Ação & Interação – O primeiro dia do resto de suas vidas

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O primeiro dia do resto de suas vidas.

Ana, que via tantas diferenças entre o Ensino Público e Particular e apesar de todas as adversidades que sofreu durante seu período letivo na Educação Pública do Estado de São Paulo, conquistou uma vaga para Psicologia, no Instituto de Psicologia da USP.

Marcos, que sonhava em ter uma escola melhor, morreu aos 22 anos após entrar para o tráfico na esperança de conseguir cuidar de sua família, o que “funcionou” entre seus 16 anos até seus 22, quando duas balas atravessaram seu peito em confronto direto com a polícia. Ele morreu em uma viela do Rio de Janeiro, com arma em punho e sonhando com a escola que nunca teve.

Flávia, a professora de Biologia que lutou para conquistar seu lugar no ensino e na vida dos alunos para quem lecionou, deu aula até os 60 anos na rede pública de São Paulo, tendo migrado para ETEC aos 42 anos e aos 54 começou a perder a voz, de forma que ela precisou comprar um microfone, para que poupasse suas cordas vocais.

Matheus, que foi inspirado pelos professores que lhe despertaram o interesse nos estudos, correu atrás de seus sonhos, entrou na faculdade, se desdobrou arduamente entre dois empregos, e em 4 anos ganhou o diploma que sonhou e almejou, e de sua cabeça e de seu coração, a gratidão por aqueles que lhe motivaram e incentivaram, era enorme e pulsante.

Carol, que sofreu com o ambiente familiar em sua infância e fez Pedagogia na faculdade, se tornou professora do 1º e 2º ano do Fundamental, casou, formou uma família, fez pelos filhos e pela esposa o que seus pais nunca fizeram por ela. Na escola onde dava aula, cativou e cuidou dos seus alunos, na esperança de que se algum dia um deles precisasse de ajuda ou inspiração, iria até ela, como ela se espelhou em seus professores um dia. Aos 35 anos, ela tentou defender um aluno de 7 anos do pai, foi esfaqueada por este, lutou por sua vida, e voltou a cuidar das suas crianças e da sua família, com mais garra do que jamais teve.

O primeiro passo do João aos 2 anos de idade; a primeira conta certa que Márcia fez foi seu primeiro dia de vida; Kauany quando observou seu jardim, acordou; Evandro ao ler seu primeiro livro se descobriu; William passou a viver quando olhou Janaina.

Eu, você, nós.

Movidos pela força motriz do que é viver a Educação, seja ela como e onde for, desde que seja o ponto chave para que exista o respeito, a igualdade, a compreensão e a harmonia de uma sociedade que sabe e vive a pluralidade de ideias, ideais e seres que dela se constituem.

Histórias como essas acontecem aos montes, mesmo as exceções que conseguem concluir o ensino básico, entrar na universidade e construir uma carreira, mas a regra ainda permeia para aqueles que não concluem o ensino de boa qualidade, que vivem à margem de uma realidade que não existe ensino técnico, que não existe universidade pública, que não existe um bom emprego, uma boa estabilidade.

Ainda encontramos indicadores que mostram que nem todos os estudantes concluem o ensino e ingressam diretamente na universidade. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (SIS-IBGE 2019), a rede privada coloca o dobro de alunos no ensino superior em relação às escolas públicas. Ainda que exista o ingresso na universidade, os indicadores apontam que apenas 36% dos alunos que completaram o ensino médio na rede pública entraram em uma faculdade.

O percentual dobra e chega a 79,2% somente quando os estudantes vêm de escolas privadas. Em relação às classes sociais, a diferença é ainda mais notória e triste. De acordo com a pesquisa, a maior parte dos estudantes em faculdades é formada pela parcela da população com um quarto da renda per capita mais alta do país.

Com o rendimento domiciliar per capita, que é a divisão dos rendimentos domiciliares pelo total dos moradores, o último balanço do indicador mostra que o rendimento domiciliar per capita do Brasil se encontra em R$ 1.268. E equilibrar as contas com este rendimento é um desafio para muitos brasileiros para conseguir a manutenção em uma instituição particular. No entanto, a manutenção de quem opta pelo ensino privado, recorre quase sempre para o financiamento estudantil. O percentual de auxílio financeiro em 2018, com o programa de Financiamento Estudantil (FIES) responde por mais da metade das matrículas brasileiras, com 52%.

Dentro da USP, a desigualdade ainda é maior, o ingresso de estudantes, por exemplo, no vestibular de 2016, aprovou 34,6% alunos da rede pública de ensino. Ao analisar como esse número se reflete em cada uma das 42 unidades de ensino e pesquisa da USP, esse percentual revela uma grande variação.

Enquanto algumas unidades já têm metade dos egressos da escola pública, outras ainda estão com o porcentual abaixo do esperado. É o caso da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC), onde apenas 14,1% dos calouros cursaram o ensino médio na rede pública. A Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) também apresentou baixo percentual de ingressantes de escola pública: 17,5%. O Instituto de Química de São Carlos (IQSC) obteve o terceiro pior resultado: 18,3%. A exceção se concentra no extremo da universidade, da qual poucas unidades atingiram o percentual de 50% dos seus estudantes oriundos da escola pública. A Faculdade de Educação (FE) apresentou o índice de 55,6%, seguida da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP), com 51,6%, e a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), com 50,8%.

Algumas medidas foram adotadas na universidade, como a implementação de cotas sociais e raciais na universidade. Mesmo após resistir por décadas em adoção do sistema de cotas raciais, a USP finalmente cedeu em 2018, através das congregações das unidades e do Conselho Universitário, e introduziu políticas afirmativas na Fuvest 2018 e no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o que ajudou a diversificar mais o ingresso de camadas sociais historicamente esquecidas.

Por fim, é importante relembrar a luta de garantir uma educação pública e de qualidade, uma melhor remuneração para os professores e a implementação de políticas públicas e equipamentos que possam transformar o ensino. É possível sonhar com uma escola pública de qualidade, uma escola que revolucione e garanta mais Anas, Flávios, Josés, Marias, entre outros muitos jovens que só precisam de oportunidade de sonhar, de imaginar uma vida melhor, para não só os mesmos, mas para suas famílias, para suas comunidades e para sociedade. A luta é árdua, é difícil, mas não é impossível. É uma luta minha, nossa, de todos.

Eu, você e nós.

 

* Textos por Leonardo Assarito e Tiago César

* Arte por Tamirys Mendes

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