“Democratização” da internet questiona tradição afro-religiosa

Valor importante para garantir status dentro do culto, conhecimento que antes era retido por sacerdotes agora é compartilhado na web entre adeptos.

Por Igor Truz, da Agência Universitária de Notícias (AUN / USP)

A presença e interação mais constante de adeptos de religiões afro-brasileiras pela internet têm colocado em xeque aspectos tradicionais deste culto, como o compartilhamento de informações. Marcadas pela importância do conhecimento litúrgico, onde os mais respeitados são aqueles que melhor sabem como agradar os orixás, estas religiões têm encontrado cada vez mais dificuldade em guardar seus segredos, em esconder o ‘caminho do axé’.

“A internet tem servido como um potencializador daquilo que considero ser a maior especificidade do campo afro-religioso: a busca do axé, que aqui pode ser traduzida como o “domínio dos saberes mágicos-rituais”, explica a socióloga Patrícia Ferreira, pesquisadora vinculada ao Centro de Estudos de Religiosidades Contemporâneas e das Culturas Negras (Cerne) da USP.

“Ser Kossi significa ser alguém que ignora ou desconhece o modo de agradar os deuses e isso deve ser evitado, mesmo que ao custo de se ferir a rígida hierarquia que regula a transmissão de conhecimento”, explica Patrícia. Ela é autora da dissertação de mestrado Axé on-line: a presença das religiões afro-brasileiras no ciberespaço.

Em seu estudo, a socióloga analisou a presença no ciberespaço das tradições dos orixás de matriz africano-iorubá, formada pelo candomblé jeje-nagô e pelos cultos a Ifá e Orunmilá, em suas vertentes nigeriana e cubana.

A crescente participação na internet, segundo Patrícia, é um fenômeno conduzido, sobretudo, por jovens sacerdotes. Resultado do processo de universalização do candomblé, a maioria destes líderes tem formação universitária e valorizam o conhecimento formal. A etnografia digital da dissertação apontou que, ao defenderem a sistematização da divulgação das tradições, ao mesmo tempo, estes sacerdotes promovem renovações teológico-litúrgicas.

“Mesmo persistindo o temor sobre estes conteúdos serem veiculados na internet, se eles correspondem ou não àquilo que dita a tradição, a multiplicação vertiginosa de páginas de discussão nos softwares sociais sobre as religiões afro-americanas atesta por si mesmo a vitalidade do fenômeno”, afirma Patrícia. “A questão do controle sobre a transmissão de conhecimento há muito era insatisfação no campo afro-religioso. Isto só foi potencializado com a popularização da internet”, completa.

A socióloga explica que a busca por mais informações como meio de se tornar um adepto mais ‘respeitável’ não se trata apenas de ambição. Mais do que isso, no sistema de pensamento do candomblé, cada indivíduo se destaca por seus atributos pessoais, enquanto habitação de uma divindade particular.

A importância do conhecimento é tamanha que o iniciado costuma se ver diante de um dilema: respeitar o ritmo lento dos longos anos da trajetória ‘formal’ ou ir em busca de conhecimentos por conta própria. Se em outros tempos a maneira de burlar o tradicional se dava por meio do discreto repasse de ‘cadernos de fundamentos’, hoje a internet aparece como um dos meios mais eficientes para esta interação.

“No plano das interações one-to-one, o ciberespaço dinamiza a sociabilidade e convivência entre pares e a troca de informações e conhecimento, encurtando as distâncias e burlando mediações de outras naturezas”, explica Patrícia.

Real Life

De acordo com o estudo, no plano coletivo, os grupos religiosos perceberam rapidamente o potencial da internet para transmissão da palavra sagrada, tanto para a captação de novos adeptos, como para combater seus concorrentes no mercado religioso.

Patrícia afirma que, por conta da participação reduzida das afro-religiões nos primeiros anos da web e pela “concorrência” do mercado acadêmico, que correspondia a concorrência do mercado religioso, poucos estudos sobre a religião dos orixás foram desenvolvidos.

Segundo a socióloga, no entanto, foi a popularização da internet e das tecnologias que deu um novo impulso para investimentos de pesquisa na área de ‘ciber-antropologia’ das religiões.

“As antigas salas de bate-papo se tornaram obsoletas e cederam espaço, em definitivo, a grupos no WhatsApp, acessíveis em tablets e smartphones em um nível de portabilidade antes impensável. A distinção entre vida virtual e real life não parece mais fazer muito sentido”, destaca Patrícia.

‘Suburbana fluminense’ convicta, Patrícia Ferreira é vinculada a uma casa-templo de candomblé localizada em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. A socióloga é administradora do grupo Candomblé Pesquisa no Facebook, que conta com mais de 26 mil perfis associados.

“Para estabelecer relações de interatividade duráveis, exige-se coragem do pesquisador, que precisa abandonar sua zona de conforto. De mero lurker (usuário que apenas lê os conteúdos e não participa das discussões), hoje sou administradora do grupo Candomblé Pesquisa no Facebook. Vejo vocês por lá, estão todos convidados!”

Fonte: http://www.usp.br/aun/exibir.php?id=6984&edicao=1222