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Bolívia

Por Álvaro García Linera

Nome oficial Estado Plurinacional de Bolívia
Localização Região central da América do Sul,
a sudoeste do Brasil
Estado e Governo¹ República presidencialista
Idiomas¹ Espanhol, quíchua e aymará (oficiais), línguas estrangeiras, guarani, outras línguas nativas. A constituição de 2009 designou o espanhol e todas as 36 línguas indígenas como oficiais, inclusive algumas extintas
Moeda¹ Boliviano
Capital¹ La Paz (1,8 milhão de hab. em 2014)
Superfície¹ 1.098.580 km²
População² 10,1 milhões hab. (2010)
Densidade demográfica² 9 hab./km² (2010)
Distribuição da População³ Urbana (64,43%) e
rural (33,57%) (2010)
Analfabetismo⁴ 7,8% (2011)
Composição étnica¹ Mestiços de brancos e ameríndios (68%), indígenas (20%), brancos (5%), cholo (mestiço de branco e indígenas, 2%), negros (1%), outros (1%), não especificado (3%). Dos respondentes 44% indicaram sentirem parte de algum grupo indígena, predominantemente quíchua ou aymará (2009)
Religiões¹ Católica romana (76,8%), evangélica e pentecostal (8,1%), protestante (7,9%), outras (1,7%),
nenhuma (5,5%) (2012)
PIB (a preços constantes de 2010)⁴ US$ 23,21 bilhões (2013)
PIB per capita (a preços constantes de 2010)⁴ US$ 2.221,2 (2013)
Dívida externa⁴ US$ 7,8 bilhões (2013)
IDH⁵ 0,687 (2013)
IDH no mundo e na AL⁵ 113° e 25°
Eleições¹ Presidente e vice-presidente eleitos por votos direto para mandato de 5 anos, com direito a uma reeleição. Senado composto por 36 parlamentares, eleitos direta e proporcionalmente em distritos eleitroais plurinominais; e a Câmara dos Deputados com 130 membros, sendo 70 eleitos diretamente por maioria simples em distritos uninominais, 53 indiretamente de forma proporcional em distritos uninominais e 7 eleitos diretamente – repartidos em áreas não-contíguas, áreas rurais em 7 de 9 estados – por maioria simples em distritos uninominais. Senadores e deputados exercem mandatos de 5 anos.
Fontes:
¹ CIA World Factbook
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Database
³ ONU. World Ubanization Prospects, the 2014 Revision
⁴  CEPALSTAT
⁵  ONU/PNUD. Human Development Report, 2014

A República da Bolívia nasceu em 1825, fruto de uma combinação do êxito militar dos Exércitos Libertadores, que vinham da Colômbia liderados por Simón Bolívar e José Antonio de Sucre, e da revolta de dezenas de guerrilhas locais que, durante quinze anos, enfraqueceram a presença militar espanhola na região.

A base territorial do novo Estado foi a antiga jurisdição colonial da Audiência de Charcas, dependente do vice-reinado de Buenos Aires desde 1776, e uma parte dos circuitos comerciais relacionados à mineração de prata na montanha de Potosí.

Encravada no centro do continente, a nova república foi aceita pelos novos Estados latino-americanos como um território entre a Argentina, vista como potência hostil pelo libertador Bolívar, e o Peru, que o próprio libertador considerava uma empresa demasiado arriscada para a Gran Colombia, caso anexasse Charcas. Concebida geopoliticamente como um Estado “tampão” entre duas potências, as elites locais, proprietários de fazendas, letrados e funcionários do antigo sistema colonial assumiram a tarefa de construir a nova república, o que permitiu a preservação da maior parte das hierarquias sociais coloniais.

Um elemento decisivo para entender as características da posterior institucionalidade republicana encontra-se no fato de que os setores populares ficaram à margem da sua formação. No caso dos povos indígenas, que constituíam 90% da população total, suas elites políticas foram destruídas após a tentativa de emancipação e de formação de uma república indígena aymará, dirigida pelo caudilho Tupac Katari, em 1781. Em outros setores populares de pequenos proprietários que haviam participado das guerras de guerrilhas contra os espanhóis, de mais de cem líderes regionais, só três ficaram com vida para participar do momento da fundação do Estado.

A nova elite republicana rapidamente substituiu a sua fidelidade à burocracia colonial pelos ideais liberais e modernistas das demais repúblicas.

