Regime de água doce ainda não foi consolidado

Ao invés de um regime único que regule a questão, países tem que lidar com regras sobrepostas que criam um complexo de regime.

Por Paula Lepinski, da Agência Universitária de Notícias (AUN / USP)

Um complexo de regime surge quando há sobreposição de dois regimes opostos sobre uma mesma questão no âmbito internacional. Na literatura contemporânea, argumenta-se que a criação de um complexo de regime é resultado da ação de países insatisfeitos com o status quo. Ou seja, estes países criam novas regras exclusivamente como estratégia para defender interesses próprios e desafiar a ordem antiga. Porém, quando se trata da água doce esse não é o caso. Andreas Frank Werner, doutor no Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI), constatou que o surgimento do complexo de regime de água doce não está relacionado com ações estratégicas ou intencionais dos Estados, mas, sim, da criação de forma independente de dois regimes distintos, o regime de Ramsar (1971) e a Convenção sobre o Direito das Utilizações dos Cursos d’Água Internacionais para Fins Distintos da Navegação (1997).

O doutorado de Werner sobre a emergência de água na agenda internacional analisou o período entre 1970 e 1990, mas o pesquisador afirma: “Esse complexo de regime identificado na pesquisa não só existe hoje, mas é mais importante hoje do que antes. Foi só no ano passado, em agosto  de 2014 ,  que a convenção sobre cursos de água internacionais entrou em vigor e, mesmo que antes ela era muito importante como norma de soft law, hoje ela representa hard law, ou seja, ela é vinculativa formalmente”.

A água doce só surgiu na agenda internacional de forma expressiva nos anos 70, trazendo consigo aspectos ambientais e sociais. A evolução do tema , porém, foi fragmentada desde o início, com distintos aspectos tratados separadamente em diferentes arenas internacionais, o que causou a sobreposição de regimes. “Essa sopreposição se deu de forma independente e foi causada pelo crescimento da densidade institucional, resultado de crescente juridificação das relações internacionais”, explica Werner.

Apesar do grande número de conferências sobre o tema e das regras criadas – as conferências de Mar del Plata (1977), de Dublin (1992) e do Rio-92 merecem uma atenção especial pelo seu impacto nas discussões sobre os recursos hídricos – existem vários outros sub-aspectos do tema que não são regulados em nível global. Até agora as regras criadas se mostraram inuficientes para melhorar a crise hídrica mundial e destacaram ainda mais a necessidade de uma governança global abrangente dos recursos hídricos.

O tema do management (gerenciamento ) da escassez, porém, é muito mais amplo e complexo. Quando os países precisam tomar medidas dentro de seus territórios, seguindo a ampla gama de sugestões e best practices (melhores práticas), podem encontrar impasses que estão na raiz do problema da escassez de água. “Muitas dessas razões profundas do problema são temas que ou os países e governos em geral dificilmente podem regular , como os padrões de chuva; ou tem muita resistência política de fazê-lo, como as medidas controversas relacionadas ao crescimento populacional ou ao estilo de vida das pessoas”.

O Brasil e o complexo de regime de água

Apesar de fazer parte do regime de Ramsar desde 1993 e possuir 12 sites de proteção em seu terriório, o Estado brasileiro não aderiu ao regime de cursos de águas internacionais de 1997, por isso não se enquadra no complexo de regime de água. Mas Werner destacou o espaço brasileiro na discussão sobre a escassez de água:  “[O Brasil]  tem vários acordos bi e plurilaterais sobre rios específicos e sobre o Aquífero Guarani. O Brasil também foi e é importante em questões hídricas na sua relação com a Argentina e como país sede da Rio-92”.

O Estado brasileiro possui grandes reservas de água doce, com cerca de 12% da água doce do planeta. Essas reservas incluem dois dos maiores aquíferos do mundo, o Alter do Chão, inteiramente em território nacional, e o Guarani, que abrange Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina. Essa divisão, e também de grandes rios como o Amazonas, são casos de água transfronteiriça que demontram a importância das normas, convenções e acordos internacionais.

Conflitos

A possibilidade de guerras causadas pela escassez de água, segundo Werner, é mínima. Para o pesquisador, esse discurso surgiu após uma entrevista do ex vice-presidente do Banco Mundial, I. Serageldin, em 1995, e hoje é uma polêmica no meio acadêmico. “Existem alguns estudos que inclusive apontam que a escassez hídrica leva mais à cooperação do que a conflitos. Na minha opinião, o risco de ter guerras pela escassez de água entre diversos países é bem baixo e esse discurso distrai atenção importante que deveria se focar sobre problemas de maior relevância social, como são os de acesso á agua potável e ao saneamento básico”.

Fonte: http://www.usp.br/aun/exibir.php?id=6994&edicao=1223