Evento no RCGI reuniu especialistas para discutir o aumento do consumo do GN no Brasil, com foco no bem estar social.
Em workshop realizado no dia 12 de agosto na sede do Fapesp Shell Research Centre for Gas Innovation (RCGI), o professor Luis Antônio Bittar Venturi, coordenador de um dos projetos do Centro e docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), ao lado do advogado Diogo Martins Teixeira, especialista em direito aduaneiro e tributação indireta, falaram sobre as perspectivas do aumento do consumo do gás no setor residencial e os desafios regulatórios e tributários que o estabelecimento de um mercado pujante de GN ainda enfrenta no Brasil. O evento foi organizado pela equipe do RCGILex, ligada ao projeto 21 do RCGI e coordenada pela professora Hirdan Katarina de Medeiros Costa.
Em sua palestra “Perspectivas de expansão do uso do gás e seus impactos no bem-estar social”, Venturi focou os possíveis efeitos do aumento o uso do gás para a população brasileira, parte dos objetivos do projeto que ele coordena no RCGI (Projeto 28 – Análise do potencial de uso doméstico de gás integrado com o sistema elétrico na cidade de São Paulo). “O gás natural é considerado um combustível de transição para uma matriz mundial mais limpa e são muitas as evidências de que seu uso vem crescendo no mundo. Os dados disponíveis apontam que, entre os fósseis, o GN será o que mais aumentará sua participação nas matrizes energéticas de países que vêm substituindo o carvão. No Brasil, a tendência é que esse consumo cresça também, mas temos ainda entraves para que ele se estabeleça como uma opção nas residências”, resume o professor.
Para tentar estabelecer quais seriam os prós e os contras do aumento do uso do gás nas residências paulistanas, ele e sua equipe desenharam um cenário em que o consumo do gás nas residências da capital passasse dos atuais 27% (praticamente só seu usa o gás para cocção) para 50%, sendo os outros 50% de consumo de energia elétrica. Segundo Venturi, se todos os chuveiros elétricos fossem convertidos para chuveiros a gás, esse cenário já se materializaria. Nesse contexto, a equipe selecionou quatro variáveis: a vulnerabilidade energética das famílias; a sustentabilidade (com foco em emissões de GEEs); o custo das famílias com energia; e a viabilidade técnica da substituição de energia elétrica pelo gás nas residências.
“Descobrimos que a vulnerabilidade energética seria reduzida em 11% na cidade de São Paulo, caso as famílias usassem o GN na mesma proporção da energia elétrica. Portanto, a primeira variável é positiva para o gás. A segunda variável, não. Se houvesse aumento de 23% no uso de gás, haveria acréscimo de 2,5% nas emissões de CO2 na atmosfera na cidade de São Paulo. A terceira variável, os custos com energia, também foi favorável ao gás. As contas ainda não estão muito consolidadas, mas tomando-se por base um apartamento padrão em São Paulo – que tem uma conta de gás por volta de R$ 30,00 ao mês e de eletricidade por volta de R$110,00 – se fossem usados gás e eletricidade na mesma proporção, as contas com energia teriam uma redução da ordem de 7%”, resumiu Venturi, acrescentando que os cálculos da segunda e da terceira variáveis ainda estão em construção.
Viabilidade e segurança – Quanto à última variável – viabilidade técnica – ela ainda não foi endereçada pela equipe, mas de acordo com o professor, tem duas dimensões: a da infraestrutura e a doméstica, que devem ser trabalhadas juntas. Segundo Venturi, há um imenso potencial de ligar à rede existente residências que não se servem da rede de gás canalizado que passa na rua. Há, inclusive, segundo seu relato acerca de conversas com diretores da Comgás, a ideia de instalar “tomadas de gás” nas residências. “O problema é: vamos usar esse gás para quê? Se você for nas principais lojas de departamento do país, não vai achar eletrodomésticos movidos a gás.”