Entre 1825 e 1880, a política boliviana esteve dominada pela presença intempestiva de caudilhos militares que, liderando golpes de Estado, assumiram o governo. Apesar de terem sido realizadas esporadicamente eleições para parlamentares, presidentes e assembleias constituintes, desde a década de 1830, os poucos governos civis tiveram seus mandatos interrompidos por reiterados golpes militares.

Pode-se falar de um longo ciclo político caracterizado pelas facções militares que fizeram do Exército a principal instituição de acesso e garantia ao poder político. As eleições entre facções civis ou caudilhos militares (diferenciados pela simpatia às políticas liberais ou protecionistas) foram componente aleatório na formação de uma tênue legitimidade governamental, considerando que a hegemonia foi impossível, visto que os índios careceram de direitos da cidadania desde o momento da formação da república em 1825.

Não obstante o fato de ter sido discutida a questão dos direitos políticos dos indígenas, até 1952, os índios não podiam votar nem ser eleitos para funções públicas, devido à vigência de um sistema “censitário” que excluía desses direitos os que não sabiam ler ou escrever, os que não tinham uma renda mínima e estavam em relação de servidão, isto é, os índios.

Apesar desse apartheid político, o Estado republicano, tal como o Estado colonial, negociou com as autoridades indígenas um conjunto de tolerâncias mútuas em relação aos níveis de tributos que os índios deviam pagar em troca do reconhecimento da propriedade de terras de comunidade. Em algumas ocasiões, a força de massa mobilizável dos índios e dos artesãos urbanos foi utilizada pelos caudilhos para inclinar militarmente a balança em favor de uma ou outra facção.

Com o tempo, isso permitiu a formação de autoridades indígenas de caráter regional, as quais paulatinamente foram o suporte organizacional de uma segunda grande rebelião indígena sob a condução de um líder aymará, Willka Zárate, que construiu um exército e um governo autônomo indígena e proclamou a “liberação dos povos aborígines”, em 1899. Essa rebelião, surgida no momento de uma guerra civil entre elites políticas pela transferência da sede de governo localizada no sul (Chuquisaca) para a cidade de La Paz, foi derrotada rapidamente e causou um ciclo de fragmentação local do movimento político indígena.

Antes desses acontecimentos, dois processos políticos foram importantes. O pri­­meiro foi a perda territorial do Estado, devida tanto à guerra com o Chile (1879-1882) quanto aos tratados com o Brasil. Contabilizando as cessões decorrentes da Guerra do Acre com o Brasil (1902-1903) e da Guerra do Chaco com o Paraguai (1932-1935), a Bolívia perdeu mais do que a terça parte de seu território, o que influenciou economicamente o destino do país e também a formação de uma consciência coletiva de mutilação e derrota histórica.

O outro processo foi o de consolidação, a partir da Convenção Nacional de 1880, de um sistema partidário regular que deu lugar ao que passou a se chamar o período da democracia censitária, que durou até o início da Guerra do Chaco, em 1932.

 

Fase do bipartidarismo

A partir da Convenção, as oligarquias civis empresariais deram lugar a um sistema de partidos relativamente estável, composto de duas grandes vertentes – liberais e conservadores –, que assumiram a condução do Estado como protagonistas.

Compartilhando o ideal de uma modernização econômica e política do país – mas sem os índios como sujeitos políticos –, conservadores e liberais implementaram uma série de reformas institucionais, como o bicameralismo parlamentar, as eleições dos membros da Corte Suprema de Justiça, a garantia dos direitos individuais, a descentralização administrativa, a prática das coalizões parlamentares etc., e iniciaram um ciclo político de acesso ao governo e a legitimação governamental por meio de eleições.

Embora tenha consistido em um projeto de modernização política a cargo de uma elite letrada a serviço dos novos empresários da mineração, manteve-se a crença na inferioridade racial dos índios, que os impossibilitava de ter qualquer tipo de cidadania, ficando, simplesmente, sujeitos a um tipo de tutela de contenção a cargo do segmento social considerado “branco”. Até os setores mestiços – na verdade, urbano-populares vinculados ao trabalho artesanal – foram considerados fatores de dissolução social, suscetíveis de aceder algum dia à cidadania por meio de um longo processo de educação e regeneração cultural. Dessa maneira, a divisão de classes sociais (trabalhadores rurais, artesãos, operários, profissionais liberais, fazendeiros e empresários) e os direitos políticos adquiriam na Bolívia a forma de divisões raciais oficiais (índios, mestiços, brancos), que acrescentavam a força do discurso biologista das diferenças à legitimação política das relações de dominação.

