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Cuba

CUBA

Fernando Martínez Heredia (texto original da versão impressa)

Emir Sader (texto de atualização do verbete, 2006-2015)

Nome oficial República de Cuba
Localização Caribe, entre o mar do Caribe e o oceano Atlântico norte, ao sul do Estado da Flórida (EUA)
Estado e Governo¹ República socialista
Idiomas Espanhol (oficial)
Moeda¹ Peso cubano
Capital¹ Havana
(2,136 milhões de hab. em 2014)
Superfície¹ 110.860 km²
População² 11,28 milhões (2010)
Densidade demográfica² 102 hab./km² (2010)
Distribuição 
da população³
Urbana (76,60%) e
rural (23,40%) (2010)
Analfabetismo¹ 0,2% (2015)
Composição étnica¹ Brancos (64,1%), mestiços (26,6%),
negros (9,3%) (2012)
Religiões⁴ Católica romana (39,4%), ateus (6,4%),
evangélicos (3,3%),afro-cubanas (50,9%)
PIB (a preços constantes de 2010)⁵ US$ 69,99 bilhões (2013)
PIB per capita (a preços constantes de 2010)⁵ US$ 6.199,2 (2013)
Dívida externa pública⁵ US$ 12,31 bilhões (2013)
IDH⁶ 0,815 (2013)
IDH no mundo
e na AL⁶
44° e 2°
Eleições⁷ Presidentes do Conselho de Estado e de Ministros eleitos pela Assembléia Nacional do Poder Popular (Asamblea Nacional del Poder Popular) para mandatos de 5 anos. A Assembléia Nacional é o poder legislativo unicameral composto de 614 membros eleitos direta e secretamente por maioria absoluta em dois turnos modificada, pois caso um candidato não alcance mais de 50% dos votos o cargo ficará vago a menos que o Conselho de Estado decida por uma nova eleição. A Constituição de 15 de novembro de 1976 estabeleceu um sistema de assembléias representativas organizadas de forma piramidal que estabelecem as indicações dos candidatos, sendo metade dos deputados escolhidos delegados em cada município e a outra metade por comitês representativos de trabalhadores, jovens, mulheres, estudantes e agricultores. Alguns elementos particulares da democracia cubana é a possibilidade de revogabilidade dos mandatos em qualquer tempo pela Assembléia Municipal do deputado; o direito aos membros das forças armadas de votarem e serem votados; e, apesar do voto não ser obrigatório, a participação popular tem sido maior de 90% em todos os processos eleitorais desde 1976. As eleições para Assembléia Nacional ocorrem a cada 5 anos e a cada 2 anos e meio ocorrem eleições para os orgãos locais, que elegem os delegados às Assembléias Provinciais e Municipais.
Fontes: 
¹ CIA. World Factbook
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
³ ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision
⁴ Enciclopédia do mundo contemporâneo
⁵ CEPALSTAT
⁶ ONU/PNUD. Human Development Report, 2014
⁷ Página da Inter-Parliamentary Union,complementada pela Constitución de la República de Cuba, disponível em: http://www.cubadebate.cu/wp-content/uploads/2009/06/go_x_03_2003.pdf

Cuba é o país mais ocidental da região do Caribe. A área do arquipélago cubano é aproximadamente a soma da extensão de todo o resto do Caribe insular; ocupa uma posição singular diante das Américas, com respeito às comunicações continentais, entre o golfo do México e o mar do Caribe. Domina os estreitos da área e é contígua aos Estados Unidos e ao Atlântico norte. Essa situação geográfica tão estratégica sempre foi uma influência notável em sua história.

Cuba é habitada há pelo menos 10 mil anos e, quando Cristóvão Colombo atracou na ilha em sua primeira viagem, em 28 de outubro de 1492, lá existia uma população estimada em não menos de 200 mil habitantes, em estágios variados, desde conhecedores da agricultura e da cerâmica até coletores. Foi ocupada e colonizada pela Espanha a partir de 1510. De Cuba partiram as expedições que conquistaram o atual México e outras regiões entre a Flórida e o norte da América do Sul. Os colonialistas fundaram vilas ao longo da ilha e um governo geral; sua primeira economia, de estâncias, baseou-se em submeter a população a relações de exploração e opressão, basicamente a chamada encomienda (instituição jurídica criada pela Espanha na América, para regulamentar as relações entre espanhóis e indígenas), que buscava ouro e meios de subsistência. Os aborígenes foram rapidamente dizimados pelas enfermidades, pelos serviços forçados, matanças e maus-tratos, e pelo brutal despojo cultural que se abateu sobre eles. Em um período não muito extenso, o que restou dessa população praticamente desapareceu, absorvido pela mestiçagem. Dela subsistiu grande parte da toponímia e um certo número de palavras de uso corrente, alguns traços físicos em determinados grupos da população, influência em forma de religiosidade, moradia e outros traços culturais.

Hegemonia espanhola

Cuba foi estratégica para o império espanhol como praça militar e de comunicações, durante três séculos, e continuou sendo colônia espanhola até 1898. Local estratégico e preferido de trânsito entre a Espanha e a América, logo Havana se tornou capital do país e se converteu em uma praça forte e em um porto muito importante, no qual se reuniam as frotas antes de saírem para o Atlântico, conduzindo à Espanha, a cada ano, as riquezas extraídas do continente. “Antemural das Índias e chave do Novo Mundo” era como a metrópole espanhola qualificava Cuba. Estaleiros, povoamento com pessoas vindas da península Ibérica, fortalezas, armazéns, funcionários, militares, escravos africanos, extração de madeiras preciosas, açúcar e cobre formavam a paisagem de uma colônia regida pelo interesse e lucro metropolitanos e por uma oligarquia local. O leste do país ficava fora do circuito principal, mas seu gado complementava a economia das colônias europeias das pequenas ilhas do Caribe, negócios “de contrabando” que não podiam ser impedidos pela lei espanhola nem pelos enredos geopolíticos das potências. A primeira estrutura social de Cuba colonial durou quase três séculos. Na ilha, se formou e predominou uma cultura criolla (de descendentes europeus, nascidos na América), vassala de uma metrópole que tratou de renovar e fortalecer seu poder na segunda metade do século XVIII.

O lugar da Espanha entre as potências havia baixado bastante, e, quando uma grande expedição inglesa atacou no verão de 1762, conseguiu tomar Havana. Os britânicos ocuparam a região durante um ano, até que na Paz de Paris trocaram-na pela Flórida. Uma nova época começou antes do fim do século, a partir da extraordinária expansão da exportação de açúcar e café da ilha, núcleo da criação de uma nova formação social que transformou profundamente a sociedade do oeste e centro de Cuba. Entre 1787 e 1841, a população do país passou de 176 mil pessoas para um milhão, e na composição racial o número de brancos caiu de uma ligeira maioria para 41,5%, havendo então 43,3% de escravos e 15,2% de negros e mulatos livres (Instituto de História de Cuba, 1994). A exportação de açúcar pulou de 10.890 toneladas métricas para 169.886, e a de melado de 144 para 15.694 galões. A de rum passou de 388 mil para 5.188 mil litros (Moreno, 1978, p. 43-44). Cuba tornou-se uma das colônias mais modernas e “ricas” do mundo, primeira exportadora mundial de açúcar de cana, muito bem integrada ao capitalismo mundial e na ponta de novas tecnologias. Enquanto os patriotas venezuelanos lutavam no Congresso de Angostura e na batalha de Carabobo, a máquina de vapor se estabelecia nos grandes engenhos de Cuba. Sua ferrovia – que ampliou muito as terras virgens disponíveis – e, depois, o telégrafo e o telefone foram os primeiros da América Latina. Extraordinários avanços em técnicas empresariais, consumo sofisticado, pensamento sobre os problemas peculiares e trato com belas-artes conviveram com a mais selvagem e cruel exploração e aculturação maciça dos escravos, um regime de casta e um racismo oficializados, e a perda progressiva do poder político da classe dominante criolla diante de um despotismo colonial dirigido a obter boa parte da renda de Cuba.

Essa classe dominante na economia renunciou a todo desígnio de se converter em classe nacional e emancipar o país, enquanto quase todo o continente se liberava das metrópoles europeias, mantendo essa atitude ao longo de todo o século XIX. Ela privilegiou seus lucros e interesses imediatos, destruiu a vida de um milhão de escravos africanos e de 125 mil cules chineses, em plena modernidade do século XIX; associou-se em negócios com espanhóis e apoiou, suportou ou subornou as autoridades da Espanha, trocando dinheiro e subordinação por proteção, para que Cuba não se convertesse em “outro Haiti ”. Depois de meados do século, a mecanização das fábricas, a conversão dos Estados Unidos em maior comprador e sua exigência de açúcar não refinado, entre outros fatores, concorreram para mudar as bases do regime econômico. O processo de eliminação da escravidão só terminou em 1886. Em 1892, já sem escravos, a exportação de açúcar alcançou um milhão de toneladas métricas. Para sustentar e expandir a produção açucareira, chegaram, no meio do século seguinte à emancipação, outro milhão de imigrantes europeus e quase meio milhão de caribenhos. Durante cerca de 150 anos, entre 1780 e 1930, configuraram-se a composição racial do país, o essencial de sua estrutura econômica e muitos dos aspectos principais de sua cultura. A política constante de dominação consistiu em dispor os trabalhadores em um grau muito alto, aumentar sem cessar o montante do produto exportado e fechar o acesso à terra como meio de produção independente, em uma economia financeira liberal e relações sociais autoritárias. Depois de 1930, o capitalismo neocolonial cubano teve de modificar sua política.

O Capitólio Nacional, antiga sede do governo cubano, atual sede da Academia Cubana de Ciências, em Havana (Guillaume Baviere/Creative Commons)

Mas o destino de Cuba não foi decidido pela dinâmica da formação econômica, e sim por terríveis lutas armadas de libertação que se sucederam entre 1868 e 1898. A primeira Revolução (1868-1878) propôs a independência e a abolição da escravatura, constituiu uma república em armas e combateu muito duramente no leste e no centro do país, mas não conseguiu chegar ao oeste, centro da economia da colônia. Enredou-se em dissensões internas e terminou em acordos de paz sem independência. O balanço desse processo mostra, entretanto, aspectos muito positivos: o sentimento e as representações nacionais foram profundos e maciços, vinculados a uma história de lutas e de radicalismo político; a emancipação dos escravos ligou-se a uma grande guerra, na qual combateram juntas pessoas de todas as raças e condições – o que fez com que tivessem orgulho de si mesmos os não brancos e significou também um caráter multirracial do nacionalismo e um retrocesso do racismo; a Espanha reconheceu a liberdade dos escravos que combateram contra ela e, depois de 1879-1880, estabeleceu um regime legal em parte semelhante ao de uma província metropolitana. A estrutura social passou a ser plenamente capitalista, organizaram-se vários setores de trabalhadores e, pela primeira vez, existiu uma política dirigida para as massas, com três partidos políticos e uma certa liberdade de expressão. Mas o colonialismo espanhol não abriu canal para nenhuma reforma que concedesse autonomia e liberdades, e continuou depauperando o país, enquanto os burgueses de Cuba se limitavam a sustentar aquele governo forte que defendia seus lucros e seu poder sobre os trabalhadores e o povo.

