USP abre novo caminho para combater distrofia muscular

Identificação de gene associado à melhora da distrofia muscular em cães abre caminho inédito para tratamento futuro da doença de Duchenne.

Identificação de gene associado à melhora da distrofia muscular em cães abre caminho inédito para tratamento futuro da doença de Duchenne.

Do Núcleo de Divulgação Científica da USP

Um gene ligado a processos de regeneração muscular está fortemente ativado em cães que, embora sofram de distrofia muscular, apresentam poucos sintomas da doença, afirma artigo da revista Cell. Até agora desconhecida, a associação entre o gene Jagged1 e a doença de Duchenne abre novas possibilidades de tratamento, com base no entendimento do mecanismo que protege esses cães excepcionais. Em humanos, a distrofia muscular de Duchenne afeta um entre 3 a 5 mil meninos e não tem cura. A doença é genética, causada por mutações que impedem um gene localizado no cromossomo X de produzir a proteína muscular distrofina. A falta da distrofina leva à degeneração progressiva dos músculos em todo o corpo.

A descoberta descrita no artigo Jagged1 rescues the Duchenne muscular dystrophy phenotype resultou de mais de oito anos de trabalho de pesquisa desenvolvido pelo Centro de Pesquisa sobre Genoma Humano e Células Tronco, da USP, coordenado pela cientista Mayana Zatz, e da colaboração do grupo com a Universidade de Harvard e o Broad Institute – organização de pesquisa ligada a Harvard e ao Massachusets Institute of Technology — ambos sediados em Boston, nos Estados Unidos. Há décadas, a equipe da USP estuda as distrofias musculares e outras doenças genéticas; a partir de 2003, decidiu investir na pesquisa com cães Golden Retriever, que mimetizam muito bem a doença humana. Um dos experimentos cruciais para a identificação do Jagged1 foi realizado em colaboração com o laboratório de Sérgio Verjovski-Almeida, então no Instituto de Química da USP. A investigação se completou durante o pós-doutorado da pesquisadora Natássia Vieira junto a Louis Kunkel, da Escola de Medicina de Harvard, um dos descobridores da distrofina e de sua ligação com a doença de Duchenne. Kerstin Lindblad-Toh, diretora científica de genômica de vertebrados do Broad Institute, coordenou o sequenciamento completo do genoma dos cães e também assina o trabalho.

Até o momento, a busca por tratamentos para a distrofia muscular de Duchenne tem se concentrado em tentativas de corrigir a ausência da distrofina nos músculos. Essas linhas de investigação vêm apresentando sucesso limitado. A descoberta abre a possibilidade de busca de novos tratamentos, a partir da investigação do mecanismo que dá a esses cães a possibilidade de manterem músculos funcionais, apesar da ausência de distrofina.

“Esta foi uma primeira observação muito importante”, afirma Zatz. “Descobrir agora qual é o mecanismo que protege esses animais da fraqueza muscular traz novas esperanças para futuras terapias”, completa.

Modelos animais

Uma das dificuldades nos estudos de distrofia muscular é a escolha do modelo animal a ser usado na pesquisa. O camundongo chamado mdx é modelo mais frequentemente utilizado. Embora não produzam distrofina, esses animais praticamente não apresentam sintomas de degeneração muscular e sua sobrevida corresponde à esperada para a espécie. Outro modelo utilizado é o zebrafish (o peixe paulistinha): quando carregam a mutação genética que impede a produção de distrofina, mostram a consequente degeneração muscular ao microscópio, na forma de buracos nos músculos; a maioria deles morre aos nove dias de vida, enquanto um peixe normal pode viver dois anos.