Abraçando a moda liberal da época, a oligarquia considerou as contínuas perdas territoriais desse país perante seus vizinhos como incômodas mutilações de distantes territórios secundários suscetíveis de financiar indenizações que garantissem seu mais caro objetivo: a construção de estradas de ferro para viabilizar a exportação de minerais aos mercados externos. Assim, os liberais assinaram o tratado de 1904, pelo qual a Bolívia renunciou aos seus territórios e à saída para o mar no Pacífico, em troca de uma indenização monetária e da construção da estrada de ferro Arica–La Paz. Algo parecido ocorrera com o Tratado de Petrópolis em 1903, mediante o qual a Bolívia cedeu ao Brasil a província do Acre, na Amazônia, em troca de 2,5 milhões de libras esterlinas.

Esse bipartidarismo entre conservadores e liberais, logo denominados republicanos, começou a ruir em meados da década de 1920 por causa da crise econômica mundial, que reduziu as opções exportadoras do país, promovendo uma crescente resistência do novo proletariado mineiro, que começava a organizar-se para impedir que o salário fosse a única variável de absorção da crise econômica. Paralelamente, a contínua pressão dos fazendeiros sobre as terras da comunidade e sobre o trabalho servil dos índios levou a um novo ciclo de protestos e rebeliões locais que desestabilizaram o sistema de governo. Massacres operários, como o de Uncia em 1923, ou massacres indígenas, como o de Jesus de Machaca em 1921 ou o de Chayanta em 1927, provocaram a indignação das comunidades indígenas, a emergência do movimento operário e artesanal, além de novas ideias de reforma social que puseram em crise o ciclo político iniciado em 1880.

Embora a Guerra do Chaco tenha procurado canalizar a tensão social interna, de fato provocou uma modificação radical do sistema político. Com a morte de 50 mil pessoas por motivos e interesses que lhes eram desconhecidos, uma consciência coletiva contra as oligarquias mineiras dominantes se apoderou do país, tanto nos setores urbanos como nos rurais. A consigna “terras ao índio e minas ao Estado” começou a transformar-se num projeto de poder mobilizador que, com o tempo, conseguiu afastar o ideário liberal e darwinista da oligarquia mineira.

Vista de La Paz, capital da Bolívia, com a montanha Illimani ao fundo (Mark Goble/Wikimedia Commons)

Guinada sociopolítica

Foi esse momento do despertar de novas ideologias que propugnavam pela formação de uma nova hegemonia política. Os partidos marxistas – Partido Operário Revolucionário (POR) e Partido da Esquerda Revolucionária (PIR) – começaram a exercer influência sobre o movimento operário, enquanto um nacionalismo de esquerda e populista – Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) – começou a se organizar entre segmentos de jovens oficiais militares e de intelectuais das cidades. Por seu lado, os operários iniciaram um processo acelerado de sindicalização nas grandes empresas, ao passo que no campo trabalhadores rurais e “colonos”, camponeses índios subordinados às fazendas, empreenderam um longo processo de mobilização promovendo as “greves dos braços caídos” nas fazendas.

Entre 1937 e 1946, sucederam-se vários governos militares nacionalistas que, por meio de decisões executivas e reformas constitucionais, puseram fim ao liberalismo econômico predominante desde 1878 e promoveram a intervenção do Estado na economia, especialmente mineira, aboliram a servidão e decretaram a sindicalização obrigatória dos operários.

Se por um lado não se conseguiu executar a maior parte dessas medidas, devido à intervenção violenta das forças conservadoras que retornaram ao governo até abril de 1952, por outro, marcou-se um ideá­rio de reformas políticas com crescente apoio popular que desencadeou a revolução de 1952. A rebelião, iniciada como um golpe de Estado comandado pelo MNR, que reclamava a autenticidade de sua vitória nas eleições anuladas de 1951, transformou-se numa insurreição popular com ampla participação de operários, que derrotaram militarmente o Exército em três dias de enfrentamento urbano.

A presença de um partido com ampla base social e dos sindicatos com força militar organizada, que agiu como braço esquerdo do partido de governo, deu início à etapa de um sistema político democrático corporativista.

O governo do MNR, com seu líder Víctor Paz Estenssoro como presidente pressionado pelos trabalhadores insurretos, nacionalizou as minas de estanho (outubro de 1953), outorgou o direito de voto às mulheres e aos indígenas (que passaram a denominar-se, desde então, “camponeses”), decretou uma “reforma agrária”, mediante a abolição do latifúndio nas zonas de forte presença organizada das comunidades (os vales e o altiplano), e deu lugar a uma ampla democratização política e econômica no país. Assim, a estrutura de poder mineiro-latifundiária foi derrubada.

