Painel composto por consultor do setor de gás e por advogada da agência reguladora da área de energia enfatiza consensos e dissensos das discussões realizadas pelos oito subcomitês do Gás para Crescer.
Organizado no último dia 7 de junho pelo FAPESP-SHELL Research Centre for Gas Innovation (RCGI) e pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE), o workshop “Atualidades Regulatórias do Mercado de Gás: Workshop Gás para Crescer” reuniu pesquisadores, professores, gestores públicos, empresários, consultores jurídicos e players atuantes no setor do gás durante um dia inteiro, para discutir aspectos da iniciativa Gás para Crescer, lançada em 2016 pelo Governo Federal. O evento foi coordenado pela professora Hirdan Katarina de Medeiros Costa e pelo professor Edmilson Moutinho dos Santos (ambos do IEE).
Os debatedores Zevi Kann, consultor que já pertenceu aos quadros da Companhia Energética de São Paulo (CESP) e da Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista (CTEEP), e Carina Couto, da Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo (Arsesp), focaram suas apresentações nos trabalhos dos oito subcomitês de discussão instituídos pela iniciativa Gás para Crescer. Kann falou, ainda, do estabelecimento do Grupo de Trabalho que trata do Supridor de Última Instância. O consultor participou diretamente de dois subcomitês: o de distribuição e o que trata do “gás da União”. Participou, ainda, do Comitê Geral.
Segundo ele, o primeiro subcomitê trata de Escoamento, Processamento e Regaseificação de gás natural. Ali, foi debatida a promoção do acesso não discriminatório de terceiros e aumento da transparência em relação à formação de preços e características, capacidades e uso de infraestruturas. “Trata-se de um assunto muito relevante e poderia modificar a oferta de gás de produtores que, hoje em dia, só têm a possibilidade de vender para a Petrobrás”, diz ele.
O engenheiro lembra que em 1999, quando foi estabelecido o marco regulatório de São Paulo, o prognóstico de estabelecimento de um mercado livre de gás era de 12 anos. “Parecia infinito e absurdo. Mas o fato é que não havia mercado. A produção, o escoamento, o transporte e a infraestrutura eram problemáticos. Em 2011, com o mercado já totalmente regulamentado, com o comercializador disciplinado, credenciado e autorizado, nenhum contrato de consumidor livre se realizara ainda. Essa trava vem de cima, desde a produção. E continua até hoje. Por enquanto, o Gás para Crescer não resolveu essas questões.”
De acordo com ele, o calendário da área do gás é muito longo e muito lento. “Passaram-se 18 anos desde 1999. E, até agora, não temos o livre acesso funcionando adequadamente.”
O subcomitê número dois versa sobre transporte e estocagem. Discute-se um novo modelo do transporte de gás natural, além de aperfeiçoamentos ao planejamento da expansão da malha de transporte, alterações no modelo de outorga de transporte e estocagem e incentivos à estocagem e sua integração com o modelo de transporte. “Com a sistemática atual prevista pela Lei do Gás, que é de 2009, nem um metro de gasoduto concedido foi estabelecido desde o ano da implementação da Lei. O processo é longo: é necessária a aprovação de inúmeras instituições, depois é preciso escolher as concessões, aí então escolher os carregadores, redimensionar o gasoduto em função das ofertas de carregamento, e depois sim, levar a leilão, para que os transportadores possam concorrer pela menor tarifa. É um processo absolutamente impraticável.”
O terceiro subcomitê trata de distribuição. “A pauta principal aqui é a harmonização da regulação federal e estadual, um assunto absolutamente necessário. Há disparidades, também, entre as regulações estaduais: de prazos, de quantidades. Entretanto, esse comitê não foi produtivo, porque houve certa radicalização. Não se buscou um consenso e não houve acordo. No final, a Abegás (Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado) acabou saindo das discussões.”
Para Carina Couto, Superintendente de Regulação de Gás Canalizado da Arsesp, embora o Gás para Crescer reflita o empenho de agentes em contribuir com os aperfeiçoamentos necessários à Lei do Gás, há ainda muitos dissensos em diversos grupos, com destaque para o que discute distribuição.
[custom_blockquote style=”green”] “A definição de usuário livre é uma delas. No subcomitê que discute a disribuição, houve o consenso de que os critérios para a qualificação de usuários como consumidores livres devem ser estabelecidos pelos Estados ou pela União com razoabilidade, de forma a permitir a migração dos usuários do segmento industrial do mercado cativo para o mercado livre. Em nosso cadastro temos mais de 230 potenciais usuários livres. Mas nenhum contrato ainda celebrado, por conta da falta de ofertantes.” Carina explica que, para a Arsesp, usuário livre é aquele que consome acima de 10 mil m³/dia.” [/custom_blockquote]
O pagamento da Tarifa de Usuário do Sistema de Distribuição (TUSD) é outra questão polêmica nesse subcomitê. “Há um questionamento sobre a obrigatoriedade, ou não, do autoprodutor, do autoimportador e do usuário livre, que usam a rede dedicada (uma rede de uso exclusivo e específico) de pagarem a TUSD. Há grupos que entendem que sim. Há ouros que acham que não”, explica Carina.
