Desafio é fazer com que o gás natural seja mais valioso como ativo no mercado do que como catalisador na produção de petróleo.
Como consequência do regime de partilha de produção, instituído na esteira da descoberta do pré-sal, a União se prepara para comercializar petróleo e gás natural pela primeira vez. No regime de partilha, a União recebe parte de seu quinhão em óleo excedente (petróleo e gás), o que obriga o Estado a encontrar mecanismos para comercializar esses ativos. Até agora, há contratos desse tipo apenas em Libra, única área do pré-sal já licitada, na qual 1.548 km² foram contratados em regime de partilha de produção. Mais oito contratos do gênero serão licitados até o final do ano, quando acontecem a segunda e a terceira rodadas de licitação do pré-sal, em outubro.
O pré-sal jurídico é um polígono de 150 mil km², dentro do qual todos os novos contratos de exploração e produção têm de se dar no regime de partilha. Mas, conforme lembra Olavo Bentes David, consultor jurídico da Pré-sal Petróleo (empresa criada em 2013 para gerir os contratos de partilha), nem todas as operações que acontecem nesse perímetro funcionam necessariamente no regime de partilha. Há contratos mais antigos, que abrangem objetivos no pós-sal, em regime de concessão ou cessão onerosa. E há ainda acumulações (do pós-sal) que talvez fossem mais atrativas aos investidores e mais lucrativas ao País se manejados no sistema de concessão – já que o sistema de partilha só é indicado para regiões de alta produtividade e baixo risco.
Em uma entrevista exclusiva, David conversou com o RCGI sobre as possibilidades e o futuro do gás natural do pré-sal.
RCGI – Como você avalia o aproveitamento do gás de partilha no contexto da possibilidade de uso do gás natural como um potencial instrumento de aumento de competitividade para a indústria nacional?
David – A comercialização do petróleo e do gás da União está submetida aos ditames de uma política de comercialização proposta pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e aprovada pelo Presidente da República. A atual política reza que a Pré-Sal Petróleo deve procurar o melhor retorno econômico e financeiro, o melhor preço possível, para o petróleo e o gás da União. É possível usar o gás natural como ferramenta de ganho de competitividade da indústria? A meu ver, é sim. Mas isso tem de ser definido como política. Neste momento, não é assim. Isso pode ser totalmente diferente daqui a alguns anos, dependendo da política que se implemente. Pode mudar.
RCGI – Você afirma que o regime de partilha é mais apropriado para situações de menor risco geológico (já que os riscos e custos são indiretamente arcados pelo hospedeiro). Duas perguntas: risco geológico e risco exploratório são a mesma coisa? Como os players lidam com esses riscos?
David – Risco geológico é o risco de investir, perfurar, explorar e não encontrar nada. O risco exploratório é o maior dos riscos geológicos, ou seja: a maior parte dos riscos geológicos é exploratório. No mundo, a taxa de sucesso exploratória é de 10% a 15%. Mas, no pré-sal, gira em torno de 50%, o que é uma imensa vantagem. Diante de taxas de insucesso tão altas, as companhias petrolíferas, depois da segunda crise do petróleo, passaram a trabalhar mais e mais em parceria, em consórcio. E isso por várias razões, mas o raciocínio básico é: como o risco de sucesso é baixo, é melhor, para a companhia, ter um portfólio de mil ativos em parceria com outras companhias do que ter um portfólio de dez ativos só dela.
RCGI – Segundo suas próprias palavras, no regime de partilha a intervenção estatal ultrapassa a regulação, atingindo as decisões de cunho operacional do detentor de direitos de exploração e produção. Na ausência de um mercado robusto de gás natural, como é o caso do Brasil, a intervenção estatal que vai além da regulação é algo bom ou ruim para o setor gasífero? Por que?
David – Partilha só é bom quando o risco geológico é menor que o usual, que é o caso do pré-sal. No regime de concessão, a União não corre riscos: todo o risco é da oil company. No regime de partilha, a União não tem riscos nem custos durante a exploração. Mas, a partir da declaração de comercialidade da descoberta, o Estado assume os custos. É isso que, aliado à flexibilidade fiscal, torna o regime de partilha de produção mais atrativo quando o risco geológico é baixo e a produtividade (rentabilidade) alta.
RCGI – Qual seria, em sua opinião, o grande desafio da União para comercializar o gás do pré-sal?
