BRICS e o Legado da Segunda Guerra Mundial

BRICS E O LEGADO DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Por Valdir da Silva Bezerra

No dia 24 de junho de 2020, ocorreu na Russia uma vultuosa parada militar em homenagem ao 75º aniversario da vitória na Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que o país se encontra num cenário de complicado combate ao coronavírus. Com efeito, mesmo que diante das consequencias da pandemia, a realização de tal evento pela Rússia (tradicionalmente celebrado no dia 09 de maio, mas que precisou ser adiado pelas autoridades russas devido à crise da COVID-19), trouxe novamente à memória a contribuição das forças soviéticas dentro da coalização Aliada na derrota definitiva da Alemanha Nazista, encerrando a mais catastrófica guerra da história da humanidade.

Com efeito, não somente a Rússia – que perdera juntamente com as demais Repúblicas constituintes da União Soviética cerca de 25 milhões de vidas durante o conflito, mas todos os atuais membros do grupo BRICS tiverem participação importante durante a Segunda Guerra Mundial. A China, por conta de seu prolongado período de confrontação com o Japao Imperial e pelas perdas sofridas pelo povo chines em decorrência da guerra, teve após o final do conflito o seu lugar reconhecido como um dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, formado em 1945.

A Índia enviou mais de 2 milhões de soldados para servirem junto ao Exército Britânico durante o conflito, os quais lutaram nos mais diferentes teatros de guerra (incluindo regiões como o Norte da África, Oriente Médio e Europa) contra as potências do Eixo. O Brasil também enviou uma força expedicionária considerável, em número aproximado de 25.000 soldados, a lutar junto dos Aliados em regiões sob ocupação Nazista no Sul da Itália, atuando com unidades do exército americano em missões de reconhecimento e interceptação.

A África do Sul, por sua vez, contribuiu de forma significativa para o esforço de guerra dos Aliados, com mais de 130.000 soldados sul-africanos lutando junto de forças britânicas em campanhas ao redor da África e no Sul da Europa. Com efeito, os países do BRICS detiveram, nos mais diferentes graus e atividades, contribuições importantes para o encerramento do conflito e para a vitória dos Aliados, bem como na configuração da Ordem Mundial que se seguiu.

De tal modo, o tema da Segunda Guerra Mundial e suas consequências não poderia deixar de estar presente em posicionamentos políticos dos BRICS, em se tratando de um dos agrupamentos políticos mais representativos do sistema internacional contemporâneo. A título de exemplo, na Declaração de UFA (na Rússia) dos BRICS em 2015, ano que marcou o 70º aniversário do final da Segunda Guerra Mundial, os países do grupo prestaram homenagem a todos aqueles que lutaram contra o fascismo e o militarismo nos anos da guerra e a todos que tiveram sua vida precocemente ceifada em função do objetivo de libertar as nações da opressão do Nazismo; na ocasião, os BRICS também expressaram o compromisso de rejeitar quaisquer tentativas de deturpar os resultados e eventos da Segunda Guerra Mundial, destacando o dever comum de todos os países em construir um futuro de paz e desenvolvimento[1], servindo aos interesses naturais de toda a humanidade.

Declarações adicionais quanto a condição de tentativas de se reinterpretar os resultados e eventos da Segunda Guerra foram novamente repetidas na 8ª Cúpula dos BRICS em GOA (na India), o que traz à baila, portanto, a seguinte questão: afinal, o que pode estar por trás da expressão “reinterpretar os resultados/acontecimentos da Segunda Guerra Mundial” constantes das declarações de UFA e GOA dos BRICS? Uma possível resposta para esta pergunta encontra-se, num primeiro momento, no entendimento de que a Rússia, pais responsável pela próxima reunião dos BRICS a ocorrer em 2020, detém a este respeito. Como tal, a Rússia condena de forma categórica quaisquer tentativas por parte de países Ocidentais no sentido de ‘monopolizar a vitória’ na Segunda Guerra Mundial, excluindo-se da equação as contribuições dadas pela União Soviética, bem como de outros países aliados para a resolução do conflito. Como anteriormente discutido, mesmo os países do BRICS tiveram, cada um a seu modo, participação importante durante a guerra, contribuindo para a derrota das forças do Eixo.

