Lulas em foco

Projeto foca na dinâmica populacional e dimensões humanas associadas à pesca de lulas na costa norte do estado de São Paulo.

As lulas são moluscos cefalópodes de particular importância ecológica em diversos ambientes marinhos ao redor do mundo, sendo também considerados recursos pesqueiros de alto valor nutricional e interesse para a alimentação humana. Estudar diferentes aspectos relacionados à dinâmica populacional das lulas e à dimensão humana associada a sua extração pela pesca são alguns dos objetivos do projeto “A Lula (Cephalopoda: Loliginidae) como recurso da pesca no litoral norte do Estado de São Paulo: dinâmica populacional, oceanografia pesqueira e a dimensão humana associada”, coordenado pela pesquisadora Maria de los Angeles (Mary) Gasalla, do Instituto Oceanográfico da USP.

As primeiras pesquisas de Gasalla no final da década de 90 tinham como foco as lulas que desembarcavam em Santos e São Sebastião como recurso pesqueiro, “víamos os tamanhos dos exemplares advindos da pesca, mas faltavam muitos elementos para compreender a dinâmica populacional dessas peculiares criaturas”, explica a pesquisadora. O primeiro passo para uma melhor compreensão foi reunir diferentes pesquisadores que trabalhavam com o mesmo grupo no sul do Brasil e padronizar o método de coleta de dados. Com os dados coletados em diferentes portos no Brasil, os pesquisadores puderam lançar novas hipóteses sobre a dinâmica dessas populações, e contribuir com o então programa Revizee (Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva).

“Com esse esforço nós conseguimos fazer uma primeira revisão dessas espécies e verificamos que o grupo tinha uma complexidade muito particular nas suas estratégias de ciclo de vida. Quanto mais estudávamos, as perguntas sobre a dinâmica populacional das lulas só aumentavam e se tornavam mais instigantes: onde e quando a espécie desova, quando recruta, por que se agrega em áreas específicas, que correntes marítimas as trazem para o litoral, aonde vivem os indivíduos pequenos, o que busca na costa de São Paulo. E precisávamos de outros dados além daqueles da pesca comercial”, relembra a professora.

lulas3Um dos caminhos escolhidos foi a busca de amostras de lula nas coleções de plâncton mantidas no próprio Instituto Oceanográfico. O acervo do Prof. Yasunobu Matsuura (in memoriam), de ovos e larvas, não havia ainda sido investigado em relação a outros grupos que não os peixes, uma possibilidade vislumbrada por Gasalla. A verificação das amostras históricas confirmou a existência de larvas de lulas e a possibilidade do uso de redes de plâncton como método de coleta para esses estágios iniciais do ciclo de vida.

A partir dessas perspectivas, foi apresentado um projeto com uma metodologia mais ampla que dialogasse com as pesquisas realizadas em outros locais com tradição em cefalópodes, como a Espanha e a África do Sul. O projeto se focou em uma área de concentração típica de lulas no litoral norte de São Paulo – a Ilha de São Sebastião – e na tradição da pesca artesanal pelas populações locais. Foi assim apresentado ao edital Biota-Biodiversidade Marinha: um projeto de caráter ecossistêmico, com perspectivas de cobrir as questões desconhecidas pelos pesquisadores do sul e sudeste do Brasil.

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“Eu notei que uma abordagem mais multidisciplinar seria um dos desafios mais interessante para a inovação e evolução do Programa Biota”, explica Gasalla, “não me refiro a questão dos temas interdisciplinares per se, mas realmente na questão de integrar diversas áreas e métodos de pesquisa no olhar sobre um determinado grupo biológico em particular. Ou seja, além da abordagem ecossistêmica que vinhamos desenvolvendo para a pesca, achei que meu grupo de pesquisa poderia dar sua contribuição nessa tentativa de integrar diversos estudos distintos (modelagem biofísica, biologia populacional, comportamento, comunidades pesqueiras) sobre uma dada espécie da biodiversidade marinha”. O grupo coordenado por Gasalla focou os estudos em uma espécie de lula costeira (Doryteuthis plei) que habita as águas da nossa costa. Espécie que havia se mostrado complexa (tanto em termos biológicos como ecológicos e populacionais) nos estudos anteriores. Além disso, o projeto se propôs a investigar a dimensão humana da pesca da lula a partir de entrevistas com pescadores locais e informações fornecidas pela cooperativa de pesca sobre volumes e preços comercializados. “É uma proposta multidisciplinar inovadora, pois em raros locais do mundo se estudam conjuntamente todos os estágios do ciclo de vida e comportamento das lulas aliados a modelos de dispersão larval até aspectos das comunidades tradicionais e comportamento dos pescadores”, afirma Gasalla.

O projeto atingiu diversos resultados inéditos: localizou e filmou pela primeira vez desovas físicas da espécie em áreas rasas da costa de São Sebastião e Ubatuba (que permitiram acompanhar o desenvolvimento embrionário dos ovos e paralarvas das lulas) e coletou amostras de paralarvas ao redor da Ilhabela, assim como de indivíduos adultos e jovens, confirmando a presença de todos os estágios do ciclo de vida da lula na região.

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A partir da manutenção de exemplares vivos em tanques de laboratório foi possível verificar aspectos comportamentais relacionados à reprodução e alimentação, dança nupcial e desova. As taxas de crescimento da espécie foram estimadas a partir da contagem de anéis de crescimento encontrados nos estatólitos (estruturas compostas de carbonato de cálcio, na forma de cristais de aragonita que, nessa espécie, marcam ciclos diários de crescimento por meio da deposição de substâncias). Os padrões reprodutivos foram estudados e as áreas mais propícias pra reprodução em torno de Ilhabela foram mapeadas, observando-se uma maior intensidade reprodutiva no verão.

Em relação à modelagem quantitativa, primeiro um modelo hidrodinâmico regional (Princeton Ocean Model) foi re-escalonado para a área de estudo e rodado, inicialmente, para um período de 5 anos. Esses dados foram acoplados a um modelo de base individual, o que permitiu a estimativa de padrões de dispersão e retenção larval, um dado de grande relevância para previsões de sobrevivência larval e produção pesqueira anual.

O estudo da pesca e do comportamento dos pescadores também revelou que ocorrem variações ano a ano e que, além do cooperativismo, comunidades tradicionais desempenham um papel importante.
“A partir desse projeto o leque de questões que a gente abordou sobre esse grupo se ampliou consideravelmente”, ressalta Gasalla, “então encontramos muitas possibilidades de novas parcerias que se abrem como, por exemplo, nas áreas de etologia, biologia celular e molecular, genética e evolução, modelagem quantitativa para ecologia populacional ou biofísica e mudanças climáticas”.

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A possibilidade de ter um projeto dentro do Programa Biota representa, segundo Gasalla, “uma potencialidade de maior alcance, intercâmbio, trocas, divulgação e até ampliação do contexto da pesquisa individual. “Acredito que o diferencial é o tentar responder questões científicas mais amplas sobre a biodiversidade, que tenham interesse imediato para a sociedade. Por outro lado, o trabalho vinculado a um grande Programa pode receber certa ênfase e se consolidar como referência para determinado grupo biológico ou como proposta metodológica que pode ser replicada para outros grupos, outros biomas, outras oportunidades científicas”, conclui Gasalla.

 

Reportagem: Érica Speglich, do Boletim Biota Highlights/FAPESP

fotos: Mary Gasalla e Felippe Postuma – LabPesq/IOUSP