Os desafios são muitos, então vou destacar alguns. Primeiro: neste momento inicial, os volumes de gás de que a União vai dispor são muito pequenos, muito incipientes. Com um volume muito pequeno, é difícil promover leilões atrativos. Outra questão: o gás de Libra tem uma altíssima concentração de CO2. Isso dificulta o processamento e o tratamento primário do gás natural, mas facilita a reinjeção, melhorando a produção de petróleo quando o gás é reinjetado. De modo que a forma mais econômica de se explorar Libra, hoje, é reinjetando o gás. A Pré-Sal Petróleo, junto com os demais consorciados, vem trabalhando arduamente para encontrar possibilidades de haver economicidade para a produção do gás. E creio que teremos sucesso.
RCGI – Então é preciso provar a viabilidade econômica desse gás.
David – Basicamente, temos de mostrar que esse gás é mais rentável se for vendido do que se for reinjetado. E também é preciso desmistificar a expectativa de que vai haver uma enorme quantidade de gás em 2018, 2019… A expectativa é que tenhamos muito gás, sim. Imagino que, em meados da década de 20, deveremos ser um grande player. Mas, até lá, existem inúmeros desafios, entre eles o da reinjeção. O gás tem de ter um valor de mercado maior do que o que ele tem como catalisador da produção de petróleo.
RCGI – Qual é o grande desafio de gestão dos contratos de partilha para a Pré-Sal Petróleo?
David – Em primeiro lugar, são contratos de 35 anos de duração, improrrogáveis, o que não é uma prática costumeira na indústria: geralmente, esses contratos são prorrogáveis (até porque a empresa, sabendo que só terá os 35 anos, pode deixar, naturalmente, de investir na infraestrutura de produção nos últimos anos.). Bom lembrar que o fato de os contratos serem improrrogáveis não quer dizer que não possam ser suspensos. Os contratos de Libra terminam em 2048. Os contratos do pós-sal da Bacia de Campos, mais antigos, estariam terminando em meados da década de 2020. Boa parte já está sendo prorrogada. Mas o maior desafio da Pré-Sal Petróleo, eu diria, foi a formação e a manutenção de um quadro idôneo, capacitado e respaldado pela indústria. A empresa foi criada há menos de 4 anos, em novembro de 2013. No dia 2 de dezembro de 2013 foi assinado o primeiro contrato de partilha. Ou seja: de uma hora para outra a empresa precisou dialogar, em pé de igualdade, com os grandes players do mercado internacional. Não tivemos tempo de formar e amadurecer o pessoal. Então a formação do corpo técnico – tanto para atividades fim quanto para atividades meio – foi um grande desafio. Mas o esforço tem valido a pena. A empresa atravessou dois governos de linha ideológicas opostas e formou e manteve um quadro de pessoal extremamente qualificado e reconhecido pela indústria do petróleo
RCGI – Toda a estrutura de transporte e beneficiamento de gás natural existente no Brasil foi construída pela Petrobrás. E as companhias privadas não têm livre acesso a boa parte dessa estrutura. Por que a construção de estruturas como, por exemplo, gasodutos de escoamento, ainda não é um negócio e o que é preciso fazer para que ela vire um bom negócio?
David – Quanto ao livre acesso à infraestrutura construída pela Petrobrás, é uma questão delicada. Realmente, foi a Petrobrás que construiu tudo: os gasodutos de acesso, os de transporte, as unidades de processamento e tratamento. De toda essa estrutura, as outras empresas só têm livre acesso aos gasodutos de transporte. Os de escoamento e os de transferência, bem como as Unidade Processamento de Gás Natural (UPGN), são de uso exclusivo da Petrobrás. Agora, o fato dos gasodutos ainda não configurarem “um bom negócio” pode ser explicado por diversos motivos: não temos um mercado robusto para o gás, não temos cultura de uso de gás, e há um monopólio de fato construído ao longo de muitas décadas que, em minha opinião, não pode ser visto simplesmente como algo negativo. Isso porque, como já falei, nenhuma empresa, além da Petrobrás, construiu um quilômetro de gasoduto nesses anos todos no País. E o gás não é uma commodity: não se consegue armazená-lo. É preciso produzir, escoar, transportare consumir imediatamente.
RCGI – A Lei do Gás facilitou ou dificultou o endereçamento dessas questões?
David – O problema não é legal. A Lei do Gás trouxe avanços, mas não resolve tudo. É um problema de planejamento, e de difícil solução, porque envolve uma miríade de setores que têm interesses e que têm de estar envolvidos com a questão. O fato é que todo esse conjunto de fatores estruturantes precisa de um planejamento estatal. Os EUA, que hoje têm uma rede de gasodutos extremamente capilarizada, se utilizaram largamente de intervencionismo estatal na formação da na rede de dutos. Por isso eu penso que iniciativas como o Gás para Crescer são importantes: porque endereçam essas questões, de forma sistemática, entre os variados players.