José Martí (1853-1895), personalidade que mais se sobressaiu na história cubana, do exílio, confluiu as diversas motivações e conspirações emancipacionistas em um órgão político – o Partido Revolucionário Cubano –, que preparou uma nova guerra com o objetivo de criar uma república independente e democrática, liquidar o colonialismo, impedir que os Estados Unidos se apoderassem de Cuba e iniciar uma nova época revolucionária na região, “a segunda independência da América Latina”. A insurreição iniciada em fevereiro de 1895 se converteu em uma imensa guerra popular irregular. Os insurretos invadiram todo o país, dezenas de milhares de combatentes participaram do Exército Libertador e um quarto de milhão de cidadãos viveu nos acampamentos da República em Armas. Os dois líderes da guerra, Martí e Antonio Maceo, caíram em combate, e quase 20% da população pereceu em um holocausto provocado pela política colonialista genocida. Mas, apesar disso e de seu gigantesco esforço de guerra, a causa da Espanha estava perdida quando os Estados Unidos lhe declararam guerra, em abril de 1898, e invadiram a ilha. O Exército cubano facilitou a vitória dos Estados Unidos, mas o novo imperialismo vinha para impedir o triunfo revolucionário e estabelecer seu domínio sobre Cuba. As mobilizações e a resistência cívica popular à ocupação norte-americana (1898-1902) completaram o ciclo revolucionário. Em 20 de maio de 1902, foi criado o Estado nacional, a República de Cuba, uma vitória do patriotismo e do sacrifício de um povo que já possuía uma poderosa consciência política nacionalista de caráter predominantemente popular.

Invasão norte-americana

As antigas relações de Cuba com as Treze Colônias e com os Estados Unidos, entretanto, haviam se convertido em uma dependência econômica crescente nas quatro décadas anteriores, e a intervenção militar havia propiciado e imposto uma completa subordinação neocolonial que deformou e limitou a república até 1959. A burguesia de Cuba se submeteu a essa dominação imperialista ou colaborou com ela, uma vez que passou a exercer um domínio mais abrangente sobre o povo cubano. Um capitalismo liberal fechou o acesso à terra – ou à sua propriedade – para a maioria dos trabalhadores e famílias rurais e manteve o trabalho submetido ao capital, porém com mais ativos movimentos oposicionistas de trabalhadores. A Constituição de 1901 consagrou um sistema político representativo, mas não contemplou conquistas sociais. Além disso, os Estados Unidos impuseram a ela um apêndice, a Emenda Platt, que legalizava seu direito de intervir em Cuba se considerassem isso necessário. A nova hegemonia teve de dar os lugares principais da política aos antigos insurretos e reconhecer o nacionalismo como ideologia dominante, embora no fim predominassem os sentimentos de frustração e de incapacidade para o governo autônomo. Depois da reconstrução do país deu-se um novo grande pico açucareiro que levou à produção de 5,4 milhões de toneladas métricas de açúcar em 1925, com um enorme investimento de capital norte-americano. Mas o modelo de crescimento exportador de açúcar não refinado se esgotou pouco antes da maior crise econômica da história mundial, e a combinação desses dois fatores derrubou os preços e o volume da exportação, o emprego e a qualidade de vida. A reversão para um governo autoritário, iniciado em 1925, degenerou para uma ditadura militar e o sistema político se deslegitimou.

O país se levantou, então, em uma nova revolução (1930-1935). Dessa vez, as principais ações foram de estudantes e trabalhadores, e o anti-imperialismo, a justiça social, a democracia e o socialismo se colocaram no centro das motivações políticas e sociais. Em 12 de agosto de 1933, a tirania foi derrotada. A revolução rechaçou o intervencionismo ianque e um governo que durou quatro meses enfrentou os Estados Unidos, destituiu a oficialidade do Exército, combateu a contrarrevolução e promulgou numerosas leis sociais avançadas. A rebelião popular só foi controlada por meio do golpe de janeiro de 1934 e dois anos de repressão desencadeada por uma coalizão reacionária, subordinada ao imperialismo. Anos de ditadura e legalidade manipulada, entretanto, serviram como uma etapa de transição. A Revolução de 1930 acabou com a velha ordem republicana, exigiu e obteve mudanças notáveis no sistema político, no papel do Estado, na organização da sociedade, na confiança do governo autônomo, nas ideias e nas relações com os Estados Unidos, o que permite afirmar que surgiu uma segunda república.

Essa república, contudo, continuou sendo burguesa neocolonial porque não afetou nada que fosse essencial para o domínio capitalista e neocolonial. A Constituição de 1940 deu forma às conquistas políticas e sociais da Revolução de 1930. Implantou-se uma ordem jurídica muito desenvolvida, um Estado mediador entre as classes e interventor na economia, um sistema político de democracia representativa e partidos pluriclassistas de real alcance nacional, liberdades de expressão e associação, mais nacionalismo, porém também ideias socialistas e outras avançadas. Nesse contexto, não se cumpriram todos os preceitos e direitos, e isso foi tema dos embates sociais e políticos e tornou-se parte de uma hegemonia outra vez intrincada, que devia evitar que a população voltasse a recorrer à revolução. Mas a segunda república manteve a sujeição neocolonial ao imperialismo, nunca pretendeu fazer uma reforma agrária nem uma industrialização nacional, e nela se mantiveram níveis gigantescos permanentes de desemprego estrutural e temporário, serviços sociais muito deficientes e de cobertura parcial e uma corrupção administrativa enorme. Com uma altíssima proporção de organização sindical urbana, no campo, o trabalho era superexplorado e reinavam a falta de serviços e a miséria. Havana era “a Paris do Caribe”, mas com bairros marginalizados e cem mil analfabetos. Metade das crianças em idade escolar não ia à escola, e a gastroenterite e a tuberculose grassavam entre os pobres. Conviviam e lutavam com essas realidades grandes e ativíssimos movimentos da sociedade civil, projetos políticos avançados, ideias de justiça social e de mudanças a favor das maiorias e do país, que se acreditava factível obter no sistema vigente.

A Revolução. Os anos 1950

Fidel Castro chega em Washington, nos Estados Unidos, em abril de 1959 (US Library of Congress)

Em março de 1952, um golpe militar rompeu a institucionalidade a oitenta dias das eleições presidenciais que seriam vencidas pelo novo Partido Ortodoxo, em que o povo tinha depositado grandes esperanças de mudanças positivas. A quartelada colocou no poder Fulgencio Batista que, entre 1934 e 1944, foi o chefe da contrarrevolução, ditador e presidente. A classe dominante e os Estados Unidos cometeram o erro do século ao aprovar o governo de um grupo de aventureiros, confiantes de que reprimiriam o povo e fariam retroceder as conquistas da etapa anterior. O país repudiava a ditadura, mas não parecia ter saídas. Então, uma nova geração revolucionária começou a atuar. O assalto ao Quartel Moncada, em Santiago de Cuba, em 26 de julho de 1953, fracassou, e dezenas de jovens foram assassinados. Seu líder, Fidel Castro, e mais de vinte sobreviventes foram condenados à prisão. Mas o fato transcendeu às incompreensões e aos interesses adversos. Dois anos mais tarde, aqueles jovens – anistiados depois de uma campanha popular – e outros revolucionários fundaram o Movimento 26 de Julho (MR-26 de julho), uma organização de luta armada e clandestina, com o objetivo de desenvolver uma insurreição, juntar as massas e tomar o poder para realizar uma profunda revolução. Ao movimento estudantil somaram-se trabalhadores da cidade e do campo, além de desempregados. Juntos, desencadearam o protesto popular e as lutas ilegais de massas entre 1955 e 1956, desacreditaram as jogadas políticas legais e assim se criou um contexto potencial de rebelião.

O MR-26 de julho, dirigido por Fidel Castro, organizou-se em todo o país, enquanto no México preparou-se a expedição do iate Granma, que chegou ao leste de Cuba em 2 de dezembro de 1956. Começou então um enfrentamento de guerrilhas em Sierra Maestra e uma luta de ações e resistência clandestinas em todo o país. O assalto ao palácio presidencial por um comando da organização do Diretório Revolucionário, a insurreição dos marinheiros e do povo em Cienfuegos e a greve geral de abril de 1958 foram três episódios iniciais dessa luta. Nesse ínterim, o Exército Rebelde conseguiu se consolidar, dominar a montanha, vencer combates, construir sua base de população rural, formar colunas, invadir outras zonas do leste, até se transformar na esperança do povo e dos lutadores do país. Fidel tornou-se o líder da insurreição. Em maio, a tirania lançou sua maior ofensiva contra a Sierra Maestra, mas durante o verão de 1958 os rebeldes derrotaram-na, em uma sucessão de grandes combates. Durante uma intensa última fase de quatro meses, os rebeldes dominaram o campo do leste da ilha e divulgaram com meios próprios os seus feitos armados e as posições revolucionárias, invadiram o centro do país, atraíram o apoio de enormes setores à insurreição e lançaram uma grande ofensiva final que derrubou a ditadura em 1° de janeiro de 1959. A política firme e radical dirigida por Fidel e uma greve geral em apoio à insurreição vitoriosa derrotaram uma manobra imperialista e de reação cubana para impedir que a Revolução tomasse o poder de fato. Nos primeiros dias daquele ano, o poder revolucionário se estabeleceu em todo o país.

Em um lapso histórico brevíssimo, esse poder e o povo desenfreado puseram abaixo toda a ordem de dominação interna e de sujeição neocolonial que havia regido o país e afastaram a ideia de que aquela ordem pudesse voltar. Em três anos, mil leis transformaram as instituições e as relações fundamentais, colocando-as a serviço da população, entre elas a agrária, o sistema político, o sistema repressivo, a produção e as empresas, a moradia, o sistema bancário, o comércio, a educação, a saúde, a previdência social, os meios de comunicação, os municípios e muitas outras esferas. Mas não eram as leis o essencial, e sim a atividade sintonizada de um novo poder popular e as mobilizações de massa praticamente permanentes, cada vez maiores, que mudavam as relações e as instituições sociais ao mesmo tempo que se transformavam.

Navio soviêtico Ansov deixa Cuba, durante a Crise dos Mísseis de Cuba, em junho de 1962 (NARA)

O imperialismo não aceitou uma Cuba independente depois de um século e meio pretendendo engoli-la e sessenta anos de dominação neocolonial. Seu aparato agressor se propôs a estrangular a economia cubana desde 1960. Enquanto isso, organizou-se uma violência crescente, desde sabotagens e terrorismo até uma invasão pela praia Girón, em abril de 1961, que foi esmagada em três dias pelas Milícias e Forças Armadas Revolucionárias. Na véspera da invasão, Fidel declarou que Cuba era socialista. Os Estados Unidos, contrariando o direito internacional, determinaram um bloqueio econômico contra Cuba que dura até os dias atuais, apesar do repúdio mundial. A defesa da Revolução se converteu em uma atividade vital, mas ao mesmo tempo também eram vitais as mudanças mais radicais na economia, a redistribuição da riqueza nacional e uma revolução educacional. Cuba e União Soviética entabularam vínculos de defesa e de intercâmbios comerciais que resultaram básicos para o país. O caráter socialista de libertação nacional da Revolução Cubana aproximou os dois países, mas também introduziu Cuba no conflito geopolítico mundial. Os Estados Unidos avançaram para uma agressão direta e Cuba tensionou todas as suas forças, permitindo que a União Soviética instalasse mísseis nucleares na ilha. Em outubro de 1962, instalou-se uma crise que pôs o mundo à beira da guerra nuclear. A nação inteira enfrentou a ameaça norte-americana sem ceder um milímetro, mas a União Soviética e os Estados Unidos pactuaram às suas costas a retirada dos mísseis. A intransigência revolucionária, a unidade nacional, a fé na vitória e a confiança nas próprias forças foram lições das jornadas daqueles anos, aprendidas pelo povo e por seus dirigentes.

