito se trata de termos, em um futuro (talvez não tão próximo assim), um sistema no qual o dólar não seja hegemônico de maneira unipolar, tampouco que sua hegemonia seja “dividida” com a União Europeia e o euro, mas que se aumente a relevância das moedas e bancos centrais dos países do Sul Global e que essa ampliação leve, realmente, a um mundo monetário-financeiro multipolar, onde o dólar não goze de seu deprivilège exorbitant.

Esse processo de multipolaridade monetária, no que diz respeito ao Sul Global, ainda está no início. Todas as estatísticas (comércio entre países, uso como reserva internacional, uso em investimentos etc.) ainda são dominadas pelo dólar estadunidense, que é seguido pelo euro. Entretanto, mesmo com essas limitações, há um crescimento relevante de algumas moedas do Sul Global – em destaque ao yuan chinês – no cenário do SMFI, assim como o crescimento econômico (em termos de PIB por paridade de poder de compra) dos países membros do BRICS, que, antes mesmo de sua ampliação, já superava o G7. Esse misto de ampliação do destaque da moeda chinesa no SMFI e a crescente econômica nos países membros pode gerar bons olhos para os pesquisadores do Sul Global e, ao longo prazo, ser algo interessante para o desenvolvimento desses países frente ao Norte Global.

Com esse contexto, o objetivo deste artigo de opinião é sintetizar como o NDB e o seu crescimento podem ajudar no desenvolvimento monetário-financeiro do Sul Global, destacando também as limitações e ponderando uma visão pragmática que admita que ainda estamos no início e que falta “muito chão” pela frente.

O NDB é um banco de desenvolvimento multilateral estabelecido pelos países do BRICS com objetivo de mobilizar recursos para projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável nos países-membros. Ele foi criado durante a VI Cúpula dos BRICS, em 2014, na época em que a ex-presidente Dilma, que hoje é presidente do banco, representava o Brasil. A ex-presidente, desde o início, foi uma das grandes incentivadoras da criação do banco e, em seu discurso de posse como presidente da entidade, destacou em diversos momentos a importância do mesmo frente a um desenvolvimento que reduza a desigualdade e melhore o padrão de vida das comunidades mais pobres e excluídas.
Em primeiro lugar, é preciso entender que o NDB é um banco multilateral novo e que conta com US$50 bilhões de capital subscrito, sendo US$10 bilhões de capital integralizado. Para fins de comparação, o World Bank tem US$317,8 bilhões de capital subscrito e US$21,8 bilhões de capital integralizado. O NDB tem um rating internacional de crédito, de acordo com a Standard & Poor’s (S&P), equivalente a AA+, já o World Bank conta com a classificação AAA, a mais alta possível. Quando comparado a outro banco de desenvolvimento multilateral grande no sistema internacional, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o NDB já não está tão distante. O BID, por exemplo, tem um capital integralizado total de US$11,8 bilhões e uma classificação AAA, igual ao World Bank.

Por incrível que pareça, o cenário para o NDB é positivo. O NBD é um banco com oito membros oficiais (sendo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul os fundadores, Bangladesh, Emirados Árabes e Egito novos membros, além do Uruguai, que está finalizando seu processo de entrada) e 10 anos de história. Por outro lado, o World Bank existe desde Bretton Woods (1945) e conta com 189 países-membros, já o BID, existe desde 1959 e conta com 48 membros. Chegar perto das estatísticas de dois dos maiores bancos multilaterais do mundo em 10 anos de existência é uma vitória, principalmente quando se trata de um banco composto, em sua maioria, por países periféricos.

O BID e o World Bank, por mais que sejam compostos por diversos países, são liderados, indireta ou diretamente, pelo interesse dos EUA. Esse processo é bem mais explícito no que diz respeito ao World Bank, pois, conforme Belluzzo (1995), o mesmo foi criado pelo interesse e poder dos EUA no pós Segunda Guerra Mundial, devido a sua hegemonia político-econômica existente a partir do período, e se fez um órgão submisso aos EUA, assim como o próprio FMI. No BID, talvez a “obediência” seja menor e mais indireta, entretanto, além dos EUA serem o maior acionista do banco, o que faz com que ele tenha um maior poder de voto, ainda exerce sua influência no desenvolvimento econômico latino americano e caribenho (objetivo principal do BID), o que, dado o histórico, não parece muito positivo, vide as experiências passadas de intervenção financeira-militar-política dos EUA nessas regiões, tais como no Brasil em 1964 com a operação Brother Sam em apoio à ditadura empresarial-militar, no Chile com seu apoio à ditadura de Pinochet etc. É evidente que o apoio governamental direto é diferente dos empréstimos de um banco de desenvolvimento, pois o segundo ainda exerce o caráter técnico e pragmático de uma instituição multilateral, entretanto não há como negar o interesse intrinsecamente político por trás dessas instituições.