Entre 1952 e 1964, embora oficialmente existisse um sistema multipartidário de competência eleitoral, na verdade havia um sistema unipartidário de esquerda nacionalista que obtinha um pouco mais de 90% dos votos, principalmente dos índios camponeses que pela primeira vez votavam. Se a revolução por um lado produziu uma ampliação da cidadania política liberal que acrescentou ao padrão eleitoral de 200 mil a 1 milhão de pessoas, por outro, não conseguiu avançar no reconhecimento dos direitos políticos coletivos dos povos indígenas nem, muito menos, em uma articulação dos extensos sistemas de autoridade política das comunidades agrárias, razão por que as reformas se detiveram no âmbito de uma ampliação liberal de direitos individuais que, com o tempo, foi questionada por uma exigência de cidadania de base cultural e linguística.

Paralelamente, a então recém-criada Central Operária Boliviana (COB) transformou-se num ator político com capacidade de nomear ministros e pressionar pela implementação de políticas públicas.

Movendo-se entre o braço esquerdo do MNR e a autonomia organizativa dos trabalhadores, a COB foi o principal centro de resistência às crescentes tendências conservadoras no partido do governo que buscavam adequar-se às pressões norte-americanas, além de ser uma forma organizativa fundamental mediante a qual as classes trabalhadoras organizaram suas deliberações, ampliaram seus direitos e implementaram suas ações políticas. A nomeação de ministros operários e a cogestão da empresa mineira estatal Corporação Mineira da Bolívia (Comibol) foram os atos mais intensos dessa força política dos sindicatos operários.

 

Novo ciclo militar

Os camponeses-índios levaram adiante um processo de emancipação com relação à fazenda por meio de ocupações organizadas de propriedades por ex-colonos e comuneiros. Embora não existissem relações assalariadas no trabalho agrário, os camponeses rearticularam suas antigas formas de organização locais tradicionais e indígenas com o nome de “sindicato”, cujos níveis de condução geral e nacional foram cooptados por quadros do MNR. Um golpe de Estado em novembro de 1964 deu fim a esse período de coabitação entre partido e sindicato, iniciando um longo ciclo de governos militares, que se estendeu até 1982.

O golpe foi chefiado pelo general René Barrientos Ortuño, vice-presidente de Víctor Paz, que naquele momento representava o crescente poderio político do Exército, beneficiado com o financiamento e a ajuda militar da embaixada dos Estados Unidos. Usufruindo da mesma estrutura clientelista sustentada pelo MNR, os militares ocuparam as funções de governo e conseguiram mobilizar o apoio das redes sindicais camponesas contra os operários radicalizados, que rapidamente se opuseram ao regime militar. Foi durante essa gestão do governo militar que se detectou a presença de uma organização guerrilheira no país, e seu líder máximo, Che Guevara, foi assassinado no dia seguinte ao de sua prisão.

Os diferentes governos militares que se sucederam durante dezoito anos polarizaram o sistema político do país. Por um lado, o Exército, que atuou como articulador das facções empresariais vinculadas à nova mineração e a banca; por outro lado, a COB, que desempenhou o papel de centro unificador do nacional-popular de raiz operária e urbana. Nos dois casos, os partidos políticos careciam de importância, razão pela qual o sistema político se caracterizou pelo autoritarismo militar e por um campo político polarizado entre sujeitos corporativistas e não partidaristas.

Embora as ditaduras militares tenham deixado de pé o modelo desenvolvimentista na economia e a subordinação clientelista das organizações camponesas sob a denominação de “pacto militar-campesino”(pacto militar-camponês), se inclinaram para posições mais conservadoras ou progressistas, dependendo das alianças internas que faziam. Barrientos (1964-1969) favoreceu a entrega de recursos estatais ao novo empresariado mineiro, reduziu os direitos sociais dos trabalhadores, reprimiu os sindicatos operários e enfrentou a guerrilha de Che, enquanto Alfredo Ovando (1969-1970), com o apoio de intelectuais civis, nacionalizou a Gulf Company. Juan José Torres (1970-1971), um general de tendências esquerdistas, nacionalizou outras empresas mineiras e ofereceu o cogoverno à COB, enquanto o general Hugo Banzer Suárez (1971-1977) utilizou os recursos públicos e a dívida externa para apoiar os setores agroempresariais na região leste do país.

