Políticas públicas paulistas se direcionaram à punição

Pesquisa do NEV analisou as razões de rupturas e continuidades no decorrer da formação da Segurança Pública paulista, assim como motivações e valores inerentes às ações punitivas

Pesquisa do NEV analisou as razões de rupturas e continuidades no decorrer da formação da Segurança Pública paulista, assim como motivações e valores inerentes às ações punitivas

Por Felipe Saturnino, da Jornalismo Júnior ECA-USP

Estudo do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) investigou como as políticas públicas no Brasil se direcionaram para a contenção e punição do crime. A pesquisa apurou os paradigmas desse setor em quase duzentos anos de história do Estado de São Paulo. Sob uma ótica sociológica, foi feita uma análise das razões de rupturas e continuidades no decorrer da formação da Segurança Pública paulista, assim como motivações e valores inerentes às ações punitivas.

Segundo Marcos César Alvarez, docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e um dos autores da pesquisa, “para entendermos os desafios da sociedade brasileira atual, como a aplicação dos direitos humanos e a consolidação da democracia, é importante também uma perspectiva histórica”. Para tanto, a análise realiza um trabalho de apreensão do passado histórico, tendo em vista a interação entre as organizações representativas da justiça, o ato de punir e a reação de grupos sociais a tais mecanismos de controle. “Não há uma relação simples de continuidade, mas o presente sempre traz práticas, instituições e ideias que foram formuladas em longos processos”, diz ele.

O disparador do estudo, de acordo com Alvarez, tem a ver com a noção social de punição. “Precisamos sair da visão da punição estritamente em termos jurídicos e pensar a punição enquanto instituição”. A pesquisa baseia-se em três eixos fundamentais, relacionados ao contexto político da segurança pública, à forma de implementação de tais políticas e à sedimentação de um tipo especial de cidadania.

Hipóteses

Considerando a percepção da ordem pública na implementação do sistema de segurança e justiça, o estudo pressupõe que o setor assentou-se na imposição da agenda política de grupos dirigentes do Estado. Nesse sentido, a construção de instituições e organizações da área corresponderia tão somente aos interesses vigentes de elites econômicas e intelectuais, descartando ou secundarizando a manifestação popular, tida como inapropriada à “boa ordem pública”.

A segunda hipótese admite que a forma de implementação de políticas de segurança pública no Brasil assimilou diversas marcas contraditórias filiadas ao corporativismo e clientelismo, elementos que orbitam o nascimento da burocracia estatal nacional. Muito além de influências oligárquicas, a constituição do Estado brasileiro incute profundas cicatrizes na gênese das políticas do campo.

O último eixo do projeto apreende a questão da formação de cidadania restrita no país. A pesquisa também se preocupa, como diz Alvarez, com a persistência de graves violações dos direitos humanos no país, fator constitutivo de uma formação política nacional e da estrutura social ainda fortemente hierarquizada. “Há vários desafios que permanecem. Por exemplo, a questão da tortura, que nós trabalhamos em vários momentos, e é uma prática recorrente e que ainda hoje nós podemos encontrar e temos dificuldade em combater”, afirma.

O trabalho é lastrado em fontes diversas, reunidas em um vasto banco de dados. “Deve-se pensar sim a punição enquanto justiça criminal e função do sistema público de segurança, mas devemos ver como repercute na imprensa, nos intelectuais da época ou em outras fontes possíveis”. As informações base para o estudo compreendem uma gama desde debates parlamentares sobre questões de violência e punição e compêndios legislatórios sobre o assunto até trabalhos acadêmicos que tiveram enfoque em tais temáticas.

Observações

Fernando Salla, outro autor da pesquisa, assevera que, institucionalmente, não houve incorporação de elementos expostos pelo presente estudo realizado às políticas públicas de segurança. Na mesma linha de crítica à realidade do campo, Alvarez concluiu que “as PECs (Propostas de Emenda à Constituição) que tramitam em relação ao assunto não dialogam com estudos científicos” da área.

Além de ressaltar a continuidade de problemas na segurança, Alvarez alerta para um retrocesso sobre os valores penais. Segundo ele, a redução da idade penal “é como regredir um século na discussão”. Considerando discussões ou âmbitos específicos, como a legislação voltada para adolescentes em conflito com a lei e tudo o que foi reformulado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), percebe-se que desde o início do século XX se busca equacionar esse tipo de problema. Mas, com a criação do Juizado de Menores, se acabou estigmatizando o perfil de jovens pobres como potenciais criminosos, algo que, segundo o pesquisador, ainda é forte no país.

Levando às últimas consequências o estigma do criminoso, para Alvarez, a sociedade brasileira reage intensamente ao “populismo penal”, que corresponde à ideia de resolver problemas sociais complexos com uma resposta jurídica simples. “Se a prisão tradicional já não ressocializa, por que mandar jovens mais cedo para elas?”, indaga.

A pesquisa, intitulada “Construção das Políticas de Segurança e o Sentido da Punição, 1822-2000”, é ligada ao Cepid (Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, a Fapesp.