RCGI– Tecnologicamente falando sabemos, até pelas pesquisas feitas pelo RCGI, que há opções para viabilizar esse gás. Em sua opinião, quais são as mais promissoras?
David – Há, sim, tecnologias sendo pesquisadas que poderiam ajudar a viabilizar o gás do pré-sal. Começando pelo mais óbvio, em primeiro lugar temos os gasodutos. A seu favor eles têm vários fatores, entre os quais grande capacidade de vazão e pouca necessidade de manutenção. Sem contar que é uma infraestrutura de longo prazo. Mas sua viabilidade depende da topografia do leito oceânico e eles têm baixa flexibilidade, ou seja: um aumento de capacidade limitado. A segunda tecnologia que eu destacaria são as plantas de FLNG (Floating Liquefied Natural Gas), capazes de produzir, liquefazer e armazenar gás natural em alto mar, e de transferir o gás natural liquefeito (GNL) para o continente. Elas não necessitam de investimentos pesados e são alternativas econômicas para grandes reservas e longas distâncias do mercado consumidor. Mas ainda não há FLGNs em funcionamento no mundo. E, tecnologicamente, elas representam um grande desafio técnico a vencer, que é a liquefação do gás em um navio em movimento. No caso de Libra, em que o gás tem alta concentração de CO2, o desafio é ainda maior. Temos também as Usinas Termoelétricas Flutuantes (Floating Gas-to-Wire – FGTW). Neste caso, o Capex é bem alto e há necessidade de desenvolver cabos de transmissão submarinos a 3 mil metros da lâmina d’água. É algo ainda inusitado em águas profundas. Como é uma tecnologia muito recente, há uma certa dose de incerteza quanto à manutenção das estações. É o tipo de empreendimento que exige desenvolvimento de mercado e exposição a risco empresarial. Também há incerteza quanto à estabilidade do suprimento. Ou seja: é um modelo altamente complexo, com tecnologia ainda não provada e alto nível de incertezas.
RCGI – Você chama a atenção para o fato de não termos leilões na Bacia de Campos desde 2005. Em sua opinião, por que isso aconteceu e como essa decisão impacta a política desenhada para os próximos anos para o setor de petróleo e gás?
David – A questão é que o polígono do pré-sal abrange tanto o pré-sal geológico quanto o pós-sal geológico. A Bacia de Campos está quase toda dentro do polígono do pré-sal, só que ela é, majoritariamente, de pós-sal. Por conta da uma indecisão política, resolveu-se não licitar durante muitos anos o que estava dentro do polígono do pré-sal. Só que, além do pré-sal, ali existia o que tínhamos de melhor a ofertar: a Bacia de Campos sempre foi nossa bacia mais prolífera, desde o início dos anos 80 até a descoberta do pré-sal. Entretanto, no pré-sal jurídico, por lei, só se pode contratar em regime de partilha. Sabe-se que o regime fiscal da partilha de produção não é adequado ao pós-sal da Bacia de Campos. Estamos falando de uma zona confusa, entre o pré-sal jurídico e o pré-sal geológico. Isso terá de ser resolvido de alguma maneira. Eu creio ser urgente uma alteração legal que abandone o conceito de área do pré-sal – justamente os 150 mil km² – e utilize um conceito que já existe, que é o de “áreas estratégicas”. Elas podem ser criadas ou extintas por resolução do CNPE. Assim, uma área que tem um ótimo potencial poderia ser colocada em regime de partilha de produção e uma área que tem um risco geológico maior poderia ser licitada em regime de concessão.
Quanto aos impactos, eu diria que, se queríamos investimentos, conteúdo local, enfim, usufruir da melhor maneira dos benefícios dessa imensa riqueza, não poderíamos ter feito o que fizemos: não ofertamos nenhum bloco em 2008 (na décima rodada), em 2013 (na décima primeira e na décima segunda rodadas), nem 2015 (na décima terceira). A primeira oferta de partilha aconteceu só em 2013, mas só um bloco foi ofertado: Libra. Ou seja: além de Libra, o último bloco arrematado dentro da área do pré-sal jurídico foi em 2005, quase 11 anos atrás, na sétima rodada de licitações. Isso desestimula os investidores e o mercado. Agora, as rodadas estão sendo retomadas. Até 2019, estão programados 9 leilões, tanto em regime de partilha quanto de concessão.