No final dos anos 1970, o modelo de desen­volvimento autoritário-estadista começou a vivenciar suas primeiras limitações. O surgimento de um movimento indígena nas regiões aymarás e o uso da força militar para acalmar as demandas mercantis dos camponeses nos vales (como o “massacre do vale de 1974”), somados à reivindicação política do movimento operário pelo retorno da democracia, confluíram na mudança de política internacional dos Estados Unidos impulsionada pela administração Carter, que apoiava a democratização do continente.

Entre 1977 e 1980, ocorreram três eleições gerais e quatro golpes de Estado que marcaram a crise terminal das ditaduras militares no país. Quatro grandes partidos competiram nessas tentativas de democratização: uma frente de organizações da esquerda moderada, a Unidade Democrática e Popular (UDP), composta da ala de esquerda do antigo MNR, do Partido Comunista Boliviano (PCB) e do Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR), contando com nascentes facções indígenas e o apoio da COB; o antigo MNR, dirigido pelo ex-presidente Víctor Paz, com posições conservadoras; a Ação Democrática Nacionalista (ADN), que era o partido criado pelo ex-ditador Banzer para proteger sua retirada das funções governamentais; e o Partido Socialista Uno (PS-1), dirigido pelo carismático líder Marcelo Quiroga Santa Cruz, com posições de caráter estritamente socialista.­

Nas sucessivas eleições, a coalizão de esquerda UDP conseguiu a vitória com pouco mais de um terço do eleitorado, tendo que depender do Congresso, com maioria conservadora, a decisão final tanto da nomeação presidencial como da governabilidade.

Vista panorâmica de Copacabana, cidade boliviana nas margens do Lago Titicaca (Filipe Fortes/Wikimedia Commons)

 

Ciclo de governos democráticos

Finalmente, em outubro de 1982, carentes de legitimidade interna e de apoio externo, os militares abandonaram o governo, entregando a administração estatal ao Congresso legitimado na eleição de 1980. Em meio a mobilizações sociais, o Congresso, com maioria de direita, escolheu o presidente esquerdista Hernán Siles Zuazo, dando início a um novo ciclo de governos democráticos que se estende até o presente.

O governo da coalizão UDP foi uma experiência falida que deu margem a que partidos restauradores das antigas consignas liberais (o “neoliberalismo”) impusessem sua hegemonia política durante os quinze anos seguintes. Com a herança da pesada carga da dívida externa, que passara de 300 milhões a 3 bilhões de dólares durante a última década das ditaduras, com uma economia mineira em decadência que iniciou a retração da economia, somada a uma inaptidão no manejo do aparelho estatal, o governo esquerdista provocou uma hiperinflação de 8.700% que culminou na sua renúncia e na convocação antecipada das eleições.

Os resultados eleitorais de 1985 marcaram um giro histórico no comportamento político da sociedade boliviana. Os partidos neoliberais obtiveram vantagem absoluta. O partido do ex-ditador Banzer obteve 28,5% da votação, enquanto o MNR conseguiu 26%, que, somados aos 8,8% do MIR e de outros pequenos partidos, permitiram que assumisse o governo, dando início a uma nova configuração no campo político.

Depois de 1985 e até 2002, nas eleições, as três forças neoliberais concentraram dois terços do eleitorado. Em 1989, o MNR obteve 23%, a ADN 22,7% e o MIR 19,6%, conseguindo esse último a presidência em uma aliança com o partido do ex-ditador. Em 1993, o MNR, que chegou ao governo, obteve 33% do eleitorado, seguido pela Aliança ADN-MIR com 20% e pelo partido de um empresário, Unidad Cívica Solidaridad (UCS), com 13%. As eleições nacionais de 1997 tiveram as mesmas características. Os três partidos obtiveram um total de 52% dos votos, acompanhados por outros partidos conservadores, como a UCS, que teve 15%.

A impossibilidade de vitória absoluta de qualquer um dos partidos deu lugar à realização de pactos de governabilidade entre os três grandes partidos – MNR, ADN e MIR – para a aplicação de políticas de livre mercado.

Desde 1985, as reformas estruturais de corte neoliberal assinadas pelo Consenso de Washington foram aplicadas de maneira estrita no país. As fronteiras foram abertas, o mercado de trabalho, liberalizado, o gasto público, reduzido, e as empresas estatais deficitárias foram fechadas enquanto as demais foram privatizadas. Paralelamente, teve início um conjunto de reformas políticas orientadas ao enfraquecimento da presença política dos sindicatos. Despediu-se uma geração inteira de trabalhadores, fecharam-se as empresas com sindicatos grandes e decretou-se a livre contratação, o que levou a um acelerado processo de dessindicalização que, em um espaço de cinco anos, reduziu drasticamente a capacidade de pressão política da COB. Mediante acordos políticos, ficou garantida a alternância no governo, teve início a reforma da Constituição, criou-se um tribunal constitucional dividido entre os partidos majoritários e abriram-se as portas para uma descentralização administrativa do tipo municipal que desmembrou, para as elites locais, a canalização das demandas e as pressões sociais.