O presidente Kennedy, o Secretário de Estado Dean Rusk e o Secretário de Defesa Robert McNamara, na Casa Branca, Estados Unidos, durante a Crise de Cuba, em outubro de 1962 (NARA)

 

Socialismo no Caribe

Uma verdadeira revolução agrária se sucedeu entre 1959 e 1963, e os esforços e a consciência do país se voltaram para o campo. A Revolução nacionalizou os bancos e quase todo o comércio, o transporte e as empresas de produção e serviços. Milhares de pessoas tiveram de aprender a executar os processos de produção e direção em todos os escalões e entender a economia. Elevaram-se os salários, aboliram-se os aluguéis e assumiu-se o princípio de que a moradia pertencia a quem nela vivia; destinaram-se vultosos recursos aos serviços sociais e à melhora da situação dos mais pobres. Em 1961, concluiu-se a Campanha de Alfabetização, uma gigantesca proeza cultural, em cujo processo se educaram mutuamente alunos e professores. Em cinco anos, eliminou-se o desemprego. Ante as dificuldades, a Revolução assumiu o princípio socialista de “comida igual para todos”; regularizou-se a distribuição de alimentos e outros produtos básicos a preços subsidiados. Ainda que há bastante tempo seu papel seja muito relativo em relação ao consumo total, o sistema de abastecimentos subsidiados continua vigente. Nesses anos, aconteceram confusões formidáveis e maravilhosas iniciativas e invenções, privações muito duras e alegrias extraordinárias. As mudanças nas maneiras de ser e pensar foram grandiosas, mas acompanhadas por duras e dolorosas passagens. Entre 1959 e 1965, 230 mil pessoas saíram do país; a Lei de Ajuste Cubano, dos Estados Unidos, deu um toque final na politização da emigração e converteu os cubanos nos imigrantes mais protegidos daquele país. A contrarrevolução interna, açulada pelos Estados Unidos, incluiu milhares de pessoas – a maioria pobres – que se levantaram em armas na primeira metade dos anos 1960. Derrotá-la custou muitas vidas e dispendiosos recursos.

Em um país da América Latina, começou a se criar uma nova maneira de viver e uma nova sociedade. O tempo se tornou denso e se transformaram as ideias, as crenças e os sentimentos a respeito de toda a vida cívica e de grande parte da vida cotidiana. Os antigos donos de Cuba foram expropriados e o povo perdeu o respeito pela propriedade privada. As pessoas se apoderaram do país, aprenderam a se encarregar de seu funcionamento e a viver nele de outra maneira, e tiveram acesso aos bens materiais disponíveis ao mesmo tempo que assumiram a dignidade humana, a palavra escrita e o maior controle sobre a própria vida. Começou-se a edificar uma pacificação da existência.

Para que Cuba sobrevivesse, fosse viável e seguisse o processo de mudanças, foi necessário estabelecer um novo poder muito forte, o Governo Revolucionário, que partiu de princípios políticos diferentes, atuou com grande decisão e criatividade, levantou um novo sistema de instituições e relações sociais e políticas, assegurou sua permanência, impediu a mudança desse sistema e recebeu uma confiança ilimitada da maioria da população. Retrocedeu às fronteiras do possível, e às vezes a estourou. O elaborado sistema político anterior foi abominado e destruído. Fidel foi o primeiro líder do mundo que, além de conviver com o povo, realizou uma campanha de conscientização pela televisão, consumou sua liderança no transcurso das jornadas, dos conflitos e dilemas daqueles anos e foi o condutor máximo do processo. O novo regime se reconhecia como uma “democracia de trabalhadores” e considerava a Revolução como fonte de direito. Marcharam juntos durante longos anos o espírito libertário e o poder revolucionário. Todas as oposições, ataques e resistências às mudanças foram derrotados, assim como as carências, que eram quase insondáveis, por meio de jornadas e de anos maravilhosos e traumáticos.

Dimensões profundas da dominação entre os seres humanos se fenderam, desprestigiaram-se e foram modificadas. A subordinação da mulher sofreu graves impactos e se iniciou um processo que lançou as bases para uma ulterior transformação da condição feminina. As inferioridades sociais e a discriminação racial de negros e mestiços diminuíram muito, não por favores ou por lei, mas mediante a participação deles no processo e como parte das tarefas da Revolução. Normas e valores familiares foram impactados pelo processo, caracterizado também por uma extraordinária mobilidade social e por mudanças notáveis na concepção do mundo e da vida no âmbito da sociedade. É difícil exagerar o alcance que teve a grande Revolução “dos anos 60” e é impossível entender a Cuba atual sem ter em conta todo esse processo.

O socialismo cubano não foi consequência de um processo com supostas etapas que deviam seguir os países que o capitalismo europeu colonizou, batizados primeiro como “atrasados” ou “coloniais e semicoloniais”, depois chamados países “subdesenvolvidos” ou “em via de desenvolvimento”. Segundo a corrente dominante do pensamento liberal, esses países deviam seguir o mesmo caminho dos classificados como desenvolvidos, como se não houvesse íntima relação entre os dois resultados históricos. Para o movimento comunista e o marxismo liderados pela União Soviética, os “subdesenvolvidos” estavam destinados a fazer “revoluções agrárias e anti-imperialistas” ou “democrático-burguesas” e estabelecer “democracias nacionais”. A cubana foi a primeira Revolução socialista autóctone em pleno Ocidente, vencedora da dominação burguesa e neocolonial. Teve de ser socialista de libertação nacional desde o início, ou não poderia triunfar. Precisou ser socialista para liberar Cuba do imperialismo norte-americano e ser capaz de resistir vitoriosamente às agressões e ao assédio sistemáticos da maior potência mundial, e para motivar todo um povo a lutar e desenvolver suas potencialidades de libertação em busca da justiça social e da liberdade: objetivos que se condicionaram mutuamente. Teve de ser socialista para que a ideia de desenvolvimento econômico se tornasse um direito de se realizar, para que a política se relacionasse intimamente com a ética e a administração da honestidade, o poder tivesse autoridade sobre a economia, e a economia se medisse por sua capacidade de servir ao bem-estar da população e à distribuição justa da riqueza social.

A Revolução socialista cubana transcendeu seu âmbito nacional. Proclamou-se sobretudo latino-americana e assumiu um diálogo fraternal com os povos e relações com os estados baseadas em princípios, às vezes flexíveis, como parte de uma nova diplomacia. A América Latina e o Caribe são a verdadeira região a que Cuba pertence – geográfica, histórica, cultural, de situação compartilhada e de economias, objetivos nacionais e destino que podem ser comuns. Mas o continente foi afastado de Cuba. A Organização dos Estados Americanos (OEA) ratificou sua submissão aos Estados Unidos ao expulsar Cuba de seu seio. E uma onda de ditaduras de colusão burguesa e imperialista se estendeu pela região, com o fim de esmagar os protestos políticos e sociais e impor uma nova fase de dominação. As ditaduras e a maioria dos regimes capitalistas mais ou menos democráticos combateram a Revolução Cubana ou foram cúmplices em seu isolamento e hostilização. Algumas forças capitalistas nacionais estabeleceram relações com Cuba ou estiveram dispostas a isso, mas a tendência geral ficou contra. Foi o povo que reconheceu, de 1959 em diante, o significado da Revolução Cubana, exerceu a solidariedade e a defendeu, ou a percebeu como uma esperança certa, um exemplo palpável de que a soberania plena e as mudanças sociais profundas para benefício popular eram factíveis na América. Essas funções de Cuba na região constituíram uma das conquistas mais valiosas da Revolução, e a solidariedade com Cuba introduziu um avanço notável da cultura latino-americana.

O conteúdo do regime e dos ideais socialistas estabelecidos em Cuba constituiu uma renovação prática do socialismo no mundo contemporâneo e uma afirmação da necessidade do caráter anticapitalista das revoluções de libertação nacional e de que exista e se desenvolva um internacionalismo consequente. Cuba significou uma heresia para os poderes que usufruíam então a representação do socialismo, e também um polo atrativo e uma alternativa política e ideológica para muitos movimentos que pugnavam pela libertação nacional e social. Fidel se converteu em um dos principais dirigentes revolucionários do mundo. Ernesto Che Guevara aperfeiçoou sua personalidade e lenda de guerrilheiro com uma atuação exemplar como dirigente nos terrenos político, econômico, ideológico e internacional. Che Guevara foi o mais destacado teórico da posição cubana e um renovador do marxismo. Em 1965, encabeçou a ajuda internacionalista cubana à revolução no Congo e, à frente de um grupo de cubanos, foi à Bolívia no fim de 1966, para apoiar e estender a Revolução. Lá, morreu em outubro de 1967. Na segunda metade dos anos 1960, ao mesmo tempo que tratava de aprofundar seu projeto comunista, Cuba redobrou seus esforços internacionalistas, iniciados em 1959, assumindo todas as consequências grandiosas e difíceis que essa atitude implicava. Isso potencializou a cultura de sua população e o alcance de seu empreendimento nacional e de sua posição revolucionária.

A criação de organizações sociais da Revolução abriu canais para atividades e iniciativas de diferentes setores, unindo o apoio político e ideológico ao processo de reconhecimento das identidades e demandas de uma diversidade social – uma atitude conveniente na fortíssima tendência de unificação que tem predominado e ocasionado a formação de muitos quadros e ativistas. Os sindicatos se democratizaram e se universalizaram, renovando a Central de Trabalhadores de Cuba. Sua atuação foi crucial nos primeiros anos. Os Comitês de Defesa da Revolução (1960), a mais ampla das organizações sociais, agruparam os vizinhos em quadras para enfrentar os inimigos e também para numerosas tarefas em benefício da comunidade. Desde 1976, constituem a base das circunscrições eleitorais. A Federação das Mulheres Cubanas, as federações de estudantes de nível médio e universitário, a União dos Pioneiros e a Associação Nacional de Pequenos Agricultores são outras importantes organizações sociais. As Milícias Nacionais Revolucionárias foram a mais importante organização de massas durante a grande transformação. Associaram vivências, consciência, disciplina, decisão de luta, universalização da postura rebelde e proletarização. Cuba foi obrigada a empregar uma massa imensa de jovens e de recursos para conseguir se defender com êxito dos ataques dos Estados Unidos.

Quando se formou o novo sistema político da Revolução, nada restava dos partidos e do sistema político anterior. Depois de um processo de unificação, criaram-se a União dos Jovens Comunistas e o Partido Unido da Revolução Socialista (1962), que passou a ser o Partido Comunista de Cuba, em 1965. As funções desse setor do campo político são muito diferentes das que têm os partidos nos países capitalistas. Nos primeiros anos, as funções executiva e de promulgação de leis foram desempenhadas por uma direção revolucionária em cuja cúpula se reuniam os principais cargos políticos e estatais. O Estado revolucionário criou os organismos de que necessitava o país, embora essas estruturas experimentassem diversas crises e reformas. Os poderes locais sempre foram muito ativos e o número de municípios cresceu muito até 1976.

