Por Roberto Segre
No início do século XXI, a historiadora parisiense Françoise Choay afirmou que o reino do urbano havia decretado a morte da cidade. No entanto, a economista nova-iorquina Saskia Sassen afirmou que nas metrópoles mundiais o simbolismo dos postos financeiros de comando seguia vigente. Por que essas afirmações divergentes? Porque o conceito de cidade válido no início da década de 1950 mudou radicalmente neste novo século: sua imagem coerente, harmoniosa e unitária foi substituída por uma extensão territorial infinita e descontrolada, caracterizada por sua complexidade, fragmentação, dispersão, segregação; que representam as agudas contradições sociais e econômicas imperantes.
Esses atributos foram forjados durante meio século no processo de “hiperurbanização” condicionado pela dinâmica econômica do “capitalismo avançado” e da globalização neoliberal: entre 1950 e 2000, Buenos Aires passou de 4 milhões de habitantes a 11 milhões; Bogotá de 500 mil a 9 milhões; a Grande São Paulo de 5 milhões a 18 milhões. Havana foi a única cidade que se manteve relativamente estável, pois, ao somente duplicar a população de 1950, atingiu a casa de 1 milhão de habitantes. Fenômenos representativos do sistema urbano do Terceiro Mundo e com maior ênfase da América Latina, considerada a região mais urbanizada do mundo: com apenas 8,5% da população mundial, possui quatro das treze megacidades planetárias – Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro e Cidade do México – e 26 dos 101 assentamentos com mais de 2 milhões de habitantes.
Se o continente é um território vazio com 30 habitantes/km², as grandes cidades concentram em uma superfície mínima a maioria da população da Argentina, do Brasil ou do México, com a metade dela subsistindo em condições de extrema pobreza. No entanto, apesar da proliferação das favelas, dos assentamentos periféricos e da criação das “galáxias” urbanas, os centros urbanos tradicionais mantiveram sua vitalidade, conservando as funções políticas, administrativas, culturais e comerciais: durante quase quinhentos anos, nem a Praça de Maio, em Buenos Aires, nem a Praça do Zócalo, no México, perderam sua iconicidade como expressão popular das raízes históricas nacionais.
Se antes da Segunda Guerra Mundial a influência europeia dirigia as atenções para as residências particulares e as funções sociais, uma vez terminado o conflito, a presença dos Estados Unidos fez-se sentir no desenvolvimento de uma planificação urbanística e na modernização das áreas centrais – por exemplo, o Centro Simón Bolívar de Cipriano Domínguez em Caracas (1950) –, aplicando os enunciados estabelecidos na Carta de Atenas, bíblia urbanística do Movimento Moderno. Durante a década de 1950, sob os auspícios de Nelson Rockefeller, o escritório de planejamento de Sert Wiener e Schulz realizou os projetos de diversas cidades da região: no período entre 1943 e 1945, a Cidade dos Motores no Rio de Janeiro; na Colômbia, entre 1948 e 1953, desenhou, em Chimbote, Medellín e, em colaboração com Le Corbusier, o plano mestre de Bogotá.
Em 1953, o governo do ditador Fulgencio Batista solicitou a Sert o plano diretor de Havana, cuja proposta, se houvesse se concretizado, teria acabado com o valioso centro histórico, que em 1982 foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Algo similar estava previsto para o bairro central de San Telmo – hoje um dos mais vivos de Buenos Aires –, com o lecorbusiano projeto Bairro Sul de Antonio Bonet (1956), no qual a quadrícula tradicional seria substituída pelas fileiras contínuas de edifícios imersos no espaço verde.
Também foram executadas as propostas de novas cidades, relacionadas com o desenvolvimento industrial promovido na região: Cidade de Sahagún, no México, e Cidade Guayana, na Venezuela, esta projetada por urbanistas da Universidade de Harvard e do Massachusetts Institute of Technology (MIT). A participação de técnicos estrangeiros culminou com a do grego Constantinos Doxiadis, autor do projeto para o Rio de Janeiro (1963), baseado na teoria “ekística”.
Os anos 60
A década de 1960 foi aberta com a fundação de Brasília, sem dúvida a experiência urbanística mais importante do século XX na América Latina. Executado em tempo recorde, o plano piloto, esboçado por Lúcio Costa, e tendo os símbolos do Estado projetados por Oscar Niemeyer – o Congresso, os palácios do Planalto e da Justiça na Praça dos Três Poderes, a Esplanada dos Ministérios, o Teatro Nacional e a Catedral –, representava o afã de modernização existente no continente, sintetizado na criação da nova capital no centro geográfico do país, iniciativa provocadora e arriscada do presidente Juscelino Kubitschek. O objetivo era representar o surgimento de um novo Brasil industrialmente desenvolvido. Em termos urbanísticos, porém, a iniciativa terminou seguindo o Movimento Moderno, ao aplicar rigidamente os preceitos do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) e da Carta de Atenas, cuja validade, naquele momento, já havia sido questionada no debate teórico dos especialistas do ramo.