Com isso, a política, formal e provisória, se descorporativizou e permitiu uma renovada relevância dos partidos políticos, mas com a particularidade de que os partidos mais influentes compartilharam um conjunto similar de crenças e de propostas de transformação estatal e política (o chamado modelo “neoliberal”), que voltou a fechar o espaço das competências e dos programas da sociedade no interior do campo político.

Desmantelada a base material da esquerda sindical (COB) e em meio à derrota política da esquerda partidária (UDP), o pensamento conservador e de direita, que se apresentava nos discursos como renovador e progressista, monopolizou o cenário das representações legítimas do mundo. Foram tempos esses, uma década e meia, em que os princípios de representação e visão de mundo dominantes, aceitos por governantes e governados, estiveram marcados pela ideologia do livre mercado, pela crença no papel desenvolvimentista do investimento estrangeiro e pela repartição multipartidária como sinônimo de governabilidade.

Isso levou a uma supervalorização do polo da direita, cujo poder simbólico foi de tal ordem que anulou qualquer contrapartida por parte das esquerdas sindicais ou partidárias, e criou a ilusão do fim da divisão entre “direita e esquerda” etc., enquanto as disputas e os desafios políticos giraram exclusivamente em torno das distintas maneiras de interpretar ou conduzir o pacote das reformas liberalizantes da economia e da política. Nesse caso, o centro político visto como equidistante das posições extremadas não foi centro do espaço político, mas centro do espaço político neoliberal, no qual a disputa ocorreu entre posições mais ortodoxas (MNR), mais “sociais” (MIR) ou mais institucionais (ADN) para a implementação do neoliberalismo. Portanto, podemos afirmar que nesse momento o campo político caracterizava-se por um tipo de unipolaridade multipartidária de grupos de direita.

 

Crise do modelo

No final do século XX, esse modelo de sistema político entrou em crise. Desde o ano 2000, estimulados pelos escassos resultados das reformas neoliberais e como forma de resistência às tentativas de privatização dos recursos hídricos estatais e comunitários (água), eclodiu um ciclo de insurreições indígeno-plebeias que transformaram o campo político. Os partidos tradicionais começaram a perder o peso eleitoral. Nas eleições nacionais de 2002, o MNR conseguiu 20% da votação, o MIR obteve 15% e a ADN apenas 3%, e com isso o fundo geral desses partidos teve uma redução de quase metade em relação às votações anteriores. O enfraquecimento eleitoral dos partidos conservadores foi ainda maior nas eleições municipais de dezembro de 2004, quando perderam dois de cada três dos antigos eleitores, ao obterem em conjunto somente 15,9% dos votos. Paralelamente, surgiram outros partidos formados por coalizões de movimentos sociais e de sindicatos agrários, como o Movimento ao Socialismo (MAS) liderado pelo dirigente social Evo Morales, que obteve nas eleições nacionais de 2002 o segundo lugar, com 19,4%, e também o Movimento Indígena Pachakuti (MIP) do caudilho aymará Felipe Quispe, com 5,6%. Todos eles desequilibraram o cenário político, por causa da importância dada aos indígenas na política eleitoral e, sobretudo, em virtude das propostas de mudança socioeconômica contrárias às políticas do livre mercado.

Nas eleições municipais, o MAS transformou-se na principal força política ao obter 17,5% da votação total e controlar cem dos 327 municípios existentes. Paralelamente, grande parte dos cidadãos começou a articular-se em novos e antigos movimentos sociais com aspirações políticas estatais. Tais movimentos, em algumas oportunidades, tiveram o mérito não apenas de exercer pressão com maior êxito do que o Parlamento, a fim de modificar determinadas políticas públicas (gestão da água, impostos, distribuição de terras, lei do hidrocarboneto, mudança do presidente, assembleia constituinte etc.), mas também de conseguir em alguns lugares subordinar as instituições estatais à sua lógica sindical-comunitária (Planalto norte, Chapare e norte de Potosí).

Isso originou uma cisão institucional dos sujeitos políticos no interior do campo político, na medida em que não apenas os partidos de inscrição individual, mas também os movimentos sociais, sindicatos e comunidades de base normativa e tradicional tiveram a capacidade política de influenciar na gestão pública, por meios parlamentares e extraparlamentares (bloqueio de estradas, mobilizações, marchas etc.).