Fidel Castro, presidente de Cuba, na Assembléia da ONU, em setembro de 1960 (US Library of Congress)

Em meados dos anos 1970, eram palpáveis os limites que enfrentava o processo cubano. A estratégia econômica chamada “desenvolvimento socialista acelerado” não contava com forças suficientes para engendrar a mudança da condição “subdesenvolvida” de Cuba, em um mundo em que a centralização capitalista avançava. Não se alcançava a autossuficiência alimentar, e a necessidade de exportar quantidades enormes de açúcar não refinado – desvirtuadora do avanço para um melhor uso do solo e saudáveis complementações entre a agricultura e a indústria – desembocou na colheita de 1970, esforço gigantesco que desorganizou e esgotou o país. A relação com a União Soviética era a opção principal para a economia de uma nação bloqueada sistematicamente pelos Estados Unidos, mas, apesar de seus aspectos positivos, ela não estava madura para contribuir eficazmente para um desenvolvimento autônomo de Cuba. As relações com outros países desenvolvidos capitalistas sempre foram tão necessárias como acidentadas e insuficientes.

Cuba ingressou no Conselho de Ajuda Econômica Mútua (CAME) – o órgão de integração dos países do chamado sistema socialista – em 1972, quando já estava em marcha uma segunda etapa da Revolução no poder, que foi do início dos anos 1970 até o início dos 1990. Durante essas duas décadas o país multiplicou suas forças de maneira sistemática e conseguiu: a) um Estado de bem-estar para a população com oferta de serviços e produtos de consumo, de uma perspectiva diferente da dos países capitalistas desenvolvidos; b) a universalização dos serviços educacionais e de saúde gratuitos, e a previdência social mais avançada da região; c) a continuação e a reorganização do esforço econômico, o esforço para tornar mais eficiente e humana a produção açucareira e o fomento ou a ampliação de outras áreas de produção, e o fortalecimento de uma infraestrutura notável; d) um processo de institucionalização que consolidou o que foi conseguido e incluiu poderes municipais democráticos, uma compacta ordem legal e uma nova Constituição em 1976; e) um salto decisivo na escolarização, a pirâmide escolar, na cultura política e geral e no desenvolvimento técnico e científico.

A economia venceu obstáculos e desafios, com uma alta taxa de crescimento médio anual entre 1959 e 1988, enquanto a distribuição de renda se tornou inversa à usual na América Latina. Também se multiplicou a atuação internacionalista cubana no chamado Terceiro Mundo, que incluiu esforços de massas como os da Guerra de Angola – 400 mil internacionalistas, dos quais mais de 2 mil morreram – e a solidariedade com a Nicarágua sandinista. Mas, nessa segunda etapa, a transição socialista começou a sofrer os limites de suas possibilidades, e se desenvolveram graves deformações e processos de burocratização. A relação com a União Soviética, que durante trinta anos teve uma importância capital, passou a ser marcada pela autonomia cubana e por contradições nos anos 1960, em um período em que o desempenho econômico cubano se sujeitou demasiadamente aos intercâmbios com a União Soviética. Na base da relação esteve o intercâmbio de produtos primários cubanos por energéticos, manufaturas, equipamentos e alimentos soviéticos. O intercâmbio desigual foi compensado com vantagens nos preços e um sistema de créditos. Cuba renunciou a autossuficiência alimentar, a mais diversidade, autonomia e projeto próprio, em troca de segurança em seu setor externo diante do bloqueio e do subdesenvolvimento, além de produtos de consumo e serviços sociais, e de uma associação confiável por causa de afinidades ideológicas e do peso da União Soviética como a única superpotência rival dos Estados Unidos. Mas a estratégia, a prática e a ideologia econômicas tiveram cada vez mais influências dessas relações pelo chamado socialismo real. Isso prejudicou a direção, a eficiência, o controle e também o papel da atividade econômica nas transformações socialistas dos indivíduos, das instituições, da sociedade e sua identidade socialista.

Crises no processo revolucionário

O projeto socialista original da Revolução sofreu retrocessos e abandonos parciais. Subvalorizaram-se as experiências, ideias e buscas próprias para copiar as alheias. Em franca contradição com as realidades da Revolução, chegou-se a crer que o socialismo se “construiria” combinando a elas mecanismos mercantis e motivações individualistas, uma construção mercantilizada sem capitalismo e que seria tutelada pelo Estado socialista, até alcançar o “desenvolvimento”. O franco auge da burocratização, o formalismo e a eliminação do debate reforçaram essas ilusões. Nessa segunda etapa, coexistiram – e às vezes se chocaram – a acumulação cultural de libertação já conseguida e as deformações que se introduziam ou se reanimavam. Enquanto isso, uma nova geração mais sadia e mais preparada entrava em cena, com vivências e experiências diferentes. A dinâmica econômica do país foi inferior ao tremendo salto para a frente das capacidades da população jovem. Uma primeira revolução educacional alfabetizou e conscientizou, a segunda universalizou, formou quase um milhão de pessoas e implantou o estudo-trabalho, mas não houve uma terceira que formasse capacidades e valores para a nova contradição criada pelos próprios avanços: enormes conhecimentos para recursos escassos, individualidades impactadas por uma modernização extremada – cujo símbolo mundial pertence ao capitalismo –, em uma sociedade cujos ideais e maneira de viver são opostos aos do capitalismo.

Em que pesem as deficiências, o determinante era a Revolução. Nos anos 1980, o país que avançava em muitos terrenos e praticava a solidariedade com ardor enfrentou uma nova fase do capitalismo mundial: a extrema centralização e a ditadura das finanças parasitárias na economia, além do conservadorismo na política. Enquanto isso, terminava a segunda onda de revoluções do século XX, que teve seu centro no Terceiro Mundo, esgotou-se a promessa de desenvolvimento para essas regiões e na União Soviética começou o processo de autoliquidação do regime e de todo o chamado sistema socialista. A política cubana se dinamizou. No mesmo ano de 1985, em que se efetuou em Havana uma grande reunião continental pelo não pagamento da dívida externa, o presidente Fidel encabeçou um processo que se chamou de “retificação dos erros e tendências negativas”, tendo em vista recuperar o rumo próprio e utilizar as forças, os recursos e os valores cubanos, fazer grandes mudanças políticas, econômicas e ideológicas e evitar as consequências do que logo depois se chamaria “Perestroika”. Embora tenha encontrado grandes dificuldades, o processo de retificação permitiu avançar com celeridade pelo caminho da mobilização e da participação popular, no debate dos problemas, na realização de importantes mudanças e na reafirmação do rumo socialista. Depois de quarenta anos de triunfo da Revolução Cubana, desencadeou-se a crise que acabou com os regimes da Europa oriental. No fim de 1989, os cubanos fizeram enterros maciços municipais dos restos dos mártires da Guerra de Angola e se manifestaram em toda a ilha contra a invasão norte-americana ao Panamá.

No início dos anos 1990, desencadeou-se uma terrível crise econômica por causa da queda brusca e sem compensações das relações com o CAME, que significavam 83,2% do comércio total cubano em 1985 e implicavam uma especialização cubana em açúcar, mercadoria em franco declive internacional, em cítricos, de mercado mundial muito controlado, e em níquel, por sorte uma matéria-prima de bons preços. Além disso, no período 1986-1990, reduziram-se os intercâmbios com o resto do mundo, devido à diminuição das divisas e dos créditos, e se agravou a deterioração dos termos de intercâmbio com os países do CAME. Os Estados Unidos deixaram claro que não cessariam as hostilidades contra Cuba, apesar do fim da bipolaridade, depois de terem usado como pretexto durante trinta anos que sua agressão sistemática se devia à Guerra Fria. A sobrevivência do sistema econômico e a segurança nacional entraram em risco mortal em um momento em que o prestígio mundial do socialismo caía vertiginosamente.

Em apenas dois anos, as exportações totais de Cuba se reduziram em 62% e as importações caíram pela metade. Desencadearam-se carências agudas de petróleo e derivados, além de outros bens básicos. Entre 1991 e 1993, o desempenho econômico do país foi destroçado. A produção caiu em todos os ramos, carente de insumos, peças e equipamentos, demanda externa e motivações. Em 1993, o PIB foi 35% inferior ao de 1989. A alta qualidade de vida alcançada sofreu uma enorme deterioração, desde a alimentação e o consumo básico até o transporte e a eletricidade. Despontou o perigo do desemprego, que chegou a 8,1% da população economicamente ativa (PEA) em 1995, uma taxa alta para Cuba. O poder aquisitivo da moeda despencou. O país teve que se voltar para si mesmo, cresceram muito os papéis da economia e da organização locais, e se multiplicaram as atividades produtoras particulares de bens e serviços, chamadas em Cuba de “por conta própria”. Elas supriram uma parte importante do consumo. Por sua vez, a atuação do poder revolucionário – férrea, mas flexível – manteve sua linha central, sua estratégia e suas táticas, a ordem pública, os serviços sociais, a destinação dos recursos escassos com que contava e a condução da maioria da população.

Desde 1992, produziram-se mudanças institucionais e medidas concretas dirigidas para enfrentar a crise. A Constituição de 1976 foi reformada naquele ano para abrir um leque de transformações. Ampliou-se o ordenamento legal com o objetivo de dar oportunidade para uma profusão de relações mercantis criadas com as atividades por conta própria e os mercados livres agropecuários e artesanais, e para favorecer o investimento estrangeiro, sobretudo na forma de empresas mistas e associações. Desde julho de 1993, estabeleceu-se um regime de dupla moeda, com a livre circulação do dólar, a recepção legal de remessas familiares do exterior e as contas bancárias pessoais em divisas. O Estado, muito reduzido em seus recursos, racionalizou sua estrutura, ampliou bastante a autonomia de seus órgãos econômicos, prescindiu do monopólio do comércio exterior, reformou o sistema bancário e foi cedendo em matéria de planejamento central, em favor de controles indiretos e mecanismos de mercado. O setor agropecuário se transformou. Em outubro de 1993, a maior parte das empresas estatais – que possuíam 80% da terra em uso – foi transformada em cooperativas agropecuárias.

Como e por que não se consumou em Cuba, entretanto, o modelo de liquidação de regimes não capitalistas vigentes nesses anos? Antes de tudo, a sociedade e o sistema político cubanos não abandonaram previamente sua organização social, suas instituições e seus ideais socialistas, e eles constituíam uma acumulação cultural e de prestígio do socialismo resistente e mobilizável diante da crise econômica. O fato político fundamental foi a coesão, a disciplina e o respaldo ativo da maioria dos cubanos à maneira de viver criada em Cuba, apesar de esse modo de vida ter sido submetido a uma forte erosão pelos efeitos da crise e também, em parte, das medidas tomadas contra a crise. Desenvolveram-se muitas estratégias de sobrevivência, mas nunca se questionou a continuidade do regime. Esse comportamento social foi a chave da política desse período e expressou uma consciência que se guia por três certezas: a de que a unidade entre os cubanos era vital para enfrentar tantas dificuldades e desafios; a de que o regime político lutava com energia e honestidade para manter a justiça social e a redistribuição sistemática da riqueza nacional, defendendo eficazmente a soberania nacional e controlando a economia nacional; e a de que um retorno ao capitalismo em Cuba significaria um desastre para a maioria dos cubanos, em perdas de direitos sociais, soberania popular e qualidade de vida, exploração do trabalho, pobreza e humilhações. Consciente do respaldo que essa cultura política oferecia, Fidel convocou as eleições de deputados de fevereiro de 1993 como um plebiscito a favor ou contra o socialismo: 7,85 milhões de votantes elegeram por via direta seus deputados.