Com a interrupção, em 1964, do processo democrático brasileiro pela ditadura militar, a capital reproduziu rapidamente as estruturas socialmente segregacionistas das cidades tradicionais, radicalizando sua configuração dual: por meio do plano piloto foi instalados meio milhão de políticos e funcionários públicos; e um milhão de habitantes – trabalhadores braçais, de serviços, comerciantes e operários industriais – se dirigiram para as cidades-satélites, quase espontâneas, sem qualquer projeto urbano sustentável. Entretanto, a austera coerência do plano piloto motivou, em 1987, sua declaração como Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco.
A década de 1960 foi caracterizada pela disponibilidade de recursos para construir grandes conjuntos habitacionais. Por um lado, existia a esperança de erradicar os assentamentos espontâneos nas periferias pobres das grandes cidades, substituindo-os por gigantescas urbanizações de anônimos blocos de apartamentos. O modelo aplicado por Carlos Raúl Villanueva nos morros de Caracas se estendeu pelo continente: Mario Pani projetou, no México, o conjunto Tlatelolco-Nonoalco (1962) para 100 mil habitantes, depois recordado tragicamente pela matança de estudantes na Praça das Três Culturas (1968).
O governo norte-americano concedeu grandes empréstimos aos países da região para a construção de moradias a fim de diminuir a tensão social, perante a pressão exercida pelo exemplo da Revolução Cubana: em cada subúrbio das principais capitais apareceram os “bairros Kennedy”, configurando precárias cidades-dormitório.
Uma posição contrária à erradicação foi defendida pelo urbanista inglês John Turner, assessor das populações limenhas para o desenvolvimento da autoconstrução e a criação das infraestruturas básicas nos assentamentos espontâneos.
A temática do hábitat da pobreza alcançou repercussão mundial com o concurso Previ, em busca de novas propostas de moradias de baixo custo, organizado pelas Nações Unidas em colaboração com o arquiteto-presidente do Peru, Fernando Belaúnde Terry, em 1969. Foram inscritos projetos provenientes de todas as partes do mundo, que buscavam alternativas possíveis, baseadas tanto em tecnologias avançadas como no uso de materiais locais e na participação dos usuários na definição das moradias.
A construção de dez protótipos de conjuntos demonstrou a difícil articulação entre a iniciativa estatal e a privada. Talvez a contribuição mais original desse período tenha sido o projeto cubano de urbanização do campo, por meio da criação de comunidades camponesas e de centros educacionais rurais em consonância com o esforço produtivo realizado na grande safra de 1970.
Resultaram fugazes as iniciativas do governo de Salvador Allende, no Chile (1972), na tentativa de romper com a segregação social urbana, inserindo conjuntos residenciais populares nos bairros “nobres” e elaborando um projeto para a área central de Santiago do Chile, que articulava o centro histórico com novas edificações multifuncionais. A partir do golpe de Augusto Pinochet, a identidade de objetivos das ditaduras militares definiu uma política urbanística comum: erradicar os pobres das áreas próximas às zonas burguesas e “limpar” o centro histórico; favorecer a modernização do centro comercial das cidades e a construção de torres de aço e cristal, sedes das empresas estrangeiras, conformando o distrito dos negócios; apoiar a expansão do consumo e o surgimento dos grandes centros comerciais; criar as infraestruturas viárias para ligar as áreas comerciais e financeiras do centro com os novos bairros periféricos dos grupos sociais de alto poder aquisitivo.
Entre as grandes obras desse período encontram-se a criação dos eixos viários, as autopistas de circunvalação e as infraestruturas esportivas na Cidade do México por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1968. A ditadura do general Videla na Argentina levou a cabo uma iniciativa similar para a celebração do Campeonato Mundial de Futebol, em Buenos Aires (1978), acompanhada pelo surgimento da área financeira de Catalinas Norte, com altas torres de escritórios; e o traçado definitivo da avenida Nove de Julho, com a correspondente expulsão dos habitantes do centro, assentados em novos bairros suburbanos: Villa Soldati, Lugano I-II.
Houve operações de renovação pouco respeitosas com a herança histórica, como a do centro de Guadalajara, cujos novos edifícios comerciais varreram várias mansões de construção colonial. Citemos também a criação do Centro Cívico e Comercial, de Lima (1972); os planos de revitalização dos bairros de Las Condes e Providência, em Santiago do Chile; a linha do metrô, de Caracas; o centro de negócios, em Bogotá; o surgimento de novos núcleos administrativos na avenida Berrini e na marginal Pinheiros, em São Paulo; as torres de escritórios governamentais no que fora o morro de Santo Antônio, no centro do Rio de Janeiro; a ponte Rio-Niterói, sobre a baía de Guanabara, e o início do núcleo habitacional periférico da Barra da Tijuca, aplicando o modelo dos condomínios residenciais fechados, que se expandiria por toda a região nas décadas seguintes.
No Brasil, o projeto urbano controlado e integral começou por Curitiba – cidade de dimensões médias –, elaborado pelo arquiteto e depois prefeito Jaime Lerner, cuja coerência formal e espacial e equilíbrio funcional a converteram em um modelo válido para a América Latina.