Paralelamente, o sistema de crenças neoliberal enfraqueceu-se, surgindo projetos de mudança, de transformação das relações políticas e econômicas (assembleia constituinte, direitos políticos indígenas, mudança do governo, nacionalização dos hidrocarbonetos), que modificaram as maneiras de significar, de representar as hierarquias e os coletivos orientados a organizar o mundo político.

Com isso, assistiu-se a uma nova polarização do campo político entre esquerda e direita, entre renovadores e conservadores, com conteúdos classistas (trabalhadores/empresários), étnicos (indígenas/mestiços) e regionais (leste/oeste) em cada um dos polos. E, na medida em que cada uma dessas dualidades se afirmou ao se posicionar contra a outra, estivemos diante de um tipo de polarização antagônica e pluriinstitucional (partidos e movimentos sociais), com um campo político estruturalmente instável e em transição para uma nova forma estatal e um sistema político portador de novas ou reformadas hegemonias sociais.

As forças conservadoras visíveis pelas lideranças empresariais mantinham maior força política e cultural na zona leste do país, lugar de uma economia agroindustrial em progresso. Por seu lado, as forças renovadoras, dirigidas por lideranças indígenas, tinham maior presença política e de mobilização nos sindicatos, nas comunidades e associações vicinais do leste do país, planalto e vales. Dessa maneira, à demanda de uma assembleia constituinte, reivindicada pelas esquerdas como projeto de transformação estrutural das instituições pela via democrática, o setor empresarial leste começou a contrapor a proposta das autonomias das províncias, como um modo de “blindar” regionalmente o poder que conservavam nas regiões mais prósperas (Santa Cruz e Tarija), o que deu lugar a um “empate catastrófico” (Gramsci) entre projetos de economia e Estado confrontados, sem que nenhum deles tivesse ainda a capacidade de hegemonizar todo o país.

A turbulência e a reacomodação das forças políticas dos últimos anos levaram à fratura do esquema da governabilidade tripartidária (MNR, ADN e MIR) e à sucessiva renúncia de dois presidentes da República em um período de dois anos. Gonzalo Sánchez de Lozada, principal personagem das políticas de privatização dos anos 1990, renunciou em outubro de 2003 diante da greve nacional e da insurreição desarmada dos movimentos sociais que se opunham à decisão de venda de gás aos Estados Unidos.

Assim surgiu um novo presidente, Carlos Mesa, que se comprometeu diante dos rebeldes a convocar uma assembleia constituinte e levar adiante um referendo sobre a política gasífera do país, mas foi rapidamente ultrapassado pelos antagonismos políticos da época. Assediado por um Parlamento hostil, ainda em mãos dos partidos conservadores, e pelos movimentos sociais que ampliavam as suas demandas para a nacionalização dos hidrocarbonetos, renunciou durante uma rebelião social, em junho de 2005, anulando a possibilidade de uma saída “cesarista” para a crise.

Com pressão social contrária a que o presidente do Senado e da Câmara de Deputados assumisse o governo por sucessão constitucional, o presidente da Corte Suprema de Justiça ascendeu à presidência da República, convocando a realização de eleições gerais para dezembro de 2005.

Em meio a essa desastrosa luta generalizada pelo poder do Estado entre classes sociais e identidades culturais, a convocação para as eleições abriu um período de trégua de vários meses. No dia 18 de dezembro, a população boliviana foi às urnas, e elegeu, com 54% dos votos, o canditado do MAS, Evo Morales, que disputou com o ex-presidente Jorge Quiroga (2001-2002), do recém-criado Poder Democrático e Social (Podemos), partido de direita. Com sua eleição, Evo Morales se tornou o primeiro líder indígena presidente da República de um país do continente.

Apesar da situação favorável, já que o MAS conquistou a maioria na Câmara de Deputados e quase a metade do Senado, além de fazer dois dos governadores das províncias, a eleição de Evo Morales, que tinha Álvaro García Linera como vice-presidente, foi acompanhada de muitas incertezas. Antes das eleições, em meio a grandes agitações sociais, o MAS, representado por Morales, assumiu o papel de conciliador entre as forças repressoras e a população insurgente, o que lhe valeu pesadas críticas por parte de movimentos e partidos mais radicais, que também denunciavam um forte abrandamento no discurso do candidato à presidência. Não obstante, logo depois da posse, o presidente Evo Morales viajou a Cuba e à Venezuela – que prometeram ajudar o governo boliviano de múltiplas formas, desde ajuda financeira direta até o fornecimento de insumos produtivos, o envio de médicos ao país, no caso de Cuba, etc. –, o que, somado aos seus ataques contra o neoliberalismo e ao governo Bush, deu indicações de uma orientação política anti-imperialista e antineoliberal.