A emigração para os Estados Unidos é um bom exemplo porque tem sido politizada durante décadas. Em 1980, ante a liberação repentina dos entraves que os Estados Unidos impuseram desde 1973 para a entrada de imigrantes cubanos legais, emigraram 125 mil pelo porto de El Mariel. No verão de 1994 – o momento mais agudo da crise social –, o êxodo ilegal dos “balseiros”, tolerado pelos dois países, foi de apenas 37 mil pessoas. Mariel foi uma correção da média anual de 31 mil emigrantes no período de 1959-1973 – embora tenha evidenciado a existência de novos problemas ideológicos –, uma geração depois do triunfo revolucionário. Os balseiros de 1994 – se se desconsiderar a gigantesca manipulação midiática internacional – formaram parte do quadro migratório da segunda metade do século. A imensa maioria dos cubanos não “votou com os pés” e ficou em seu país. A emigração dos anos 1990 mostrou duas novas peculiaridades: uma despolitização consequente do fato de emigrar e um desejo de obter êxito com base nas capacidades e nas expectativas pessoais, motivação sobretudo dos mais jovens. Junto a essas peculiaridades persistiu a tradicional saída para os Estados Unidos, usualmente com ajuda de familiares que viviam lá. Por outro lado, já estava em marcha o crescimento da emigração para outros países que não os Estados Unidos. Essa tendência se mantém até os dias atuais e é muito provável que seu montante exceda um terço do total de emigrantes.

A existência de uma Cuba socialista nega uma exigência básica da ideologia que prevalece na atualidade: de que é necessário resignar-se ao triplo domínio do capitalismo sobre a existência cotidiana, a organização social e a vida de cada país, e a mesma coisa em escala mundial. Apenas trinta anos depois que os Estados Unidos impuseram o primeiro corte de relações, o país viveu pela segunda vez outro corte brusco e sem indenizações de suas relações econômicas principais, pactuadas a longo prazo. Esse golpe provocou uma crise econômica muito profunda e uma grande deterioração social, mas pela segunda vez conseguiu sobreviver. Cuba não se somou à cadeia das “quedas do socialismo” ocorrida em 1990, em que pesem os agravantes que sofreu com o fim de uma açambarcadora bipolaridade entre superpotências. Precisou empregar esforços gigantescos e sistemáticos ao longo dos anos 1990 para conseguir que a sobrevivência do regime se tornasse viável, mas atualmente ninguém nega que esse objetivo foi alcançado. Em síntese, pode-se afirmar que a Cuba atual é um complexo composto de sua acumulação social revolucionária, de elementos da crise dos anos 1990 e suas consequências e das mudanças e permanências que estão em curso. A continuidade de seu tipo de organização social socialista é a tendência dominante em suas expressões políticas e no balanço que se pode fazer de sua sociedade.

A extraordinária resistência cubana conseguiu ultrapassar a crise da primeira metade dos anos 1990. O país demonstrou ser viável sem aplicar as políticas econômicas que se exigem no mundo atual e seguiu adiante sem prejudicar a vida das maiorias, ao contrário do que se tem considerado inevitável e tem se tornado usual. O Estado continuou sendo muito forte e intervencionista em altíssimo grau em matéria econômica, ao contrário do que se demandava. Desde 1995 sua economia vem se recuperando em ritmo paulatino, mas sustentado, e tem crescido em produtos, serviços e eficiência, apesar de se ver obrigada a realizar enormes mudanças em várias esferas. Uma razão básica desse êxito é que Cuba utiliza com eficiência as próprias forças. Sua população tem altos níveis gerais de conhecimentos, capacidades e hábitos úteis, que em muitos aspectos são realmente notáveis e estão bem consolidados; a economia possui apreciáveis níveis de reprodução, controle, diversificação e outros aspectos positivos; a infraestrutura se desenvolve; o sistema de serviços sociais está entre os mais avançados do mundo e tem resistido bastante à deterioração que a crise lhe inferiu; a paz social e política favorecem bastante a atividade econômica; o Estado e as estruturas de poder em geral se mostram capazes na realização de suas tarefas.

Homem enrolando charutos, em Viñales, Cuba (Bryan Ledgard/Creative Commons)

 

Políticas e práticas culturais

É insólita a combinação que o sistema possui quanto à capacidade na atividade econômica, flexibilidade e exercício de controles severos, graus de liberdade em políticas econômicas e grande capacidade negociadora externa. Seguem-se alguns dados por áreas. O turismo, que quase não existia, cresceu velozmente e se associou com empresas estrangeiras; já em 1998 trouxe 50% do total da receita em divisas. Atualmente, é um setor consolidado e dinâmico – com cerca de cem mil empregados –, que enfrentou bem os difíceis primeiros anos desta década e recebeu dois milhões de visitantes em 2004. O açúcar despencou desde 1993, mas não entrou em colapso; reduziu ordenadamente sua produção e seu plantio a menos da metade; o pessoal excedente foi recolocado e, em grande parte, requalificado. O níquel multiplicou sua importância, registrando uma sólida expansão produtiva e comercial – mais de 70 mil toneladas métricas em 2004, com vendas a numerosos países –, alta eficiência e renovação tecnológica, proveitosa associação com o capital estrangeiro, ótima conjuntura de preços e grande perspectiva de ampliações. Na área energética, a estatal Cubapetróleo aproveitou o enorme conhecimento acumulado e, em plena crise, continuou sua expansão produtiva de petróleo – de 0,8 milhão de toneladas métricas em 1991 para 3,7 em 2003 – e de gás, que no mesmo período pulou de 33 para 658 milhões de metros cúbicos – uma conquista estratégica e de substituição de importações –, e criou empresas mistas com companhias de outros países. Descobertas recentes evidenciaram um enorme potencial de produção. A área de telecomunicações é uma das mais dinâmicas, em ampliação, investimentos estrangeiros, modernização e contribuição para o desenvolvimento econômico e social.

A combinação de formação maciça de profissionais de alta qualificação com o investimento em pesquisas científicas aplicadas no campo da saúde – uma política mantida durante várias décadas – está rendendo ótimos frutos: alta qualidade de vida dos cubanos devido à prevenção e ao atendimento à saúde; descobertas muito importantes, grande competitividade internacional e negócios em vacinas, medicamentos, equipamentos e atendimento médico altamente especializados; capacidade de intervir com assessoria ou maciçamente em outros países, em casos de atendimento médico e de saúde. Tanto os produtos e equipamentos quanto o pessoal, totalmente pertencentes ao setor público, constituem atualmente valores importantes na política social e nas relações internacionais de Cuba.

Cuba não está sujeita a orientações do FMI nem do Banco Mundial, e controla suas relações com investimentos estrangeiros, em vez de ser controlada por eles. Nos primeiros anos da década de 1990, encorajaram-se muito os investimentos externos e se conseguiram relações notáveis em alguns campos, em uma amplitude modesta e sob o recrudescimento das medidas de perseguição dos Estados Unidos contra os interesses e a soberania de outros países que se relacionavam com Cuba. Mas o país que contou com um formidável investimento externo na indústria açucareira na segunda década do século XX, em condições neocoloniais, já libertado, não pôde encontrar créditos externos para sua indústria na última década do século. Consciente de suas forças e debilidades, não cedeu em seus controles ao negociar com os interesses externos. Manteve centralizadas suas decisões e principais dotações de recursos, o ônus da poupança interna e o equilíbrio entre gastos sociais e investimentos. Depois de 2002, diminuiu o número de empresas mistas e aumentou o controle, concentrando-se mais na relação com sócios de envergadura nos campos que se consideravam mais procedentes.

O dólar, como moeda legal e preferida em Cuba, causou comoção no início e participou da deterioração dos valores socialistas dos anos 1990, mas alentou toda uma gama de motivações para iniciativas e atuações econômicas, e deu ao país recursos para enfrentar a grande crise, impulsionar as mudanças e também as permanências, como a das dotações para a política social. O Estado captou divisas indispensáveis procedentes das remessas e de outras fontes, e a rede comercial legal em divisas é monopólio estatal. Depois de onze anos de dupla moeda, em novembro de 2004, o dólar deixou de circular. Com grande ordem, a população trocou seus dólares por pesos cubanos conversíveis, que ocuparam seu lugar na economia interna e na vida cotidiana. O peso cubano – que se estabilizou em 26 x 1 com o dólar nos últimos anos – foi objeto de revalorizações em 2005, em relação ao conversível, que por sua vez se revalorizou diante de todas as divisas. Cuba tem fortalecido em boa medida sua posição diante dos riscos e exações que implicam o domínio da economia dolarizada, aumentado os fundos estatais e melhorando o equilíbrio financeiro interno. Por outro lado, o dinheiro cubano posto em bancos por particulares – concentrado em poucas mãos – diminuiu a capacidade aquisitiva do dinheiro do turista e os preços ao consumidor não baixaram. Essas medidas, como tantas outras, mostram que se prefere a via social de redistribuição da riqueza às vias pessoais.

A cultura socialista é sustentada vigorosamente pela política social do poder revolucionário. Seu mecanismo principal é a dotação de recursos por meio do orçamento central do Estado, que os redistribui em benefício da saúde, educação, previdência social e outros serviços sociais, setores estatais priorizados e iniciativas que interessam à sociedade; os gastos sociais têm crescido a cada ano, durante a crise e até os dias atuais. Essa governabilidade mantém a confiança nos objetivos das medidas e políticas econômicas. Na questão do emprego, o regime rechaçou a “solução” capitalista de “racionalização”. Nos primeiros anos da década de 1990, modificou-se a composição do trabalho (94,4% eram estatais em 1988); aumentaram muito as cooperativas e também o número de trabalhadores por conta própria. Mas o emprego estatal tem sido protegido até os dias atuais, sem que prevaleçam critérios de eficiência contra ele. De todos os modos, a renda ganhou um bom terreno na estratégia trabalhista e vital de muitas pessoas e famílias. Centenas de milhares se tornaram trabalhadores por conta própria, seja como atividade exclusiva ou como complemento ao salário estatal, que não aumentava, apesar de os preços dos produtos terem disparado. Associada ao risco de alta do desemprego, a gestão privada seguiu sendo necessária diante das carências e dificuldades no campo do consumo de produtos e serviços, e da insuficiência de grande parte dos salários em virtude dos altos preços de muito do que se necessita ou se deseja. O Estado trata de diminuir seu papel e seu peso, oferecendo mais produtos e serviços, mas também estabelecendo controles e normas cada vez mais restritivas dessas atividades.

Entre 1999 e 2004, os salários estatais aumentaram, ainda que muito modestamente. A renda média dos assalariados se elevou paulatinamente e, além disso, entre 33 e 50% deles receberam estímulos variados: pagamentos por produção, divisas (dólares), alimentos, roupas e outros artigos. E, diante da conjuntura financeira favorável, em 2005, o Estado elevou notavelmente as pensões, o salário mínimo e as recompensas de um amplo setor. Invocou-se a justiça de aumentar as modestas aposentadorias daqueles que trabalharam tanto. Quase um milhão e meio de pessoas começaram a receber um incremento de 1,035 milhão de pesos ao ano, e a Assistência Social, que cuida diferencialmente das pessoas de baixas pensões e outras menos favorecidas, elevou os benefícios de outras 476 mil pessoas, em 154 milhões anuais. O salário mínimo aumentou de 100 para 225 pesos mensais, favorecendo 1,6 milhão de trabalhadores. Outro aumento, a técnicos de saúde e educação – totalizando 857 mil –, somou 523 milhões ao ano. Os novos pagamentos totalizaram 3,5 milhões de pesos anuais, a cargo do orçamento nacional. O governo declarou que esses incrementos, que faziam parte de uma política de aumentos que continuará, eram modestos diante das necessidades, e que se devia evitar um desequilíbrio financeiro interno. Começaram a ser distribuídos suplementos alimentícios e alguns novos bens domésticos duradouros para toda a população, utilizando-se a “libreta” que a Revolução implantou desde 1962 e que até os dias atuais vende ao consumidor produtos subsidiados.