Ela afirma, no entanto, que também houve consensos importantes no subcomitê de distribuição, sobretudo nas diretrizes para os Estados. “Foi consenso no subcomitê que há medidas que podem ser implementadas para assegurar o cumprimento de alguns princípios básicos da regulação, como o fortalecimento e Instituição de Agências Reguladoras Independentes (no caso dos Estados que ainda não as tenham); a necessidade de divulgação de informações (transparência); a participação dos agentes em consultas e audiências públicas e a priorização da compra de gás para o mercado cativo, via leilão.”
O tema do subcomitê quatro é a comercialização. Ele trata da definição do mercado nacional de gás, da implantação de atividades de contabilização e liquidação das diferenças, do mercado de curto prazo (MCP) e de competitividade. “O horizonte aqui é de dez anos para a frente. Discute-se a criação de um mercado de gás sem que haja as mínimas condições, ainda, de outros agentes oferecerem gás. Também se discute a necessidade de gás por parte das distribuidoras, que têm tido seus volumes reduzidos. Já existem regulações implantadas sobre comercialização, em vários estados, em outros modelos que não o previsto por uma atuação federal”, explica Kann.
O consultor afirma que o subcomitê cinco, que trata do aperfeiçoamento da estrutura tributária do setor de gás natural, trabalhou muito bem. “Dos vinte problemas tributários existentes, o grupo conseguiu encaminhar soluções para quatro, por meio de projetos de lei e modificações no âmbito infra legal.”
O tema “gás natural como matéria prima”, objeto do subcomitê número seis, é um mote de interesse restrito. “O grupo é basicamente representado pela Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química). Mas a maior parte dos outros agentes foi contra as propostas apresentadas pela Abiquim, mesmo outros grandes consumidores, como a Abrace. Isso porque a indústria química quer um gás mais barato, que é a única forma dela sobreviver. Seus representantes têm propostas, mas são difíceis de implantar.”
O subcomitê número sete versa sobre o aproveitamento do Gás da União. Discute-se a implementação da política de comercialização, tanto transitória quanto de longo prazo. “O mais difícil aqui é arrumar os quantitativos de gás para a União oferecer em curto prazo. Todo mundo queria o gás para depois de amanhã, e bem baratinho. Só que esse gás vem lá de Libra ou de outros campos, e certamente os custos não serão assim tão baixos. Além do mais, há enormes dificuldades tecnológicas a observar.”
Finalmente, o grupo oito trata da integração entre os setores de gás natural e energia elétrica. Alguns temas abordados ali são a alocação equilibrada de risco entre o setor elétrico e de gás natural, o modelo de suprimento de gás natural que melhor atenda às necessidades de ambos os setores e o planejamento integrado gás-eletricidade.
“É um mote absolutamente relevante para o setor. O grupo de discussão traçou uma lista de 30 a 40 assuntos para resolver e na reunião final foram apresentadas propostas para apenas quatro desses assuntos.” Segundo Kann, o setor do gás poderia, ou não, ter um outro caminho, a depender das soluções do setor elétrico, principalmente na questão das termelétricas de base.
“Existindo contratos desse tipo, seria permitido, num planejamento do tipo gás-energia elétrica, levar gasodutos para regiões do país que hoje não têm essa estrutura. E que continuarão não tendo por muito tempo. Resumindo: onde há gasoduto de transporte, haverá termelétrica. O cenário aponta para termelétricas ‘jabuticaba’ ao longo dos gasodutos de transporte, e nenhum outro gasoduto se viabiliza se não houver consumidores-âncora, como são as termelétricas. Esse problema persistirá. Ou se faz um planejamento integrado gás-energia elétrica, pensando em conjunto o gasoduto versus a linha de transmissão, ou seja, a integração do sistema, ou permaneceremos num modelo muito pobre em matéria de gasoduto.”
O tema Supridor de Última Instância (SUI), segundo Kann, é muito novo. O SUI atua atendendo a consumidores vulneráveis ou protegidos em casos de interrupção do fornecimento pelo supridor original, de falência ou revogação de licença do supridor original; em casos onde o cliente não possua um supridor de gás definido e/ou em caso de expiração do contrato de fornecimento de gás natural. “O grupo começou discutindo o que ‘não seria’ o SUI e quais não seriam atribuições dele. Acabaram listando um rol de atividades que não competem a ele. Ao final, a conclusão do grupo foi que, possivelmente, em curto prazo, nós não precisaremos do SUI. Foi totalmente inesperada.”
Segundo a professora Hirdan Katarina de Medeiros Costa, pesquisadora do RCGI e uma das organizadoras do evento, o Gás para Crescer teve uma primeira fase exitosa e, agora, entra em compasso de espera. “A primeira fase de rodadas dos nove subcomitês se encerrou e os relatórios de cada um foram entregues ao MME, que vai analisá-los e dar encaminhamento às instâncias competentes. Mas o Brasil todo está em compasso de espera, por conta das indefinições políticas. Apesar disso, temos boas expectativas, pois as discussões nos subcomitês foram profícuas.”