Site da USP
Fale conosco

O Espelho Na Tela

O meu duplo, antigo conhecido do espelho, invadiu o computador e agora me acompanha estranhamente para além dos limites íntimos que eu antes conhecia. A cada encontro virtual uma opção nos é dada: abrir ou não a câmera. Dividir ou não a imagem? 

 

Não há dúvida de que ser visto é essencial, afinal é assim que sabemos estar presentes, é como estávamos acostumados. Self, corpo, imagem, tudo junto e misturado num lugar combinado previamente com os outros. Assim parece fácil, se a distância imposta já nos tira a fisicalidade dos encontros, por que perder algo a mais? Preservemos pelo menos a imagem, as expressões! Mesmo no silêncio, mesmo que ninguém diga nada, os rostos consolam, fazem companhia, falam sem abrir a boca, respondem o momento, reagem ao sentir. É um afago para outro que fala de frente pra tela, tenha empatia!

 

Não é tão simples assim.

 

Quero mesmo que os outros me vejam? Na minha própria casa? Não abro a porta para ninguém assim tão fácil. Se a imagem é minha sou eu quem decido o que fazer com ela, é minha privacidade, minha intimidade! O que é que vão pensar de mim? Pior de tudo é que me vejo, me observo enquanto estou ali, naquele momento em particular. Meu próprio olhar me assombra, me olha como se soubesse de todos os meus segredos. Não posso nem me arrumar, é preciso desconsiderar momentaneamente as imperfeições pra poder estar lá, naquele encontro. Não dá, isso é demais! Melhor desligar, ficar mais confortável. Preciso prestar atenção, preciso estar mais presente e essas questões todas me atrapalham. É melhor ser invisível. 

 

Observo aos poucos os novos sentidos de tudo aquilo que diz de mim. Meu reflexo, minha casa, meus companheiros, minha família. A dúvida daquilo que antes era ordinário mostra agora um novo lado da minha percepção, da minha realidade. 

 

O reflexo convoca as perguntas: onde é que eu estou? O que é que eu sou?  

 

Texto por André Ferreira Bezerra

 

Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e… não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir…

Trecho do conto “o Espelho” de Machado de Assis.