O consumo de alimentos per capita diário foi se recuperando, até chegar em 2003 ao que se havia chegado em 1989, e subiu para 3.305 quilocalorias em 2004; atingiu o requerido em proteínas e manteve um déficit em gorduras. Aumentou a oferta estatal nos mercados “liberados” e em sua rede gastronômica. A produção de alimentos cresceu em vegetais e viandas, mas decresceu em gado e arroz, sob a intensa seca que, no ano de 2004, foi muito grave. A sociedade cubana é capaz de mitigar os efeitos de secas e ciclones tropicais, e de atender regiões afetadas ou prejudicadas; a defesa civil e o sistema de prevenção e atuação ante desastres naturais de Cuba se consideram entre os melhores do mundo, por sua cobertura e eficiência. Sua organização social e as prioridades que ela determina é que abrem caminho para essas conquistas. Isso é o que permite que um país que enfrenta fortes carências e dificuldades seja celebrado por sua destacada atenção à infância e à sua política de emprego, confronte o envelhecimento de sua população, destine somas ingentes ao gasto social, tenha um enorme programa de universalização dos estudos superiores e priorize os centros de saúde e educação em relação a construções e reformas. E também faz que seus cidadãos e seu governo expressem incomodidade e preocupações ante necessidades básicas que continuam insatisfeitas, como a escassez e o mal estado das moradias, ou ante a crise recente do abastecimento de energia elétrica.

Política econômica exterior

Cuba reorientou suas relações econômicas exteriores de maneira radical desde 1990. Como os demais países colonizados e neocolonizados, foi durante séculos um grande exportador de produtos primários, e desde sua libertação confronta, como todos, graves desvantagens e obstáculos para deixar de sê-lo, por sua debilidade relativa diante dos interesses dos países de maior desenvolvimento. Além disso, o bloqueio econômico sistemático dos Estados Unidos converte Cuba em um caso exemplar: o capitalismo não só criou o “subdesenvolvimento”, mas também se empenhou em impedir que um pequeno país livre oferecesse o exemplo de superá-lo por sua conta. Porque o caso de Cuba é original: ao aproveitar-se da soberania nacional e popular, pode combinar em suas relações internacionais seus recursos e suas forças com estratégias e táticas próprias, e obter notáveis graus de autonomia. Desde 1990, o setor externo sobreviveu ao desmoronamento dos anos de crise e realizou inúmeros negócios e gestões, sempre enfrentando a penúria de créditos e as baixas condições financeiras e comerciais agravadas pelo capitalismo atual. Apesar de tudo, continua avançando rumo a uma situação mais favorável. O dinamismo do turismo marcou os anos 1990, mas o níquel manteve a importância do setor produtivo exportador, e o aumentará; também se exportam sucos cítricos, rum, tabaco, mel e outras mercadorias. Medicamentos e equipes de saúde estão na vanguarda das exportações não tradicionais atuais, com franca tendência para a ampliação. Os serviços de alta qualificação, sobretudo no setor de saúde, dão atualmente uma contribuição extraordinária para a balança comercial.

Nesse período, o intercâmbio com a América Latina e o Caribe cresceu de uma proporção ínfima para 28,3% do total de Cuba em 2003, mas a metade do comércio desse ano foi com a Venezuela. As relações entre os dois países deu um novo salto desde dezembro de 2004, quando se concretizou a proposta do presidente Hugo Chávez da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), uma integração realmente latino-americana contra os instrumentos neocoloniais do imperialismo. Em abril de 2005, Cuba e Venezuela estabeleceram formalmente vínculos excepcionais. Em relação aos combustíveis, passou-se do simples fornecimento venezuelano em condições vantajosas a relações que abarcam todos os campos, o que impulsionará a produção, o refino, a tecnologia e os transportes cubanos. Puseram-se em marcha projetos mistos de desenvolvimento siderúrgico, de níquel e cobalto, de agricultura, energia elétrica, infra-estrutura ferroviária, aeronáutica civil, transporte marítimo, reparação naval e construção de embarcações, moradia, pesca, empresas culturais, artigos desportivos, produção animal e vegetal. Firmaram-se acordos-padrão em vários campos. Cuba compra, de início, bens de produção e de consumo da indústria venezuelana, no valor de US$ 412 milhões. O intercâmbio de filiais bancárias e as isenções aduaneiras e de impostos sobre utilidades aprovadas abrem caminho para uma integração mais profunda. Cuba multiplica e amplia os terrenos de sua colaboração em saúde e educação, que já era a maior entre dois países na América, cooperando para que a Venezuela consiga um extraordinário desenvolvimento nesses campos.

O desenvolvimento anterior de relações políticas bilaterais fraternas e de colaboração, sobretudo em missões de saúde e no abastecimento de combustíveis, preparou esse salto. Na realidade, Venezuela e Cuba podem se integrar até esse ponto porque seus poderes políticos e seus projetos de país lhes possibilitam a autonomia e o domínio sobre seus recursos, imprescindíveis para tais resultados. A colocação em prática da ALBA pela Venezuela e por Cuba mostra ao continente que é possível uma associação profunda de iguais, proveitosa para todos, e fortalece a via para uma integração regional independente que articule sócios e situações mais heterogêneas que as delas. A Petrocaribe, fundada em junho de 2005, é outro passo multilateral da ALBA que inclui Cuba.

Crescem rapidamente as relações com a China. Em novembro de 2004, os dois países firmaram acordos que viabilizaram o crédito e o comércio. Duas novas empresas mistas deverão produzir mais de 70 mil toneladas métricas de níquel por ano, com investimento chinês de US$ 1,8 milhão. Já funcionam outras duas empresas mistas que produzem medicamentos biotecnológicos. Esperam-se ampliações nessas áreas e realizações em siderurgia e outras. A associação com a Sherritt, do Canadá, no ramo do níquel, tem sido muito positiva e as duas partes acordaram recentemente um novo investimento que duplicará a produção. A combinação que resultou na maior entrada de divisas pelas exportações de bens e serviços, turismo, intercâmbios favoráveis, remessas familiares e política monetária conseguiu, em 2004, que, pela primeira vez desde a crise, a balança de pagamentos fosse positiva. A reserva de divisas passou de quase zero para US$ 1,47 milhão. A política econômica e a posição internacional de Cuba têm se fortalecido.

Embora cresçam em valor e importância seus produtos não tradicionais e seus serviços de alta qualificação, Cuba ainda é um grande exportador de produtos primários. Além disso, está muito longe de ter autossuficiência alimentar. Desde fins de 2001, abriu-se um canal de compras à vista de alimentos nos Estados Unidos, no valor de cerca de US$ 400 milhões anuais, que supre um terço de suas importações. Medidas do governo Bush limitam seu crescimento, mas cada vez mais produtores e empresas dos Estados Unidos interessados lutam por essa relação, apoiados por muitos políticos dos dois partidos estadunidenses.

O presidente dos Estados Unidos Barack Obama cumprimenta o presidente cubano Raúl Castro, em encontro histórico durante a Cúpula das Américas, na Cidade do Panamá, em abril de 2014 (Amanda Lucidon/White House)

 

Balanço e desafios

Apesar de todos os elementos positivos aludidos, os limites de seu desenvolvimento acarretam para Cuba situações difíceis, a partir do duplo efeito da crise aguda dos anos 1990 e do agravamento da posição da maioria dos países por causa do altíssimo grau de centralização atual do sistema capitalista mundial e da natureza de sua forma dominante, transnacional e de finanças parasitárias. Os “subdesenvolvidos” são muito vulneráveis em suas relações internacionais, e os poderes maiores do capitalismo os empobrecem e os subjugam, combinando meios econômicos e extraeconômicos. Cuba enfrenta o intercâmbio desigual e o escasso controle das condições em que efetua uma parte importante de suas relações econômicas, é prejudicada pelas ações dos grandes capitais internacionais, e além disso obter financiamentos é muito difícil e oneroso e o país tem um alto endividamento externo. Ademais, os Estados Unidos hostilizam Cuba sistematicamente, sem respeitar a legalidade internacional nem a soberania de outros países. Tudo isso torna mais relevante que resista com êxito, que sua organização social privilegie as maiorias e que estas desfrutem de uma vida digna e ponham em prática um projeto nacional e uma solidariedade notável com muitos povos da América e do mundo.

Por outro lado, em consequência da crise dos anos 1990 – e das medidas adotadas –, têm crescido as desigualdades sociais, o que afeta a essência igualitária do sistema de transição socialista cubano, quanto à redistribuição de riqueza e de oportunidades. Por causa da existência de um mercado de produtos e serviços escassos, do desempenho de tarefas que passaram a ter grande remuneração e de certos aspectos da conjuntura, determinados grupos e indivíduos obtiveram mais dinheiro e situações vantajosas. Grandes setores de trabalhadores, como os da educação e da saúde, conservaram seu alto status social, mas sua situação material se deteriorou. A desigualdade principal reside na renda e no acesso a bens de consumo. Ela está associada à dupla moeda, e muitos não dispõem da mais forte por realizar o trabalho mais complexo ou por ter atitudes individuais merecedoras de maior reconhecimento da sociedade. As vantagens são obtidas sobretudo em atividades relacionadas com a economia mista, o turismo, a recepção de remessas – um fato aleatório – e uma ampla gama de atos que vão desde a oferta privada de serviços e produtos até o lucro de intermediários e negócios ilegais, nas duas moedas. Os preços informais em moeda cubana ainda são demasiado altos para as rendas pessoais e familiares da maioria. A corrupção é muito combatida, mas de modo obscuro desempenha papéis sociais na Cuba atual.

A cultura política dos cubanos é decisiva, e duas características principais se tornam muito relevantes. A primeira, a atitude ante os objetivos do trabalho e da relação indireta entre seus resultados gerais e as remunerações pessoais – característicos da transição socialista cubana, tão diferentes do que é normal no capitalismo –, segue se manifestando na abnegação com que massas enormes de trabalhadores e técnicos deram e dão continuidade à produção e aos serviços, em novas condições em que os fins do trabalho e das remunerações socialistas se debilitam e se obscurecem, e se reforçam a remuneração direta e o egoísmo. A segunda característica é a peculiar relação com o consumo criada pela Revolução, que se tornou parte da cultura cubana contemporânea e que tem resistido à tremenda ofensiva de uma década de mudanças e influências que em grande medida favorecem modificações nas necessidades e nos desejos, e também à adoção de representações e relações capitalistas. Apesar da deterioração que registra, a relação com o consumo continua sendo um valor socialista e um fator decisivo para a estratégia nacional e o desempenho econômico de um país no qual o apoio da maioria é indispensável. Essas duas características expressam a permanência que as mudanças socialistas fundamentais têm conseguido manter nas relações sociais.

