O verbo ‘cuidar’ está em crise

“Civilizar a Terra, transformar a espécie humana em humanidade torna-se o objetivo fundamental e global de qualquer política que aspire não só ao progresso, mas também à sobrevivência da humanidade.”
(Edgar Morin)

Segundo o relatório da OMM (Organização Meteorológica Mundial) sobre o Estado do Clima na América Latina e no Caribe, 2023 foi o ano mais quente já registrado. O documento também observa que o nível do mar na região atlântica elevou-se a um ritmo mais acelerado do que a média global, comprometendo cidades costeiras. Adicionalmente, o relatório enfatiza a importância de melhorar as previsões meteorológicas e de antecipar a emissão de avisos para salvaguardar vidas.

Nunca foi tão urgente compreender as dimensões relacionadas ao verbo cuidar. Esse verbo está associado a zelar, guardar, preocupar-se, tratar e curar. Por vezes, seu significado tem sido negligenciado desde a pandemia e, mais recentemente, nos enfrentamentos relacionados à crise climática, vivenciada nas inundações ocorridas no Rio Grande do Sul.

Outro dado importante a ser considerado está relacionado à saúde e ao clima. De acordo com projeções mencionadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas poderão resultar em cerca de 250.000 mortes adicionais por ano, devido a fatores como subnutrição, malária, diarreia e estresse térmico. Além disso, estima-se que os custos diretos para a saúde devido a esses danos fiquem entre US$ 2 bilhões e US$ 4 bilhões anualmente até 2030. As regiões com infraestruturas de saúde mais frágeis, especialmente em países em desenvolvimento, enfrentarão maiores dificuldades sem apoio externo adequado para preparação e resposta.

Em artigo recente publicado no jornal Nexo Políticas Públicas, Pedro Jacobi e Eduardo Gresse (2024) destacam a relevância das eleições municipais e do controle social no combate à crise climática, dada a proximidade com as comunidades afetadas. No Brasil, apesar do engajamento de municípios em redes de ação climática desde a elaboração de planos para mitigação e adaptação às mudanças climáticas, são poucas as cidades que implementam ações concretas. Mesmo as cidades pioneiras, como São Paulo, estão distantes de alcançar um modelo de desenvolvimento sustentável e resiliente às mudanças climáticas.

Compreendendo que as cidades são potencialmente os locais para o resgate do cuidar, e com a proximidade das eleições municipais, que ocorrerão em 2024, não há mais como evitar que essa temática seja o alvo das discussões para o enfrentamento das perdas e danos já evidentes nos contextos socioambientais.

O “cuidar” reflete essa necessidade diante do sistema mundial atual, acometido pelas policrises multidimensionais que atravessamos, como mencionado por Edgar Morin (2020) em seu ensaio “É hora de mudarmos de via, as lições do Coronavírus”. Mas para que tais mudanças ocorram, será necessária uma mudança sistêmica e paradigmática nas dimensões política, econômica, social, cultural e afetiva, com ênfase na regeneração da biosfera, ou seja, na regeneração da vida.

Nesse sentido, torna-se cada vez mais necessária a capacidade de identificarmos as forças de mudança contrárias à destruição planetária, traçar as novas possibilidades de reinventarmos o futuro que queremos diante da crise climática, que ficaram ainda mais nítidas a partir da pandemia ocasionada pela Covic-19, que acelerou os processos de mudanças e nos colocou em xeque quanto aos impactos do nosso processo civilizatório até então (Jacobi et al., 2022).

Diante de tais perspectivas, é preciso tratarmos do impacto da ação humana sobre o planeta, nos conscientizarmos do nosso enraizamento cósmico-biológico enquanto seres humanos e reconhecermos que todos nós somos integrantes do planeta e, por isso, somos todos agentes construtores do futuro.

Compreendendo que as cidades são potencialmente os locais para o resgate do cuidar, e com a proximidade das eleições municipais, que ocorrerão em 2024, não há mais como evitar que essa temática seja o alvo das discussões para o enfrentamento das perdas e danos já evidentes nos contextos socioambientais

Ao refletirmos sobre essas dimensões acerca das cidades sob a óptica do que vem sendo observado no “Cidades Afetivas”, um observatório dos movimentos afetivos que ocorrem nas cidades, sob os princípios do bem viver, convivialismo e da vida em comum, princípios que enfatizam a harmonia entre os indivíduos e o ambiente, visando não só ao bem-estar individual, mas também ao coletivo, destacamos que a dimensão afetiva e a implementação desses princípios em políticas urbanas podem ser transformadoras.

Nessa perspectiva, é possível identificarmos a ansiedade climática como uma preocupação crescente relacionada aos impactos emocionais das mudanças ambientais. No artigo “Climate anxiety: Psychological responses to climate change” (“Ansiedade climática: Respostas psicológicas às mudanças climáticas”, tradução livre), publicado no Journal of Anxiety Disorders por Susan Clayton em 2020, destaca-se a necessidade de atenção clínica para esse fenômeno. A ansiedade climática é descrita como uma resposta legítima às ameaças percebidas, sendo influenciada pela intensidade e pela frequência crescentes de eventos climáticos extremos e mudanças graduais no ambiente, tais como aumentos na temperatura média, elevação do nível do mar e alterações nos padrões de precipitação, agora reconhecidos como um problema que também afeta profundamente o bem-estar humano. Seus impactos vão desde ameaças à saúde física, como o calor e a propagação de doenças transmitidas por água e vetores, até os efeitos de desnutrição, desastres naturais, migração forçada e conflitos — fenômenos que estão interligados às mudanças climáticas. Além disso, grupos vulneráveis, como povos indígenas, idosos, crianças e pessoas com problemas de saúde preexistentes, enfrentam riscos maiores devido à maior exposição e à falta de poder político ou econômico.

