Requerimento de remédios de baixo valor por pessoas de renda alta através da justiça consome 1/4 do orçamento de assistência farmacêutica de São João da Boa Vista, no interior de São Paulo.
Por Bruno Vaiano
Entre 2009 e 2012, 70% das ações judiciais abertas para solicitar remédios ao poder público em São João da Boa Vista, município do interior de São Paulo, continham prescrições de médicos do sistema privado. Das 87 ações verificadas no período, 49 foram responsabilidade de advogados privados. “Pode-se dizer que quem tem se beneficiado destas ações é a população com melhor poder aquisitivo”, afirma a pesquisadora Ildelisa Cabral.
Ela é autora, em parceria com Laura Ferreira de Rezende, do artigo Análise das ações judiciais individuais para fornecimento de medicamentos em São João da Boa Vista, publicado na Revista de Direito Sanitário do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário (Napdisa) da USP. Sua análise dos processos abertos entre 2009 e 2012 na cidade paulista revelou o perfil de quem apela aos tribunais para conseguir medicação gratuitamente.
“A rede pública municipal de saúde é obrigada a adquirir medicamentos genéricos, assim como os médicos da rede são obrigados a prescrevê-los através de seus nomes genéricos”, explica a autora do artigo. Como os remédios indicados por médicos da rede privada, no geral, vêm com o nome comercial na receita, a solução de quem não frequenta o sistema público é apelar para a justiça.
A forma preferida de solicitação de um remédio à rede pública é através de um mandado de segurança. Ele possui uma série de diferenças em relação a uma ação comum, que facilitam seu andamento. A principal delas é que o processo não passa pela fase probatória, ou seja, todos os documentos que servem de prova já foram apresentados na petição inicial. Assim, não há necessidade de se convocar uma audiência. “Por força de lei, o réu é uma autoridade ou um agente público”, complementa Ildelisa. “No município, o réu é o Diretor do Departamento Municipal de Saúde, no âmbito estadual, o réu é o Diretor do Departamento Regional de Saúde ou o Secretário de Estado da Saúde”. O mandado é feito para situações em que o cidadão é afetado por omissão ou abuso de poder de uma autoridade ou órgão público.
Problema e solução
“Cheguei a encontrar receita solicitando Omeprazol [remédio para úlceras] e anticoncepcional. Recordo de que em algumas poucas receitas o valor dos medicamentos solicitados era alto”, conta a pesquisadora. A situação atual está consumindo fatias inaceitáveis do orçamento do município. Pessoas de renda mais alta que não frequentam o sistema público consomem mais dinheiro do que poderia ser usado para garantir o fornecimento gratuito de remédios relativamente baratos.
Os juízes e tribunais, ao decidirem favoravelmente aos autores das ações, cumprem o disposto no art. 196 da Constituição Federal – “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A solução do problema, segundo Ildelisa, passa pela formação dos juízes. “Eles precisam ter maior conhecimento sobre as questões de saúde”. Já há algumas medidas para amenizar o problema: em Ribeirão Preto funciona uma comissão interdisciplinar denominada Comissão de Análise de Solicitações Especiais. Sua função é permitir que a justiça consulte especialistas antes de tomar decisões, garantindo análises mais razoáveis aos casos. “No Estado do Rio de Janeiro, há o NAT (Núcleo de Assessoria Técnica), composto por uma equipe multidisciplinar que auxilia os magistrados no julgamento das demandas”, conta a advogada.
São Paulo também busca medidas alternativas. Foi assinado, em 2012, um termo de cooperação técnica entre o Governo do Estado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e a Escola Paulista da Magistratura. Sua finalidade é disponibilizar aos juízes bancos de dados na área da saúde. Para Ildelisa, além do termo técnico seriam necessárias outras medidas para garantir decisões judiciais razoáveis em casos de solicitação de medicamentos, como a atualização anual da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e o conhecimento dos programas e listas oficiais do SUS pelos envolvidos nos processos, além da criação de uma assessoria municipal de mediação na área da saúde.