A consciência social avançada tem dado ao sistema um altíssimo grau de autonomia política, que a tem utilizado para tomar decisões e conduzir o país nas conjunturas destes anos. A sagacidade, a previsão, a qualidade da condução de massas e a combinação de flexibilidade tática e estratégica sujeita aos princípios de Fidel têm sido características decisivas na atuação desse poder político. O desgaste do discurso político já era notável em meados dos anos 80, e, ainda que a retificação tenha oferecido uma injeção positiva, os anos mais críticos que se seguiram, sem dúvida, deterioraram em certa medida a credibilidade e a aceitação do regime. Entretanto, ele nunca perdeu sua legitimidade, e a firmeza e a eficiência de sua atuação em meio à tormenta lhe permitiram recuperar terreno. A administração pública e a manutenção da ordem se baseiam no consenso, e não na repressão. O mesmo poder político que garante todas as mudanças e as medidas tão diversas da transição atual é entendido claramente como defensor do socialismo e da soberania. Atualmente, é o eixo da situação cubana e depositário das esperanças da maioria.

A estrutura social cubana atual é transicional em dois sentidos: por um lado, é de transição socialista, porque reproduz as condições que dão continuidade a esse tipo de regime, e este, por sua vez, é a base da forma de governo; por outro lado, está em um processo de reinserção limitada no sistema de economia mundial controlado pelo capitalismo, mas o faz de tal modo que até agora maneja todas as suas variáveis favoráveis para manter o controle, tomar decisões e redestinar recursos, ou seja, para continuar sendo de transição socialista em vez de realizar uma integração progressiva para o capitalismo mundial. Baseia-se em seu tipo de relação entre o poder econômico e o poder político, e no consenso majoritário com que conta. Ainda que com diferenças entre si, um e outro fundam sua legitimidade na Revolução sucedida e no regime de transição socialista, e não na reinserção em curso.

As tensões fundamentais não se dão atualmente no terreno da economia ou da política do dia, e sim no plano ideológico, ou, mais exatamente, em um terreno cultural em que as ideologias estão incluídas. Naturalmente, nessa luta, as influências externas de cunho capitalista são mais fortes que as de cunho socialista. De maneira muito particular, Cuba também participa da atual guerra cultural mundial. Desde 2000, está em curso uma ofensiva cultural cubana, que começou com enormes mobilizações a partir de uma questão pontual, a devolução do menino Elián Gonzáles, retido em Miami por seus familiares exilados com apoio do governo dos EUA, que se converteu em uma reafirmação sistemática do anti-imperialismo, um atributo essencial para o socialismo cubano. Mas o plano interno, como é usual, é o decisivo. Perduram as gigantescas demonstrações populares, as divulgações políticas sistemáticas e o funcionamento de organizações de massas e políticas. Foi implementada uma enorme expansão das ações educacionais e de seu lugar na vida cultural. Realizam-se campanhas contra a corrupção e as falhas éticas de funcionários públicos. De muitas maneiras, reafirma-se o caráter socialista do processo. Diante da escalada de agressões e ameaças do imperialismo, em 2002, as organizações de massas, apoiadas por um abaixo-assinado de quase 8 milhões de cidadãos, pediram à Assembleia Nacional uma reforma constitucional, em defesa dos artigos 3 o e 63. A Assembleia aprovou uma emenda ao artigo 3 o que estabeleceu que o sistema político e social socialista é irretocável, outra ao artigo 11 o que declarou a nulidade de toda a negociação efetuada sob ameaça ou coação vinda do exterior, e também a eliminação da faculdade da Assembleia de reformar o sistema econômico, político ou social, direito que somente o povo poderá exercer.

As medidas contra a expansão das desigualdades sociais, a pobreza e o desvalimento de setores da população e o risco de sua conversão em fatos “naturais” são parte da mesma batalha cultural. Entre suas ações estão a incorporação ao estudo e ao trabalho por meio de bolsas a uma grande parcela de jovens desfavorecidos, atenção qualificada às crianças e aos idosos, ampliação do trabalho social, solidariedade entre todos os cubanos, sem exclusões, como um valor que faz frente ao egoísmo e ao afã do lucro. O auge da atividade internacionalista na América Latina e em outras regiões, sobretudo no setor da saúde, fortalece esse valor e sua essência socialista, diverso da “ajuda humanitária” e da filantropia capitalistas. Manter de maneira sistemática uma redistribuição justa da riqueza social é um atributo essencial para o socialismo cubano, e isso só será possível se o poder político tiver controle suficiente sobre a destinação de recursos, que é a via utilizada. O que se poderia ver como um problema de distribuição tem na prática implicações de alcance muito maior. O sistema cubano tem mantido sob controle as variáveis fundamentais da dimensão econômica, a política social, o sistema político, os meios de comunicação, a educação e outros circuitos da produção espiritual.

Esse é o contexto do processo recente de centralização da atividade econômica, que aumenta as capacidades da direção estatal de controlá-la, tomar as decisões importantes, levar adiante as iniciativas econômicas, otimizar o uso dos recursos, redistribuir riquezas e lutar contra a corrupção e a formação de grupos privilegiados e com interesses setoriais no sistema. A ação se dá mediante instrumentos legais que centralizam todos os ingressos em divisas e sua operação em uma conta única no Banco Central de Cuba e regularizam estritamente as autorizações para seu uso, novas regulamentações do comércio exterior, reestruturação do setor de turismo e outras disposições. Por suas finalidades, o processo é irreprochável para uma sociedade socialista, mas há uma preocupação com possíveis prejuízos na eficiência empresarial e administrativa. Analisado por uma perspectiva mais ampla, é mais uma ação do complexo e permanente combate dos processos de transição socialista – que realmente o são – contra o perigo de reabsorção pelas potências do sistema mercantil capitalista e sua cultura. E pode se relacionar também com a cultura gerada por todo o processo nacional de libertação e de justiça social cubano, desde o século XX, que combina as tradições de cidadania e democracia com a apelação a organismos muito poderosos e ideologias de grande unificação para a execução dos projetos.

A cidade histórica de Trinidad, em Cuba, é um Patrimônio Mundial da Humanidade desde 1988 (Bud Ellison/Creative Commons)

O sistema político funciona normalmente, regido pela Constituição de 1976 e suas modificações. No terreno eleitoral, uma Assembleia Nacional de 609 deputados e um Conselho de Estado são eleitos a cada cinco anos, enquanto os delegados às Assembleias dos Poderes Populares municipais – totalizando 15.112 em 2005 – e provinciais são eleitos a cada dois anos e meio; vota a imensa maioria do eleitorado, em colégios com mesas compostas de vizinhos e sob a guarda de jovens estudantes. A campanha eleitoral se reduz à divulgação de dados dos candidatos, que são selecionados, no caso dos delegados, pelos eleitores em cada circunscrição, e no de deputados, pelas organizações de massas do país, entre os cidadãos com maior prestígio nas diversas atividades do país. Nenhum desses representantes eleitos é remunerado, devendo continuar em seu emprego habitual. A Constituição estabelece o direito de revogação dos eleitos. O Conselho de Estado é eleito pela Assembleia Nacional, e esta escolhe o presidente entre seus membros. A iniciativa das leis é usualmente do Executivo, que em geral possui as maiores atribuições do sistema. O Poder Judiciário é realmente autônomo. A instituição municipal tem um profundo conteúdo popular, embora com insuficiência de recursos próprios.

Em geral, o sistema cubano não se enquadra nas classificações habituais de “democracia representativa”, “autoritarismo” ou outras, nem nos conceitos usuais relativos aos sistemas políticos. Medido por suas realizações e por seus valores, destaca-se pela qualidade de vida e pelos direitos efetivos que desfrutam seus cidadãos, pela redistribuição sistemática de riquezas e pela honestidade da gestão pública, pela extensão das oportunidades, pela pacificação da existência e pelo respeito à dignidade humana. Seus problemas são diferentes daqueles dos países capitalistas. A transição socialista é obrigada a se basear na intencionalidade da estrutura social, no uso cada vez maior e mais bem planejado dos bens e das ideias com que conta e na participação democrática cada vez maior da população, porque ela é a força fundamental do regime, e sua motivação e eficiência dependem de que se comprometa realmente com uma estrutura social tão radicalmente nova e diferente.

Os cubanos têm percorrido todo o caminho “moderno” da individualização, e cada vez mais aprendem a criar e ampliar vínculos de solidariedade para enfrentar e superar a modernidade mercantil capitalista. Se sua extraordinária cultura política se mobilizar ainda mais e exercer seu discernimento e sua ação para enfrentar os problemas e perigos reais atuais, se se utilizarem suas ideias, opiniões, iniciativas e esforços, essa cultura será decisiva para desenvolver as pessoas e as instituições no sentido socialista. O apolitismo e o pensamento e sentimentos conservadores têm registrado avanços na nova etapa iniciada nos anos 90. Mas não estão generalizados; Cuba está no meio de uma intensa batalha de valores. Deve derrotar as crenças de que as relações e representações capitalistas são algo determinado, de origem externa, que é inevitável aceitar. E seguir impedindo que se converta em algo “natural” a existência de desigualdades sociais e hierarquias, em consequência do poder do dinheiro. Está se dirimindo também a questão crucial do vínculo ou da dissociação entre o cubano e o socialismo, depois de estarem unidos na identidade nacional durante décadas. Identidade e nacionalismo têm integrado em seu núcleo a justiça social, o que os enriqueceu decisivamente e significou um aporte muito valioso de Cuba para o pensamento e para as lutas pela libertação do chamado Terceiro Mundo. As reelaborações do problema devem constituir um aspecto central da cultura cubana atual.

A Revolução destruiu os sentidos da sujeição da sociedade ao poder da república burguesa neocolonial, mudou a vida social, levantou seu próprio sistema de relações e instituições sociedade-poder e sociedade-Estado, e fez da unidade um princípio de uso quase universal. Atualmente, Cuba constata o vigor e a complexidade de suas diversidades sociais antigas e emergentes. A crise dos anos 1990 e as mudanças e desigualdades sociais recentes têm contribuído muito, mas seria errôneo reduzir a questão a esses elementos ou crer que uma diversidade social ativa expresse a debilidade do Estado. Esse erro participa da funesta confusão entre o Estado e o socialismo que tantos danos causou nas experiências do século XX. A diversidade social em movimento é uma grande riqueza do país e um potencial de renovação de todos os aspectos da vida social, que pode fortalecer muito o socialismo, caso seus ideais, suas atividades e suas organizações sintam que o sistema é seu veículo, e caso os órgãos e a cultura socialista sejam capazes de hegemonizá-la.

Cuba socialista é uma alternativa latino-americana, com um sistema social e uma estratégia que lhe permitem conservar sua maneira de viver, sua soberania nacional e sua autonomia no mundo atual, uma opção que existe e mostra – com suas conquistas, realidades, insuficiências e problemas – que é possível viver de maneira mais humana e que os países podem ser outra coisa que não lugares de contrastes inaceitáveis, frustrações e iniquidades. Os perigos e as tarefas que Cuba tem diante de si não podem ser enfrentados por um país dependente, seja pequeno ou grande: só pode fazer isso um país que tome suas próprias rédeas, um país em que as pessoas mudem a si mesmas e busquem ser mais plenas. Mas não lhe bastará persistir e resistir. Diante das opções e dos problemas, acertará se avançar no caminho do socialismo, em vez de se deter ou retroceder. Entre esses avanços estará a multiplicação dos participantes sistemáticos no controle e nas decisões da economia, a política e a reprodução das ideias, e a elaboração de um projeto socialista mais avançado, integrador, complexo, capaz e participativo do que os que têm existido até os dias atuais. Estará a continuação da estratégia econômica, com base na premissa de que seu primeiro objetivo é o bem-estar da população, o aproveitamento racional dos recursos e o aumento de eficiência, além da obtenção de mais autonomia. Estará pôr em primeiro plano a batalha pelo predomínio dos vínculos de solidariedade sobre os egoístas e individualistas, e fazer com que a liberdade e o interesse social se complementem.