Clayton (2020) enfatiza que as consequências da saúde mental relacionada à ansiedade climática poderão aumentar, como depressão, abuso de substâncias, violência doméstica, além de afetar o comprometimento cognitivo em idosos ou problemas comportamentais (relacionados à impulsividade e problemas de atenção) em crianças, uma vez que são mais vulneráveis aos seus efeitos devido à capacidade de autorregulação térmica no caso de calor excessivo, por exemplo.

Considerar a afetividade como uma componente central no planejamento urbano pode transformar as cidades em espaços mais acolhedores e resilientes, onde o bem-estar coletivo e individual caminham lado a lado com o desenvolvimento sustentável.

A pesquisa “Cidades Afetivas do local para o global: aplicação e elaboração de métricas para mensuração de indicadores de Cidades Afetivas na Prefeitura do Campus USP da Capital (PUSP-C)”, conduzida por Vivian Aparecida Blaso Souza Soares César e supervisionada pelo professor Pedro Roberto Jacobi, que ainda está em fase de desenvolvimento, vem trabalhando nessa direção de abarcar, por meio de indicadores de afetividade, quatro metadimensões: Saúde e Bem-Estar, Relações de Afetividade e Convivialidade, Engajamento Social e Sustentabilidade e Dimensão Cultural e Ambiental. Estas são condicionantes fundamentais para a coconstrução de bioterritórios regenerativos, resilientes e saudáveis que, analisados em conjunto, oferecem uma visão abrangente sobre como diferentes aspectos da vida urbana contribuem para a construção de uma “cidade afetiva”, na qual a afetividade é valorizada como parte essencial da experiência urbana, promovendo um ambiente mais acolhedor e inclusivo para todos os seus habitantes.

O foco em afetividade como uma métrica de qualidade de vida urbana destaca a necessidade de abordagens integrativas que considerem o bem-estar emocional e social como componentes centrais do planejamento e da gestão das cidades. A implementação de suas recomendações poderá levar a um ambiente urbano mais inclusivo e solidário, alinhado aos valores de bem viver, convivialismo e vida em comum, resgatando os princípios da ética do cuidado de si e dos outros, como diz Edgar Morin (2023) em seu ensaio “Despertemos! Um chamado para o despertar das consciências!” – “uma política plenamente humanista”, que incorpore, por exemplo, a despoluição e cuidado das águas, a dimensão urbana que abarque a convivialidade, a dimensão energética que priorize as matrizes limpas e renováveis, a política agrícola que priorize a agricultura sustentável, a economia que priorize a solidariedade, a educação que incentive o enfrentamento dos problemas vitais e uma política civilizacional que priorize o reconhecimento da plena humanidade do outro.

Nesse contexto, a afetividade é essencial como uma força transformadora que poderá remediar as falhas de um sistema por vezes focado apenas no crescimento econômico e eficiência. O “cuidar” deve ser visto não apenas como um ato ou uma responsabilidade, mas como uma habilidade a ser cultivada e uma qualidade a ser valorizada em todos os níveis da sociedade. Resgatar o verdadeiro significado de cuidar é uma resposta que se faz cada vez mais necessária e urgente para as crises emocionais, sociais e ambientais que enfrentamos hoje.

A crise do cuidar é, portanto, um chamado à ação para todos nós, um lembrete de que a regeneração de nossos ambientes começa com a regeneração de nossas atitudes e práticas. A dimensão afetiva, portanto, não deve ser negligenciada, pois sem ela não nos tornaríamos humanos, tampouco teríamos avançado em termos de conhecimento e ciência. É graças à afetividade que é possível imaginarmos um mundo novo, construirmos utopias e criarmos sentidos coletivos para a vida.

É por meio da afetividade que podemos experimentar novidades através dos sentidos, como Antonio Damásio (2010) destacou em sua obra O Cérebro Criou o Homem, onde ressalta que a afetividade permite uma conexão profunda com o ambiente e com os outros seres, o que é essencial para a sobrevivência da espécie humana, uma vez que formamos nossos laços sociais e criamos estruturas comunitárias que sustentam não apenas a ordem social, mas também nosso bem-estar emocional e físico, base das sociedades e culturas que nos conectam em escala planetária.

Dessa forma, fica evidente que cuidar dessa dimensão em nossas cidades e políticas urbanas não é apenas uma questão de melhorar a qualidade de vida, mas uma necessidade evolutiva e existencial para o futuro da nossa espécie.

BIBLIOGRAFIA

Clayton, Susan. Climate anxiety: Psychological responses to climate change. Journal of Anxiety Disorders, v. 74, 2020, p. 102263. ISSN 0887-6185. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.janxdis.2020.102263.

Jacobi, P. R.; Monteiro, R. de A.; Blaso, V.; Ortiz, S. R. M. (orgs.). Diálogos urgentes em tempos de incerteza e múltiplas crises. São Paulo: IEE-USP, 2022. Recurso digital.

Morin, Edgar. Despertemos! Um chamado para o despertar das consciências. Trad. de Ivone C. Benedetti. 1. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2023. Recurso digital.

_______; Aboulessalam, Sabah…



Vivian Aparecida Blaso Souza Soares César é pesquisadora colaboradora IEA/USP Cidades Globais.

Pedro Roberto Jacobi é supervisor do IEA/USP (Instituto de Estudos Avançados).

Publicado originalmente em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2024/05/24/o-verbo-cuidar-esta-em-crise