Venturi chamou a atenção também para recentes eventos de acidentes com gás natural em ambientes residenciais, e isso trouxe, para a equipe, a necessidade de trabalhar com uma outra variável: qual é a confiança que o paulistano tem para mudar para o gás natural canalizado? “Foram 15 fatalidades só esse ano aqui em São Paulo por causa de gás, famílias inteiras que morreram por vazamentos. Então, será que a rede passando na porta de casa é suficiente para fazer esse consumidor aderir ao gás de rua?”.
A professora Hirdan Medeiros complementou, afirmando que a Associação Brasileira pela Conformidade e Eficiência de Instalações (Abrinstal) fez uma pesquisa de campo em 2005 sobre como os responsáveis técnicos pelas obras – engenheiros, arquitetos e técnicos – lidavam com a questão da cultura do gás. “As normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) tratam disso há muito tempo. Tudo é muito bem estabelecido, a Abrinstal e a ABNT fornecem os parâmetros de segurança técnica. A questão é a fiscalização. Nos condomínios ainda há algum controle, mas nas casas é mais difícil”, admite a professora.
Desafios tributários – A introdução do GN no mercado doméstico, lembrou o segundo palestrante do dia, Diogo Martins Teixeira, dá-se de duas maneiras: a produção nacional e a importação de GN, tanto da Bolívia, via Gasbol, quanto de outros players, por meio Gás Natural Liquefeito (GNL). O palestrante dividiu as formas de negociação em “comercialização” e “distribuição”. A movimentação do GN ocorre basicamente via escoamento do GN produzido offshore, o transporte pelos gasodutos federais (NTS, Tag e TBG), a transferência e a distribuição, feita pela rede de distribuição dos estados.
“Os principais desafios tributários atuais da indústria do GN são: conflitos de competência, seja entre entes tributantes de mesmo nível (estado-estado, por exemplo), seja entre entes tributantes distintos (estado-município, principalmente); a falta de uniformidade da carga tributária entre os estados; e o gás natural usado para geração de energia elétrica, cuja distinção dos regimes de tributação, também relativos ao ICMS (Imposto Sobre Circulação de mercadorias e Serviços), gera confusão e cumulatividade, o que acarreta custo.”
Segundo ele, a Constituição Federal define a repartição das competências para cada ente tributante instituir seus tributos. “O principal foco está nos estados e no Distrito Federal, por conta do ICMS, mas há uma tendência de que os municípios tenham uma relevância maior, especialmente com o Novo Mercado de Gás, por conta de novos modelos contratuais e novas relações jurídicas que serão criadas ou aprofundadas com a saída da Petrobras como agente dominante do setor.”
Teixeira explica que, segundo a Constituição Federal, os conflitos de competência deveriam ser dirimidos por Lei Complementar – ou seja, até onde vai a capacidade tributária de estados e municípios – mas essa distinção não é feita com perfeição, o que atravanca a indústria.
Dois conflitos de competência merecem atenção especial, segundo o palestrante. O primeiro é relativo à importação de GN, tanto da Bolívia quanto em forma de GNL. Este é um conflito de competência entre estados. “E a questão aqui é: quem recolhe o ICMS na importação do GN? É o estado onde acontece a entrada do GN no Brasil, é no estado onde acontece o desembaraço aduaneiro, as formalidades aduaneiras, ou é o local onde o gás tem uma destinação comercial efetiva?”
De acordo com ele, a Constituição Federal diz que o imposto deve ser recolhido onde estiver localizado o destinatário da mercadoria, o destinatário jurídico, segundo entendimento do Supremo Tribula Federal (STF). A Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir) diz que é onde acontece a entrada física do bem. “São critérios completamente diferentes e aqui a Lei Complementar foi na contramão da Constituição. Mas ela não foi declarada inconstitucional.” Ele lembra que há certa dificuldade de determinar a “entrada física” do GN no gasoduto e que quando o legislador criou o requisito de “entrada física”, provavelmente estava imaginando um bem corpóreo, palpável.