A cidade antiga de Havana, e suas construções, também declarada Patrimônio Mundial em 1982 (Andrzej Wrotek/Creative Commons)

 

(atualização) 2005 – 2015

 por Emir Sader

Em 31 de julho de 2006, o mundo foi surpreendido pela notícia de que Fidel Castro estava se licenciando do governo cubano por causa de uma cirurgia. O poder, então, passava às mãos de seu irmão, Raúl Castro. Pouco menos de dois anos depois, em 19 de fevereiro de 2008, o líder máximo da revolução cubana renunciou à presidência da República. E, cinco dias mais tarde, Raúl Castro foi eleito presidente do Conselho de Estado. Assim, depois de praticamente meio século de comando ininterrupto, Fidel Castro se retirava do dia a dia político cubano, se limitando, a partir daí, a escrever artigos no jornal Granma e a receber personalidades ou delegações em visita à ilha. Desse modo, estava aberto o caminho para que Raúl colocasse em prática as novas diretrizes do regime.

Ainda em 2006, o governo anunciou o término do período especial, iniciado com o colapso do regime soviético e do campo socialista. A decisão se vinculava às novas relações comerciais estabelecidas pelo país, especialmente com a Venezuela, com o Brasil e com a China. Raúl Castro anunciou também que o Estado cubano passaria por uma atualização: um novo modelo econômico começaria lenta e gradualmente a mudar o cotidiano da população. E ele poderia ser resumido nas seguintes medidas:

  1. Retomada da reforma econômica interrompida em 2000, com a diversificação do comércio internacional, com a descentralização de decisões estratégicas, com a concessão de facilidades para o investimento estrangeiro e com a garantia de maior autonomia decisória às empresas estatais;
  2. Desenvolvimento de novas formas de autogestão econômica (empresas familiares, trabalho autônomo etc.), especialmente na área da agricultura e no setor de serviços, de maneira a tornar viável aos cubanos a dupla condição de produtor e proprietário;
  3. Planificação e controle democráticos da produção e dos serviços, de acordo com prioridades locais e em coordenação com as determinações nacionais. Estabelecimento de relações monetário-mercantis contratuais entre todos os setores envolvidos em um projeto;
  4. Incremento ao regime de propriedade mista na maioria dos setores da economia. Desenvolvimento de um empresariado cubano capaz de estabelecer empresas em parceria com o Estado;
  5. Incremento do número de trabalhadores autônomos e de sua importância no conjunto da economia. Expedição de licenças para o trabalho autônomo e cobrança de impostos de acordo com a renda auferida anualmente por esses profissionais;
  6. Redução da presença do Estado na economia e desburocratização da atividade econômica;
  7. Redefinição do papel orientador e regulador do Estado, mediante a elaboração de um plano que garanta os interesses nacionais básicos;
  8. Desenvolvimento de um sistema empresarial que comporte empresas estatais, mistas e privadas, preservando os serviços públicos fundamentais;
  9. Aperfeiçoamento da política fiscal e financeira, com o estabelecimento de um sistema de impostos progressivos sobre a renda, bem como sobre o lucro de cubanos e estrangeiros residentes no país, além da cobrança de impostos indiretos ligados ao consumo ;
  10. Eliminação da dupla moeda, com o estabelecimento de uma moeda única, que venha a ganhar convertibilidade internacional;
  11. Estabelecimento de um regime salarial baseado no princípio da isonomia e capaz de reconhecer as diferenças de qualificação, produtividade e condições de trabalho;
  12. Eliminação do imposto de troca sobre o dólar;
  13. Unificação do comércio, com o fim da divisão entre lojas para “cubanos” e para “turistas”. Adoção de uma política de preços de bens de consumo com base no mercado internacional. Aplicação de imposto indireto sobre o consumo.
  14. Fim da livreta de abastecimento. Instituição de subvenções diretas à população de baixa renda, sob supervisão de órgãos do Poder Popular;
  15. Criação de uma nova cultura econômica entre dirigentes, executivos e trabalhadores, que coloque no centro das análises a rentabilidade e a eficiência. Promoção da competição econômica a fim de elevar a qualidade da produção de bens e serviços. Vinculação dos salários aos resultados da atividade, aperfeiçoamento da política de preços e autofinanciamento pleno como critério essencial das atividades econômicas, de forma a reduzir ao mínimo as subsidiadas;
  16. Distribuição de porcentagem dos lucros da empresa entre os trabalhadores;
  17. Fim das travas à produção agropecuária e aceleração da entrega das terras ociosas cultiváveis aos camponeses e às cooperativas;
  18. Estabelecimento de redes e mecanismos de crédito para camponeses, cooperativas e demais trabalhadores;
  19. Liberação de todos os produtos agropecuários e de pesca para consumo do mercado doméstico;
  20. Elaboração de uma nova legislação para regular o aluguel de imóveis de cubanos para cubanos, de maneira a aliviar o déficit habitacional, assim como do aluguel de imóveis para estrangeiros;
  21. Liberação da compra e venda de imóveis entre cubanos;
  22. Acesso livre a bens duráveis, tais como automóveis, computadores etc.;
  23. Eliminação do chamado “mercado negro” de bens e serviços.

Tais orientações vêm sendo colocadas em prática aos poucos, de forma que o Estado detenha absoluto controle sobre a abertura econômica. O resultado mais visível das mudanças é a maior entrada de investimentos estrangeiros e a criação de pequenas empresas privadas e de cooperativas. Um bom exemplo do primeiro caso foi a inauguração do porto de Mariel, construído pelo governo brasileiro, o que permitirá a Cuba a intensificação e a diversificação de seu comércio exterior.

Os cubanos também passaram a conviver com uma gama de impostos que varia de acordo com a atividade empresarial desenvolvida. Outra mudança importante aconteceu no sistema de previdência social. As idades para aposentadoria aumentaram em cinco anos: aos 60 anos para as mulheres, e aos 65 anos, para os homens.

No plano político, o marco mais significativo foi o início do processo de normalização das relações entre Cuba e os Estados Unidos, anunciado em dezembro de 2014. A reaproximação entre os dois países deve ser lenta. Já em abril de 2015, os Estados Unidos retiraram Cuba da lista de países patrocinadores do terrorismo. Com a iniciativa, Cuba poderá receber financiamento do Banco Mundial. Todavia, o fim do embargo econômico, financeiro e comercial imposto pelos Estados Unidos à ilha há mais de meio século, permanece. Seu fim deverá ser votado pelo Congresso norte-americano. De qualquer maneira, o início do entendimento entre os dois países representou – como o próprio governo norte-americano admitiu – o fracasso da política de bloqueio decretada por Washington.

Assim, combinado com a abertura do porto de Mariel, o processo de normalização das relações com os Estados Unidos deve permitir a Cuba avançar no processo de reformulação econômica interna e de reinserção internacional do país. 

La Bodeguita, na antiga Havana, um dos pontos turísticos mais importantes de Cuba, tem as paredes repletas de escritos e assinaturas de seus visitantes, dentre os mais ilustres estão Ernest Hemingway, Salvador Allende e Pablo Neruda (João Vicente/Creative Commons)

 

 

Bibliografia

  • INSTITUTO DE HISTÓRIA DE CUBA. Principales censos de la Isla de Cuba de 1768 a 1879. In: Historia de Cuba. La colonia. La Habana: Política, 1994. p. 466.
  • MORENO, Manuel Fraginals. El Ingenio. Complejo económico social cubano del azúcar. La Habana: Ciencias Sociales, 1978. t. III, p. 43-44.

Dados Estatísticos 

Indicadores demográficos de Cuba

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020*
População 
(em mil habitantes)
5.920 7.141 8.715 9.835 10.601 11.138 11.282 11.162 
• Sexo masculino (%) 51,64 51,09 50,84 50,60 50,39 50,24 50,28 … 
• Sexo feminino (%) 48,36 48,91 49,16 49,40 49,61 49,76 49,72 … 
Densidade demográfica 
(hab./km²)
53 64 79 89 96 100 102 101 
Taxa bruta de natalidade 
(por mil habitantes)**
31,60 35,44 26,45 16,55 15,44 12,46 9,6* 8,8 
Taxa de crescimento 
populacional**
1,99 2,15 1,60 0,53 0,62 0,27 -0,06 -0,26 
Expectativa de vida 
(anos)**
59,40 65,35 70,98 74,24 74,79 77,16 79,2* 79,3 
População entre 
0 e 14 anos (%)
36,35 35,06 37,59 31,69 23,17 21,65 17,32 14,1 
População com mais 
de 65 anos (%)
4,40 4,65 5,85 7,76 8,83 9,87 12,44 16,4 
População urbana (%)¹ 56,51 58,40 60,27 68,11 73,36 75,32 76,60 77,69 
População rural (%)¹ 43,49 41,60 39,73 31,89 26,64 24,68 23,40 22,32
Participação na população 
latino-americana (%)***
3,53 3,24 3,03 2,70 2,38 2,12 1,89 1,69 
Participação na 
população mundial (%)
0,234 0,236 0,236 0,221 0,199 0,182 0,163 0,145 

Fonte: ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
¹ Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision 

* Projeção. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Indicadores socioeconômicos de Cuba

1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020*
PIB (em milhões de US$ a 
preços constantes de 2010)
44.721,4 38.731,0 64.328,2
• Participação no PIB 
latino-americano (%)
1,690 1,082 1,293 … 
PIB per capita (em US$ a 
preços constantes de 2010)
4.218,6 3.477,1 5.693,6 … 
Exportações anuais 
(em milhões de US$)
5.415,0 1.675,3
Importações anuais 
(em milhões de US$)
7.417,0 4.795,6 … 
Exportações-importações 
(em milhões US$)
-2.002,0 -3.120,0
Dívida externa total 
(em milhões de US$)
10.961,3
População Economicamente 
Ativa (PEA)
3.435.692 4.150.477 4.421.870 4.940.558 5.172.872 
• PEA do sexo 
masculino (%)
70,14 67,59 65,72 62,67 60,41
• PEA do sexo 
feminino (%)
29,86 32,41 34,28 37,33 39,59 
Matrículas no 
ciclo primário¹
1.550.323 885.576 1.004.578 852.744 … 
Matrículas no
ciclo secundário¹
1.127.591 1.073.119 789.927 808.904 … 
Matrículas no
ciclo terciário¹
146.240 242.366 158.674 800.873 … 
Professores 331.691 … 
Médicos 6.609 6.152 15.247 38.690 65.997 76.506 … 
Índice de Desenvolvimento 
Humano (IDH)³
0,681 0,729 0,742 0,824
[/su_table]
Fontes: CEPALSTAT
¹ UNESCO Institute for Statistics
² Calculado a partir de dados do Global Health Observatory da Organização Mundial da Saúde 
³ Fonte: UNDP. Countries Profiles
* Projeções. 
Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados ou no documento indicados.

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