Mariana Gonçalves, da Jornalismo Júnior ECA-USP
Mesmo após 2006, com a destruição de quase todos os prédios que compunham o Complexo do Tatuapé, um conjunto de dezessete unidades da antiga Febem (Fundação Estadual do Bem Estar do Menor), os jovens infratores paulistas sentenciados à internação permaneceram sujeitos a um cotidiano tão punitivo quanto o de anos antes. A diferença é que a instituição passou a se chamar Fundação Casa (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), após uma reformulação. A conclusão é de pesquisa feita por Thiago Rodrigues Oliveira, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). Seu trabalho fundamentou-se em pastas e prontuários disponibilizados pelo Núcleo de Documentação do Adolescente (NDA), o único prédio que sobreviveu à demolição do complexo.
Naquele momento, o NDA armazenava mais de 100 mil documentos relacionados aos adolescentes internados na Febem e na Fundação Casa. Dentre os quais sentenças, oitivas, boletins de ocorrência, relatórios de assistentes sociais e de psicólogos. A possibilidade de trabalhar com aquele material que estava sob sigilo de Estado partiu de uma parceria firmada pelo próprio NDA com o Núcleo de Estudos de Violência (NEV) da USP. Em troca de orientação dos pesquisadores, que saberiam ajudá-los a organizar a enorme quantidade de papéis, o NEV poderia usá-los para fins acadêmicos. Em 2013, Oliveira ia semanalmente ao local do antigo complexo – onde hoje, em torno do prédio do NDA, funciona o Parque do Belém, na zona leste da capital – para recolher dados e desenhar suas conclusões. Apesar de realizados os levantamentos estatísticos dos documentos, o estudante concentrou-se, sobretudo, em fazer uma analise qualitativa, por meio da qual captaria as impressões que funcionários e jovens da Febem e da Fundação Casa, no período de 1990 a 2006, tinham a respeito de cada instituição e da transição de uma para outra.
“Eu não tive como fazer observação direta do cotidiano da instituição”, antecipa Oliveira. O acesso à fala dos jovens internados existiu por meio da perspectiva de psicólogos e assistentes sociais que redigiam os relatórios. “Eu percebi que os próprios adolescentes enxergavam a instituição como um meio punitivo”. Da Febem, cujas práticas estavam alinhadas com o antigo Código de Menores, de 1979 – uma legislação “em completo descompasso com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)”, aponta Thiago –, talvez fosse esperado resultado do tipo. Contudo, surpreenderam os relatos acerca da Fundação Casa, instituição criada para cumprir com o ECA, propor mudanças e resgatar a imagem dos centros de ressocialização de menores no estado de São Paulo, já desgastada por conta de escândalos ocorridos na Febem. A própria desativação, inclusive física, do Complexo do Tatuapé foi uma tentativa de deixar para trás os fantasmas da antiga fundação. “A ideia da Fundação Casa era justamente a de dissociar-se do esteriótipo da Febem”, reforça o pesquisador, “mas vi que houve uma continuidade muito grande [entre ambas]”.
Por um lado, pequenas mudanças institucionais foram perceptíveis, principalmente em relação à centralização e à superlotação evidentes nos tempos de Febem e abolidas com sua sucessora. No entanto, Oliveira conta que até mesmo o discurso de adolescentes internados em ambos os lugares era semelhante ao de adultos instalados no presídio comum. Segundo o pesquisador, os jovens não viam nas instituições um lugar que os introduziriam de volta à sociedade, onde teriam acesso a medidas socioeducativas e práticas culturais e pedagógicas. “Eles as enxergavam como um lugar em que cumpriam pena”, continua, “e estavam ali pagando pela conduta de antes, devendo se comportar até a próxima avaliação do juiz, de forma a tornar a estadia a mais curta possível”. Oliveira diz que esse tipo de gramática é exatamente a mesma que um condenado no sistema carcerário usaria, e usa, como mostram as pesquisas. O pesquisador não pôde dizer como exatamente se manifestava a punição na Febem e na Fundação Casa – afinal, sua análise foi meramente documental –, mas assegura que a ideia de que adolescentes não são punidos no Brasil, ou de que a punição começa aos dezoito anos, na prisão, é uma “grande falácia”.
Sua pesquisa teve orientação de Marcos César Alvarez, professor na FFLCH e pesquisador sênior no NEV. Ambos redigiram o projeto de iniciação científica juntos, de forma que o trabalho de Thiago Oliveira tornou-se parte de uma pesquisa maior, desde antes coordenada por Alvarez: “Adolescentes em conflito com a lei: pastas e prontuários do ‘Complexo do Tatuapé’”. Foram diversos os pesquisadores que, assim como eles, mobilizaram-se em torno dos documentos ofertados pelo NDA, como os doutores Fernando Salla e Ana Lucia Pastore. Atualmente, Thiago Oliveira é pesquisador no NEV, faz mestrado em Sociologia e trabalha em cima das pastas e prontuários recolhidos durante a graduação, mas procura por outro tipo de resposta: em vez de analisar as diferenças entre Febem e Fundação Casa, destrinchando a trajetória dos adolescentes que passaram por ambos os lugares, ele agora observa o funcionamento do sistema Judiciário em relação aos menores infratores.