CARTOLA
Rio de Janeiro (Brasil), 1908 – 1980
Por Marcelo Silva Souza
A vida no morro da Mangueira, na cidade do Rio de Janeiro, foi a principal matéria-prima das canções que fizeram de Angenor Oliveira, o Cartola, um dos maiores compositores e intérpretes da música brasileira. A história desse cancionista autodidata, assim como a de muitos outros artistas pobres e populares, é marcada pela fragilidade material e pela força criativa.
Desde menino participou de festas de rua, seguindo os passos do pai no cavaquinho e no violão, o principal instrumento que utilizaria para compor suas canções. Com a morte da mãe, aos quinze anos, abandonou a escola e foi fazer biscates. Recebeu o apelido com o qual passaria para a história da música brasileira devido a um chapéu-coco que usava para se proteger quando trabalhava como pintor e pedreiro.
Aos vinte anos foi um dos fundadores, ao lado de seu maior parceiro musical, Carlos Cachaça, da segunda escola de samba do Rio de Janeiro, e que se tornaria uma das mais conhecidas – o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
Em 1931, foi procurado no morro pelo famoso cantor Mário Reis para que vendesse uma de suas músicas. Ironicamente, vendeu por um bom dinheiro o samba “Que infeliz sorte”, que acabou sendo gravado por Francisco Alves, “o cantor das multidões”. Assim, sem saber, Cartola fazia parte da nova engrenagem da indústria fonográfica que se formava no Brasil, na esteira da Revolução de 30. A cena da venda se repetiria pelos anos seguintes, e os sambas de Cartola ficariam mais conhecidos.
Em 1940, foi convidado por Heitor Villa-Lobos, por intermédio de Pixinguinha, para integrar o grupo de músicos que gravaria canções populares a bordo do navio Uruguai, a fim de divulgar a música brasileira nos Estados Unidos. Cartola registrou então um dos seus mais importantes sambas, “Quem me vê sorrindo”.
Mas depois da gravação passou por um período perturbador: ficou gravemente doente, sua mulher morreu, e ele saiu do morro. Pensando que ele havia morrido, alguns chegaram a lhe dedicar músicas. E esse poderia ter sido mesmo o fim da carreira de Cartola, se um desses encontros casuais que mudam a história da música não tivesse acontecido. Em 1956, o cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) se deparou com Cartola lavando carros em Ipanema, bairro do Rio de Janeiro. Sérgio levou-o para cantar em rádios e arranjou-lhe emprego num jornal.
No início dos anos 1950, Cartola voltou para o morro da Mangueira e passou a viver ao lado de Eusébia Silva do Nascimento (a Dona Zica), também viúva, com quem casaria em 1964. Foi com ela que abriu, em 1963, o restaurante Zicartola, responsável por lançar futuros mestres como Paulinho da Viola e promover um espaço de integração entre os artistas de esquerda da Bossa Nova, que começava a se dividir, e os artistas do morro, ou simplesmente entre o “samba de asfalto” e o “samba de morro”.
O “trovador do samba” compôs cerca de quinhentas canções, mas só teve tempo de gravar quatro discos solo; o primeiro deles, Cartola , foi lançado pelo importante pesquisador e produtor Marcus Pereira, em 1974. Apesar dos poucos álbuns, a interpretação inovadora de suas próprias músicas e o refinamento que foi adquirindo ao longo dos anos, expresso em canções que sintetizam com perfeição letra e melodia, como em “Acontece”, “Cordas de aço” e “Alvorada”, faz desses discos um registro definitivo para a história da música brasileira. Outra obra antológica é o álbum Fala mangueira, produzido em 1968 por Hermínio Belo de Carvalho. Nele, Cartola canta ao lado de Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, Clementina de Jesus e Odete Amaral.
Funcionário público, com cargo de contínuo, em meados de 1970 Cartola e dona Zica se mudaram para a pequena casa que haviam conseguido construir em Jacarepaguá. Em 1980, Cartola viria a morrer em decorrência de um câncer. Em seu enterro, uma pequena multidão cantou o primoroso samba-canção “As rosas não falam”, acompanhada pelo bumbo do ritmista da Mangueira, Waldomiro, como o mestre mangueirense havia pedido. Cartola pedira também para ser lembrado pela clássica “O mundo é um moinho” e “O inverno de meu tempo”.