Cooperação BRICS na Área da Saúde e os Desafios face à Pandemia da Covid-19
Cassio Eduardo Zen
Elen de Paula Bueno
Desde sua primeira cúpula, em 2009, o agrupamento formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul estabeleceu mais de trinta áreas de cooperação, além da criação de uma organização internacional, o Novo Banco de Desenvolvimento. A cooperação nas áreas da saúde, ciência, tecnologia e inovação se mostrou promissora nos últimos anos, resultando no estabelecimento de intercâmbios e disponibilização de recursos para projetos científicos[1].
Especificamente na área da saúde, desde 2011, os Ministros da Saúde do BRICS mantêm encontros regulares, tanto no âmbito das cúpulas paralelas que geralmente antecedem a cúpula anual dos chefes de Estado, quanto à margem de reuniões da Organização Mundial da Saúde (OMS), com o objetivo de promover a coordenação sobre temas que compõem a agenda da organização. Em 2011, considerando a saúde como elemento essencial para o desenvolvimento econômico e social, os Ministros da Saúde dos países BRICS firmaram a Declaração de Pequim, visando, dentre outros objetivos, a transferência de tecnologia entre os países com o intuito de aumentar suas capacidades de produção farmacêutica e o fortalecimento dos sistemas de saúde para superar as barreiras de acesso à tecnologia de combate a doenças contagiosas. Na Declaração, o BRICS reiterou a importância da OMS para a cooperação internacional na área da saúde e reconheceu que os desafios relacionados à segurança alimentar, mudança climática, meio ambiente, comércio e outras questões globais têm impacto na saúde pública. Nesse sentido, os países do grupo firmaram o compromisso de apoiar e empreender projetos globais de cooperação em saúde pública, inclusive por meio da cooperação sul-sul, apoiando uma maior coordenação e cooperação entre agências e organizações internacionais de saúde e desenvolvimento, a fim de otimizar o uso de recursos e integrar, de maneira coerente, políticas globais de saúde. Apesar da diversidade e diferenças existentes, os países do BRICS reconheceram que enfrentam uma série de desafios semelhantes em matéria de saúde pública, incluindo acesso desigual a serviços de saúde e medicamentos, custos crescentes de saúde, doenças infecciosas como HIV e tuberculose[2], além de enfrentarem taxas crescentes de doenças não transmissíveis. Ademais, reconheceram que o grande desafio que enfrentam diz respeito ao oferecimento de assistência médica a milhões de pessoas, principalmente entre os segmentos mais vulneráveis da sociedade[3].
De acordo com o relatório da Global Health Initiative de 2012, após a crise econômico-financeira de 2008, o montante de cooperação internacional para saúde de cada um dos países BRICS cresceu, ao passo que nos principais países do Norte (EUA e União Europeia) o financiamento para saúde global abrandou devido as restrições da crise financeira. Neste contexto, os BRICS foram vistos como doadores essenciais para suportar financeiramente as iniciativas internacionais de acesso à saúde, refletindo a importância do engajamento em oferecer novas soluções para o Sul global[4].
Apesar das iniciativas e modelos de cooperação inovadores, como a criação da Rede BRICS de Pesquisa em Tuberculose e a Rede de Cooperação Tecnológica do BRICS, bem como dos movimentos impulsionados nas esferas multilaterais em prol de uma agenda global em matéria de saúde pública, a atuação conjunta do grupo ainda é questionada, sobretudo no que diz respeito a um movimento coordenado de governança global e respostas conjuntas às crises internacionais. Embora o agrupamento tenha criado um grupo de trabalho para o desenvolvimento de um plano conjunto de enfrentamento à epidemia de Ebola, em 2014, a fragmentação de iniciativas acabou se sobrepondo, com ênfase à forte atuação unilateral da China e algumas iniciativas bilaterais, tais como a parceria entre China e Brasil em pesquisas sobre Ebola e Zika, em 2017[5].
Diversos compromissos assumidos pelos BRICS em matéria sanitária não foram totalmente implementados. Dentre estes, destaca-se o compromisso de uma maior participação dos países do grupo na GOARN (Global Outbreak Alert and Response Network – rede global de alerta e resposta a epidemias), assumido em Tianjin em 2017[6] e o compromisso para a instalação de um centro dos BRICS de vacinas, assumido em Durban em 2018[7]. Caso este centro de vacinas tivesse sido colocado em prática, os BRICS poderiam ser protagonistas, em conjunto, de projetos de vacinas contra a COVID-19, sem depender de pesquisas realizadas individualmente por Estados e empresas em sua maioria fora do grupo. Em novembro de 2019, pouco antes de serem noticiados os primeiros casos da doença que assola o mundo hoje, os chefes de Estado dos BRICS destacaram a importância da ação coletiva para o diagnóstico em epidemias[8].
Uma série de projetos acabou por aproximar os países do BRICS contra este inimigo comum, beneficiando o Brasil. Logo no começo da pandemia, quando se começou a noticiar o possível uso da hidroxicloroquina para tratamento da doença, o Brasil entrou em contato com a Índia para garantir insumos para a produção da droga, tendo sido atendido pelo parceiro asiático, mesmo com as restrições à exportação de medicamentos determinada por Nova Délhi[9].
