Por meio de artefatos gráficos veiculados a partir do século XIX, projeto traça panorama do repertório tipográfico produzido em São Paulo nos primeiros cem anos de impressão na cidade
Por Laura Himmelstein Capelhuchnik, da Agência Universitária de Notícias (AUN/USP)
O projeto “Memória Gráfica Paulistana: estudos exploratórios sobre tipografia e identidade”, iniciado em 2013 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, faz parte de uma rede de pesquisa sobre memoria gráfica brasileira que começou com pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Recife. O trabalho tem como objetivo compreender a configuração da identidade visual da cidade de São Paulo através da identificação das características visuais apresentadas pela produção gráfica veiculada.
Na FAU, o foco da pesquisa é o resgate da história dos impressores paulistanos do primeiro século de impressão na cidade. Começa com o periódico “O Farol Paulistano”, na década de 1820, e vai até 1920, quando a impressão com tipos móveis, o processo de composição dominante, começa a ser substituído por novas técnicas.
No site, o grupo disponibiliza o banco de dados Tipografia Paulistana, que reúne informações sobre as empresas ligadas à pratica da impressão, com nomes e endereços das oficinas tipográficas que atuaram ao longo do século. Entre 1820 e 1830, são menos de cinco oficinas em atividade. Esse número aumenta exponencialmente no final do século 19, quando chega a cerca de 200 impressores registrados.
A catalogação dos impressores da cidade ao longo do século foi dificultada por fatores como uma mesma empresa com dois nomes diferentes, ou com mais de um endereço, além de profissionais que ocuparam cargos em mais de uma empresa simultaneamente. Além disso, muitas ruas mudaram de nome ou não existem mais atualmente, o que dificulta sua localização. O que se sabe com precisão é que a quantidade mais expressiva de oficinas da época ficava no centro de São Paulo. “Isso é reflexo da própria cidade, que era muito pequena, e da origem dos impressores”, diz a professora Priscila Farias, coordenadora da pesquisa. “A maioria deles era vinculada à Faculdade de Direito da USP. Os primeiros jornais eram muito ligados a isso, então, se você olhar os nomes dos editores dos jornais e dos donos das gráficas, vai ver que são em maioria professores, alunos, ou pessoas próximas à Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Não é por acaso, portanto, que essas gráficas se localizam onde essas pessoas atuavam e viviam.”
A partir desse mapeamento da atividade de impressão, o grupo pretende analisar o que cada profissional produziu. Depois da catalogação das oficinas, o próximo passo é compreender a visualidade da impressão de suas produções, por meio de um resgate do chamado repertório tipográfico. O foco da análise são os almanaques comerciais produzidos no período.
Uma primeira abordagem sobre o repertório é a análise de letras serifadas toscanas – são fontes mais ornamentadas, com serifas extravagantes, pontudas. A partir desses dados foi possível verificar que algumas fontes são utilizadas ao longo de praticamente todo o período de impressão de almanaques.
Na atual etapa de trabalho – que não segue uma ordem cronológica – a produção do impressor de origem alemã Jorge Seckler está sendo analisada. Ele representa um dos maiores nomes do ofício, atuou entre a década de 1880 até o final do século 19, e deixou diversos sucessores. “Escolhemos olhar primeiro para a sua produção porque, embora não seja o primeiro, a partir de sua trajetória já é possível ter uma ideia dos encaminhamentos da produção tipográfica em São Paulo”, diz a professora. “Guardadas as devidas proporções, é possível comparar a produção de Seckler com a da família Laemmert [uma das maiores referências deste período no país], que imprimiu os almanaques por muito mais tempo e com uma periodicidade mais ajustada.”
Seckler começou trabalhando com o almanaque “O Indicador”, em 1883. A partir de 1884, quando ele inaugura o “Almanaque do Estado de São Paulo”, surge uma variedade maior de fontes, em que predominam as toscanas, mais ornamentadas. Algumas delas se mantém até o final de sua produção.
Ao final de cada Almaque impresso pela oficina de Seckler, estão as chamadas páginas de Notabilidades, onde ficavam os anúncios da época. Essa subdivisão contém uma variedade grande de tipos de letra: “Às vezes, em um mesmo anuncio, você vê cada linha com uma fonte diferente”, diz Priscila. Outra observação feita pelo grupo é que em várias edições o estilo de letra se repete para um único anunciante, o que de certa maneira se aproxima ao conceito do logotipo de uma marca.
Enquanto no Rio de Janeiro foram identificados 39 tipos de toscanas na produção dos Laemmert – que também trabalhavam com a fundição de tipos, no repertório de Seckler 12 toscanas foram mapeadas. A ausência de variedade de tipos, nesse caso, pode tanto sinalizar a falta de recursos ou de fundidores como também uma certa reserva na seleção: “O repertório restrito fala um pouco uma escolha. Se eu posso comprar fontes, escolho só algumas e não uso um repertório muito grande, é porque as selecionadas dizem algo pra mim, certo?”, aponta a professora.
A pesquisa ainda está em seu início, tentando decifrar as decisões por trás do repertório de Seckler, a produção das oficinas e as características dos primeiros 100 anos de impressão em São Paulo. Mas um ponto que já se ressalta na pesquisa é o olhar que devemos ter sobre o século 19 na cidade. “Ainda existe a ideia de que não havia indústria em São Paulo até a década de 50, que o século 19 é perdido e que o design só pode ser considerado a partir dos anos 50. Mas não é o que a gente percebe pela pesquisa”, Priscila diz. “Dá pra ver São Paulo em crescimento ao olhar os almanaques e, especialmente, as páginas de notabilidade. Você tinha um campo de atuação junto à indústria e ao comercio que a gente entende hoje como design, mas que não tinha esse nome. No fundo, é a origem das práticas que a gente conhece.”