Cães Golden Retriever portadores da mutação que provoca a ausência de distrofina, (conhecidos pelas iniciais GRMD, abreviação de Golden Retriever Muscular Dystrophy) desenvolvem um quadro clínico mais próximo daquele de meninos afetados pela distrofia de Duchenne. Além disso, pelo porte, têm músculos que sustentam carga também similar à de humanos. Por isso, se tornam modelos ideais para a pesquisa. Entre os cães sem distrofina estudados pelo grupo de Mayana Zatz, dois se destacaram por apresentarem sintomas de distrofia muito mais brandos que os outros da linhagem. Ao contrário do que costuma acontecer com os meninos afetados pela doença de Duchenne, ambos os cães viveram o tempo esperado para a espécie: Ringo, o primeiro em que se percebeu a ausência de sintomas, morreu com 11 anos; Suflair, o segundo, já está com mais de nove anos de idade. Assim, verificou–se que existem animais de porte médio com músculos funcionais e vida próxima ao normal apesar da deficiência de distrofina.

Os experimentos

Os genomas desses dois animais – Suflair e o falecido Ringo – foram submetidos a diferentes metodologias de análise e comparados às características apresentadas por 31 cães da mesma linhagem com quadro severo de distrofia. Em busca de identificar o gene em Suflair e Ringo que explicasse a diferença em seus músculos, mapas genéticos foram construídos.

Por meio de microarrays de RNA, o laboratório do bioquímico Sergio Verjovski-Almeida comparou as proteínas musculares produzidas pelos genes dos dois cães excepcionais, de quatro cães GRMD da mesma linhagem afetados severamente pela distrofia, e de quatro cães normais. Chamou a atenção dos pesquisadores a maior similaridade entre a expressão dos genes de Ringo e Suflair e os cães normais, quando comparada à dos cães afetados. A “expressão” de um gene, ou seja, a produção ou não das proteínas correspondentes a ele, é um indicador de seu funcionamento. A proteína é produzida quando o gene está “ativado”; está ausente ou reduzida quando o gene é “silenciado”. Do conjunto de 65 genes diferentemente expressos em cada grupo de cães, o primeiro selecionado, do cromossomo 9, se mostrou um falso candidato na análise subsequente.

Nova comparação do mapeamento genético com os resultados de microarraylocalizou uma região no cromossomo 24 como aquela que poderia abrigar o gene que torna os dois cães excepcionais. E isto levou a um novo candidato: o gene Jagged1, o único dos 65 genes diferentemente expressos nos três grupos de cães localizado nesse cromossomo. Para testar a nova hipótese, Natássia Vieira aumentou a expressão do Jagged1 nos peixes paulistinha. Assim, mimetizou os cachorros que escapam da doença e verificou que apareceram como indistinguíveis dos normais entre 60 e 75% dos peixes sem distrofina.

A etapa seguinte foi procurar que alteração desencadeava a produção maior da proteína do Jagged1. Novamente no Broad Institute, os pesquisadores sequenciaram o genoma completo de Ringo, de Suflair e de um outro Golden Retriever da mesma linhagem sem a mutação na distrofina. Os pesquisadores localizaram uma pequena alteração do Jagged1, nos genomas de Ringo e Suflair, que facilita a ligação de outra proteína muscular, a miogenina, ao Jagged1. Diferentes testes funcionais provaram aos pesquisadores que essa mutação facilitadora da ligação com a miogenina, encontrada exclusivamente nos cães excepcionais, é que leva ao aumento da expressão do Jagged1.

Em camundongos sem distrofina e em células cultivadas no laboratório, os pesquisadores constataram que a expressão de Jagged1 aumenta quando há dano muscular e quando há diferenciação em células musculares. A constatação é consistente com a hipótese de que a proteína Jagged1 possivelmente ativa uma via bioquímica de sinalização celular denominada Notch, conhecida por desencadear a multiplicação celular. Um teste em células de Ringo e Suflair mostrou que elas se dividem mais rapidamente que as células dos cães afetados pela distrofia.

O Núcleo de Divulgação Científica da USP lançou um hotsite com outras reportagens e materiais sobre o assunto: sites.usp.br/distrofia