O Brasil também recebeu da China (com a cooperação inclusive de empresas brasileiras como a Vale) diversos equipamentos de proteção para serem usados em hospitais contra o coronavírus[10]. Em 15 de junho de 2020, finalmente, noticiou-se diálogo entre os presidentes do Brasil e da Rússia para tratar “inclusive” do assunto do coronavírus[11].
A cooperação entre o BRICS, incluindo cooperação feita por empresas e entes federativos (como o governo do Estado de São Paulo), também se faz presente na pesquisa por tão sonhadas vacinas contra a doença. Segundo a lista mais atualizada pela OMS[12], há 10 vacinas candidatas em fase de estudos clínicos e outras 126 vacinas em estudos pré-clínicos. A mais avançada, a ChAdOX-1-S, da Universidade de Oxford em parceria com o laboratório sueco-britânico AstraZeneca conta com testes realizados no Brasil e também com produção na Índia, onde é situado o maior centro de vacinas do mundo, o Serum Institute of India. Das outras vacinas que estão em testes clínicos, as produzidas pela CanSino/Beijing Institute of Technology, a Wuhan Institute of Biological Products/Sinopharm, a Sinovac, a BioNTech/Fosun Pharma/Pfizer e a Institute of Medical Biology/Chinese Academy of Medical Sciences possuem a participação de empresas ou órgãos governamentais da China. No caso da vacina da SinoVac, vale destacar o acordo celebrado entre o governo estadual de São Paulo e a empresa, possibilitando testes da vacina (fase 3) no Estado e a produção da vacina no Instituto Butantã[13]. Outras várias vacinas, ainda em fase pré-clínica estão em desenvolvimento nos outros países do BRICS, na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal do Paraná (UFPR) no Brasil.
A pandemia da COVID-19 evidenciou a necessária cooperação entre os países, embora em algumas situações pontuais tenha sido identificada uma injustificada e perigosa sinofobia. Apesar da gravidade da ameaça representada por síndromes agudas do trato respiratório (SARS, dentre as quais encontra-se o vírus SARS-nCov2, causador da COVID-19), os vírus da família coronaviridae somente foram mencionados uma vez em documentos do BRICS, na declaração de cúpula de Ufa em 2015[14]. Acredita-se, porém, que nas reuniões de 2020 a pandemia do coronavírus será o principal destaque, inclusive na reunião de cúpula de chefes de Estado.
[1] BUENO, Elen de Paula. Direito e Relações Internacionais: BRICS e as Reformas das Instituições Internacionais. São Paulo: Editora dos Editores, 2019.
[2] A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que 22 países sejam responsáveis por mais de 80% dos casos de tuberculose no mundo e que Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul representam 50% dos casos notificados. PAHO. 4ª Reunião de Ministros da Saúde dos países BRICS. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=4751:4a-reuniao-de-ministros-da-saude-dos-paises-brics&Itemid=875.
[3] BRICS Health Ministers’ Meeting: Beijing Declaration, 2011.
[4] MARTINS, Daniel. Os BRICS e cooperação em saúde: um panorama dos avanços e potencialidades. Observatório Brasil e o Sul. Disponível em: http://obs.org.br/index.php?option=com_k2&view=item&id=854:os-brics-e-cooperacao-em-saude-um-panorama-dos-avancos-e-potencialidades&Itemid=131. Acesso em 16 de novembro de 2016.
[5] FIOCRUZ. China e Brasil debatem parcerias em pesquisas sobre ebola e zika. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/china-e-brasil-debatem-parcerias-em-pesquisas-sobre-ebola-e-zika. Acesso em 10 de junho de 2020.
[6] BRICS TIANJIN COMMUNIQUE OF BRICS HEALTH MINISTERS MEETING, 15.
[7] BRICS JOINT COMMUNIQUÉ OF THE 8 TH BRICS HEALTH MINISTERS MEETING, 11.
[8] BRICS BRASÍLIA DECLARATION, 2019, 57.
[9] Agência Brasil. Bolsonaro agradece Índia por insumos para produzir hidroxicloroquina. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2020-04/bolsonaro-agradece-india-por-insumos-para-produzir-hidroxicloroquina. Acesso em 15 de junho de 2020.
[10] Agência Brasil. Chega da China primeira remessa de insumos hospitalares para o Rio. Disponível em:https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-05/chega-da-china-primeira-remessa-de-insumos-hospitalares-para-o-rio. Acesso em 15 de junho de 2020.
[11] Agência Brasil. Bolsonaro conversa com Putin sobre cooperação na área de saúde. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2020-06/bolsonaro-conversa-com-putin-sobre-cooperacao. Acesso em 15 de junho de 2020.
[12] World Health Organisation. Draft landscape of COVID-19 candidate vaccines.
[13] Instituto Butantan. Butantan e o Governo de SP vão testar e produzir vacina inédita contra o coronavírus. Disponível online em: http://www.butantan.gov.br/noticias/butantan-e-governo-de-sp-vao-testar-e-produzir-vacina-inedita-contra-coronavirus. Acesso em 15 de junho de 2020.
[14]BRICS UFA DECLARATION, 60.