E é exatamente nesse interesse político que a atuação do NDB para com o Sul Global se destaca. Em uma análise preliminar, creio que, de maneira breve, há quatro pontos que podem ser destacados em como o NDB pode ajudar o desenvolvimento monetário-financeiro do Sul Global, sendo eles: (i) ser fruto dos países do BRICS; (ii) diferentes requerimentos de empréstimo em comparação ao FMI, melhor dizendo, sem interferência na política econômica de cada país; (iii) empréstimos em RMB; (iv) compromisso com o uso de financiamento em moeda local.
Para o ponto (i) destaca-se o fato de que, sempre, quem vai ter a maior parte das ações do NDB serão os cinco países fundadores, os outros países que vierem a integrar terão fatias bem menores, a exemplo dos atuais novos membros, que têm fatias de 0,5%, 1%, algo nessa faixa. O Brasil, em contrapartida, tem 18% atualmente. Para além, os novos países só poderão integrar o banco se forem feitos convites pelos cinco fundadores. Ou seja, o poder central de decisão do banco nunca sairá do BRICS, sempre estará alinhado com a estratégia político-econômica desses países e, consequentemente, do Sul Global como um todo. Isso ficou claro tanto no discurso de posse da presidente Dilma, quanto no desenvolvimento do trabalho de sua equipe em Shanghai. Há uma clara manifestação de que, por trás do pragmatismo e seriedade da instituição, existe um “jogo” de colocar nas mesas de negociação agentes internacionais heterogêneos que, ao final, darão resultado a um ponto de equilíbrio a ser alcançado com foco em um desenvolvimento sustentável e fazendo um contraponto ao atual SMFI, dominado pelos agentes do imperialismo norte-americano. Isso foi destacado por Dilma e pelo presidente Lula, em entrevista (Carta Capital, 2023).
O ponto (ii) diz respeito às diretrizes de empréstimos de financiadores internacionais tais como o FMI. O FMI, embora não seja um banco de desenvolvimento, é uma instituição financeira que tem, como um de seus objetivos, o crédito multilateral. Esses créditos, em forma de empréstimos, são feitos para os países (em geral os periféricos ou aqueles que estão passando por crises econômicas) sob muitas condições específicas, a maioria desvantajosas para os tomadores (Coelho, 2012). Em síntese, as condições estão sob o parâmetro da ortodoxia econômica que rege a instituição, muitas das condições estão ligadas a diretrizes neoliberais como corte de gastos públicos, austeridade fiscal e monetária etc. O NDB, por outro lado, não interfere sobre as políticas econômicas dos países nos quais fazem empréstimos, tampouco dos entes privados. O que interessa ao banco é que os entes públicos e privados sigam as diretrizes econômicas, legais, regulatórias e políticas do país em que estão presentes. Ou seja, não interessa ao banco ingerir-se nas políticas que dizem respeito à soberania de cada ente nacional, diferente do FMI, que faz isso de acordo com o interesse dos EUA na ampliação de sua hegemonia através, não só da ampliação do uso do dólar, mas da ingerência política, financeira e econômica.

O ponto (iii) diz respeito ao uso do RMB em financiamentos internacionais. O NDB faz seus empréstimos em três moedas atualmente: US$, RMB e EUR. O uso do RMB nos empréstimos é um importante estímulo ao maior crescimento da moeda chinesa, pois além de aumentar o seu uso em transações internacionais, estimula indiretamente o uso da mesma como reserva de valor em economias do Sul Global, o que reduz o uso do dólar estadunidense. Por exemplo, no Brasil, o RMB já supera o EUR nas reservas internacionais e fica somente atrás do US$. Ou seja, isso pode ser um caminho que estimule o empréstimo para o Brasil via RMB. É um jogo multifatorial, ao passo que a internacionalização do RMB e a importância dele no SMFI se amplia, em conjunto com o seu uso em empréstimos para os países (principalmente do Sul Global), o potencial de maior uso do RMB e diminuição do uso do US$ aumenta. O FMI também faz empréstimos em RMB, porém o dólar ainda domina (e sempre vai dominar, por motivos óbvios, os empréstimos da entidade). O World Bank, em contrapartida, não utiliza RMB, mas somente EUR, US$, GBP (libra esterlina) e JPY (iene japonês).

Por último, o ponto (iv) compõe um importante tópico para o uso da moeda local. Como uma de suas principais metas para o quadriênio 2022-26, o NDB estabeleceu a meta de realização de 30% dos financiamentos em moeda local. E o ponto em questão é, além de estimular o uso das moedas locais e facilitar o empréstimo (pelo fato de não ter que recorrer ao uso de moeda estrangeira, retirando a necessidade de conversão), os atuais empréstimos do NDB são distribuídos da seguinte maneira: China com 27%; África do Sul com 17%; Brasil com 18%; Rússia com 15%; Índia com 23%. Ou seja, a tendência é que, em grande medida, as moedas locais dos países do BRICS sejam estimuladas. Só no Brasil já foram 94 projetos aprovados, com um valor total aprovado de US$32 bilhões, dos quais US$15 bilhões já foram desembolsados. Em contrapartida, há dentro disso a limitação natural própria do caráter pragmático e técnico de um banco de desenvolvimento multilateral que lida com agentes internacionais heterogêneos, isso pode ser visto de acordo com o congelamento de qualquer empréstimo/atividade com a Rússia, devido à guerra russo-ucraniana.

Em síntese, há, para além, diversas limitações que poderiam ser citadas no contexto geopolítico e geoeconômico mundial, além do fato de que a atuação do NDB está em seu início. Contudo, a situação é que os pontos acima podem ajudar no desenvolvimento do BRICS e do Sul Global como um todo.

Referências bibliográficas

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DE CONTI, B. M.; PRATES, D. M.; PLIHON, D.. O sistema monetário internacional e seu caráter hierarquizado. In: CINTRA; M. A. M.; MARTINS, A. R. A. As transformações do sistema monetário internacional. Brasília: IPEA, 2013.

DEUTSCHE WELLE. O peso de Dilma Rousseff na presidência do banco dos Brics. Carta Capital, 13 de abr. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/economia/o-peso-de-dilma-rousseff-na-presidencia-do-banco-dos-brics/. Acesso em: 01 de abr. 2024.

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