Com efeito, em artigo recentemente publicado, o atual presidente russo Vladimir Putin ressaltou que “foram os esforços de todos os países e povos envolvidos na luta contra o inimigo comum [o Nazismo] que culminaram na vitória[2] na Segunda Guerra Mundial”. Tal vitória trouxe como consequência uma reconfiguração da Ordem Mundial pós-conflito, com novas Organizações Internacionais e mecanismos de concertação política criados para lidar com os desafios comuns a toda a humanidade a partir das décadas seguintes, baseadas em teoria não mais numa política de poder crua e fria, mas sim no multilateralismo e no respeito aos interesses de todos os Estados.

De acordo por exemplo com entendimento esposado pelo presidente russo, a principal conquista oriunda do Pós-guerra foi de fato a criação de um mecanismo que permitisse com que as principais potências do período resolvessem suas diferenças por meio da via diplomacia[3], apoiados pelo sistema das Nações Unidas e sobretudo pela existência do Conselho de Segurança. Sobre este último, Putin considera em seu artigo que “ainda que alguns países eventualmente possam não concordar com as decisões de seus membros-permanentes (representados por China, Rússia, Estados Unidos, França e Grã-Bretanha atualmente), essas mesmas decisões servem ao menos como elemento dissuasório para Estados que intentem agir de forma unilateral no sistema internacional, forçando-os a buscar decisões politicas por meio de compromisso[4].

Por outro lado, para além do entendimento e posições do lado russo a respeito das instituições do Pós-guerra, é interessante notar que o grupo BRICS não tem aberto mão de chamar a atenção para a necessidade de se reformar e/ou atualizar algumas das principais Organizações Internacionais surgidas após o conflito. Em 2014, os Ministros das Relações Exteriores dos BRICS reafirmaram o compromisso do grupo em salvaguardar uma Ordem Internacional justa e baseada na Carta das Nações Unidas, acentuando ao mesmo tempo a necessidade de uma reforma abrangente da ONU, tendo em vista as mudanças ocorridas no cenário internacional desde 1945, fazendo menção inclusive a uma possível reforma no Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais representativo e eficaz frente a desafios cada vez mais complexos e globais.[5]

De fato, o BRICS, enquanto elemento a refletir a aproximação política dos chamados países emergentes no século XXI, tem funcionado como plataforma política através da qual seus Estados-membros questionam determinados aspectos da Ordem Internacional originada do pós-Guerra[6], procurando ampliar seu poder decisório nos diversos mecanismos de governação global. Neste contexto, ao mesmo tempo em que os BRICS reconhecem a importância da vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, propiciada pelo esforço conjunto de diversos povos e nações envolvidos no conflito, bem como a importância das instituições e órgãos internacionais dela advindos (como o Conselho de Segurança da ONU aqui discutido), o grupo ao mesmo tempo pleiteia uma maior voz e representação na Ordem Mundial, tendo em vista que, passados 75 anos do término da guerra, inúmeras mudanças ocorreram, e uma delas diz respeito ao fato de que o mundo já não é mais o mesmo de 1945.

Nesse sentido, não se trata propriamente de reinterpretar o passado, questionando-se os resultados da Segunda Guerra Mundial, mas de se reinterpretar o presente (como o BRICS enquanto grupo tem feito), visto que novas condições geopolíticas e econômicas evidenciam a necessidade não da substituição da ordem advinda do Pós-guerra, mas de uma melhor acomodação dos interesses de um crescente número de países emergentes em suas instituições e mecanismos.

[1]BRICS. UFA Declaration (2015) URL: <https://fmp.msu.ru/anthology/multilateral-organisations/item/2409-ufa-declaration>

[2] PUTIN, Vladimir. 75 let Velikoy Pobedy: obshchaya otvetstvennost’ pered istoriyey i budushchim [75 anos da Grande Vitória: responsabilidade compartilhada para com a história e o futuro]. Kremlin: 2020. URL:<http://kremlin.ru/events/president/news/63527?fbclid=IwAR0sEt3hC6ULl4ekZ67LdTDGjuIgQGWJavr0_Iul6A413qHBU7hDws1cz5o>

[3] ibidem

[4] ibidem

[5]BRICS. Press release on the Meeting of BRICS Foreign Ministers (2014). URL: <http://www.brics.utoronto.ca/docs/140925-foreign.html>

[6]  Acharya, A. After Liberal Hegemony: The Advent of a Multiplex World Order. Ethics & International Affairs, 31, no. 3 (2017), pp. 271-285