“No caso do Gasbol, por exemplo, a Petrobras sempre recolheu o ICMS para o estado do Mato Grosso do Sul, pois é lá que acontece a entrada física e o desembaraço aduaneiro. E, de lá, ela faz a distribuição do gás. Mas os estados de São Paulo e Rio de Janeiro começaram a autuar os estabelecimentos que recebiam esse gás natural e que o consumiam, alegando que o gás só entrara fisicamente em algum estabelecimento para uso final nesses estados, e não no Mato Grosso do Sul, onde ele nunca saíra do gasoduto de transporte da TBG”, revelou Teixeira.
Diante da celeuma, a Petrobras ajuizou ações civis ordinárias no STF e atualmente existem liminares, ou seja, decisões precárias, que inviabilizam a lavratura de auto de infração por esses estados destinatários do GN e que asseguram a tributação para o Mato Grosso do Sul. “Com base em outros precedentes vinculados às cargas físicas, o STF adota uma linha de que o que importa é o destinatário jurídico: a empresa que fez a operação de importação, que pagou pela importação, ainda que ela venha a revender o produto sem que este sequer entre em seu estabelecimento, o que é mais razoável ainda no caso de uma mercadoria como o GN, que como regra não é estocada.”
Segundo ele, este é um problema grave que os importadores terão de encarar. Teixeira se refere aos vários projetos de importação de GNL que estão em estudo e que poderão também se confrontar com essa pendência regulatória.
Novo Mercado de Gás – O outro conflito de competência envolve estados e municípios, e tende a se agravar com a saída da Petrobras da cadeia do gás. “Aqui elas dizem respeito, principalmente, ao compartilhamento de infraestruturas – sobretudo de regaseificação, processamento e tratamento. Atualmente a Petrobras compra o gás e usa as estruturas de processamento e tratamento, das quais ela é titular, trata o gás e revende. Não existe bilateralidade nas atividades de regaseificação e processamento. Com a abertura do mercado, essas infraestruturas serão vendidas a terceiros e existem projetos de construção de novas UPGNs, e essas infraestruturas serão usadas na forma de prestação de serviços de terceiros.”
Segundo ele, a Resolução 16, que institui o Novo Mercado de Gás, não proíbe que o dono da molécula seja também dono de uma UPGN, por exemplo. “O foco da 16 é permitir o livre acesso. Entretanto, evidentemente, se um agente é produtor da molécula e também dono das unidades de processamento, é difícil não monopolizar o acesso quando a cadeia é verticalizada. É esse ponto que ainda está em aberto: não se sabe como a ANP o Ministério de Minas e Energia irão regulamentar esse livre acesso e esse controle das estruturas.”
Assim, é possível que o acesso de terceiros à infraestrutura de gás natural também seja fonte de judicialização. “Existe a possibilidade de agravamento de conflitos de competência devido ao acesso de terceiros a infraestruturas essenciais, principalmente processamento e regaseificação”
Uniformidade e geração de energia elétrica – Teixeira citou ainda a grande disparidade de cargas tributárias de ICMS entre os estados, tanto no tocante à diversidade de alíquotas nominais quanto à diversidade de carga tributária efetiva em razão de benefícios fiscais ou regimes especiais de tributação para o GN, como desafios que o Novo Mercado de Gás terá de enfrentar.
No que concerne ao gás para gerar energia elétrica, ele mencionou a tributação em cada atividade da cadeia, inclusive no transporte, como o principal gargalo tributário do setor. “Neste caso, o ICMS se torna cumulativo. O efeito desse custo na cadeia pode variar de 7% a 25% (nominal), ou de 10% a 33% (efetivo). Nesse sentido, o uso do GN se distingue de outros processos industriais em que o ICMS incidente sobre os insumos é compensado, sendo um redutor de custos.”
De acordo com o advogado, uma das maneiras de minimizar esses impactos seria a desoneração nas sucessivas saídas internas e interestaduais e das prestações de serviço de transporte de GN destinadas à UTEs.