Finais do século XX
Com o progressivo retorno à democracia nos países do continente, a dinâmica urbana nas duas últimas décadas do século foi caracterizada pelo desaparecimento do Estado de bem-estar social, reduzindo-se ao mínimo os investimentos em obras públicas e outorgando maior importância ao poder municipal e à participação comunitária. Em termos conceituais, o planejamento urbano acabou sendo substituído pelos projetos urbanos, pelos planos diretores e pelos planos estratégicos. Impossibilitadas as ações globais, foi aplicada a tese de “acupuntura” urbana, ou seja, de ações parciais e fragmentárias. Estas foram impulsionadas pela iniciativa privada e pelo capital especulativo – local e internacional – nas operações de marketing urbano e na definição de novos projetos baseados em sua rápida rentabilidade.
Também passaram a predominar a preocupação com o transporte público, limitando a circulação do automóvel privado, e o renovado interesse pelo âmbito histórico e pelo resgate do patrimônio monumental, juntamente com a definição de novas centralidades periféricas. Ao mesmo tempo passou-se a prestar menor atenção aos problemas da pobreza e do crescimento descontrolado dos assentamentos espontâneos. Constitui um paradigma desse problema a “cidade perdida” de Nezahualcoyotl, na capital mexicana, com mais de 1 milhão de habitantes.
Resultaram um caso excepcional as iniciativas das cooperativas de habitação no Uruguai, estimuladas pelo prefeito de Montevidéu, o arquiteto Mariano Arana, e o Programa Favela-bairro do Rio de Janeiro, instituído pelos prefeitos César Maia e Luiz Paulo Conde, e pelo secretário da Habitação, Sérgio Magalhães, cuja originalidade radicou na renovação e no projeto dos espaços públicos dos assentamentos espontâneos, integrando-os à totalidade do conjunto urbano.
Deve-se destacar a expansão infinita das metrópoles, o anonimato dos subúrbios, o incremento da segregação social caracterizada pelos guetos exclusivos e excludentes dos estratos endinheirados acompanhados pelos gigantescos centros comerciais periféricos – cada vez mais afastados do centro urbano tradicional –, o crescimento das favelas e a perda crescente dos espaços públicos invadidos pelo comércio informal, assim como a precária qualidade ambiental da cidade em seu conjunto, sem controle de projeto, com infraestruturas deficientes, a carência de serviços públicos e os caóticos sistemas de transporte. Apesar disso, diversos governos municipais levaram a cabo nas duas últimas décadas iniciativas que revalorizaram os edifícios de valor histórico e os espaços públicos das áreas centrais urbanas.
Houve uma tomada de consciência promovida tanto pelas comunidades locais como pela pressão de organismos internacionais – a Unesco declarou Patrimônio Cultural da Humanidade um sem-número de centros históricos de cidades latino-americanas, entre elas Havana, Cidade do México, Lima, Puebla, Valparaíso, Cuzco, Olinda, Ouro Preto, Guanajuato, Zacatecas, Cartagena das Índias –, e pelos modelos de intervenções nas cidades europeias, em particular o caso de Barcelona.
Entre os exemplos mais significativos estão a restauração da Havana Velha, a partir de 1982; o redesenho da avenida Bolívar em Caracas por Carlos Gómez de Llarena no final dos anos 80; o Corredor Cultural no Rio de Janeiro; a recente política de revitalização do centro tradicional de São Paulo – abandonado desde os anos 70 – refuncionalizando os edifícios vazios; a construção de passeios públicos no centro de Córdoba, desenvolvida por Miguel Ángel Roca, e a do centro de Santiago do Chile e de Lima; a restauração do centro de Quito e da Cidade do México.
A solução para o controle do transporte público urbano aplicada em Curitiba foi reinterpretada em Bogotá, no Transmilênio, baseado em corredores nas principais avenidas, com um excelente projeto das paradas, que reordenou radicalmente a paisagem urbana. Essa operação foi desenvolvida em toda a cidade e acompanhada pela implantação de zonas arborizadas, ciclovias e passeios, que resgataram o espaço público para a comunidade, iniciativa também aplicada em Medellín, ao facilitar o acesso ao centro para os habitantes pobres localizados nas distantes colinas, por meio do Metrocable, conformado por um sistema de teleférico a preços populares.
De todas as iniciativas, a mais ambiciosa foi desenvolvida em Buenos Aires, com um investimento milionário para reciclar e refuncionalizar os abandonados armazéns de Puerto Madero. Inspirada nas intervenções da Barcelona olímpica, e apesar de seu caráter socialmente elitista e “gentrificado” (gentrificação é o processo pelo qual certas partes deterioradas do centro da cidade são ocupadas por grupos sociais de renda superior, depois de restaurados os imóveis), conseguiu aproveitar uma extensa área em frente à zona bancária e financeira, resgatar o valor paisagístico da costa do rio da Prata e gerar um espaço urbano multifuncional com qualidade de projeto, que aportou dimensão pública a uma área abandonada durante décadas. Apesar das contradições citadas, ainda vigentes na cidade latino-americana, esta segue viva e esperançosa no porvir.
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