Da mesma forma, por um lado Morales promete profundas reformas políticas, sociais e econômicas, como a erradicação do analfabetismo, o combate à corrupção e a valorização da população indígena, e, por outro, convidou ao governo pessoas consideradas, pelos mais radicais, conservadoras. Diante disso, parte dos analistas vê no governo Morales uma repetição do populismo “lulista”, prevendo que não serão realizadas expressivas transformações na Bolívia, enquanto outros prenunciam o fortalecimento de uma “frente socialista” que se difundirá por toda a América Latina, garantindo a emancipação do continente.

De uma maneira ou de outra, parece que a Bolívia caminha rumo à construção de um novo sistema político, com um conjunto de medidas de inclusão dos povos indígenas e um novo regime de desenvolvimento econômico como guia da sociedade nas próximas décadas. Falta definir para o período seguinte qual será a nova composição entre propriedade estatal, economia tradicional urbano-rural e investimento externo na economia nacional, e qual será a presença e o poder dos povos indígenas na estrutura do Estado.

Habitantes indígenas em uma das ilhas flutuantes no Lago Titicaca saúdam um grupo de turistas (David Stanley/Wikimedia Commons)

Choque modernidade-tradição

Desde seu nascimento até hoje, a República da Bolívia se caracterizou por um tipo de desenvolvimento econômico dual. De um lado, pequenos enclaves de produção moderna articulados aos mercados externos e, de outro, as economias tradicionais majoritárias, artesãs, camponesas e comunais vinculadas aos setores modernos de múltiplas maneiras, diretas e indiretas. Nos ciclos de protecionismo econômico, essas esferas tradicionais foram apoiadas pelo Estado para reforçar processos graduais de modernização interna em direção a economias de maior mercantilização, com diferenciação interna, economia e renovação tecnológica. Nos ciclos de liberalização, essas esferas tradicionais se submetem a mecanismos de exploração direta pelos núcleos modernizados ou são marginalizadas de qualquer política de articulação, acentuando as diferenças tecnológicas de ingresso entre o setor minoritário industrializado e o setor majoritário da população inserido em circuitos econômicos tradicionais, de autoconsumo ou de fraca mercantilização local.

Entre 1825 e 1870, anos que marcaram o primeiro ciclo protecionista, a economia boliviana se sustentou sobre uma fraca atividade mineira e artesanal resultante da decadência secular da economia colonial, sobre o regime de fazenda em vales e no altiplano, que usufruía das pequenas economias camponesas cativas, e sobre as comunidades tradicionais que ainda preservavam parte de suas terras.

Em 1825, não existiam mais do que cinquenta pequenas minas em atividade, ao passo que em 1947 calculava-se a existência de 10 mil minas abandonadas por falta de ferramentas de trabalho. O trabalho artesanal de tecidos de lã e algodão se encontrava em retração por causa da ruptura dos antigos circuitos comerciais coloniais e sua posterior passagem para mãos de novas repúblicas. Do 1,4 milhão de pessoas recenseadas em 1946, 89% viviam nas áreas rurais, nas quais eram gerados dois terços do produto nacional. Lá a produção se sustentava pelas 5 mil fazendas e 4 mil comunidades indígenas habitadas por 51% da população rural. Parte dessa economia rural foi para a venda nos fragmentados mercados locais. As comunidades indígenas também participaram dos circuitos comerciais, por meio de modelos de mercantilização comunal que lhes permitiram arrecadar dinheiro para o pagamento de tributos.

O tributo indígena, instaurado no perío­do colonial, apesar da tentativa de sua abolição feita quando da fundação da república, foi novamente restituído diante da incapacidade estatal de estabelecer um sistema tributário estável relativo aos ingressos pessoais ou à produção manufatureira. Até a década de 1880, o tributo dos indígenas sobre a propriedade comunal de suas terras chegou a representar entre 35% e 60% das receitas do Estado.

 

Os oligarcas da prata

Somente no final da década de 1850, a mineração da prata começou a estabilizar-se pela mão de três investidores que logo foram chamados de “os patriarcas da prata”. Pacheco e Aramayo introduziram mudanças técnicas nas operações mineiras na década de 1870 e, com a entrada de capitais externos na mineração, o país voltou a transformar-se num dos principais exportadores de prata do mundo.

Com investimentos superiores à renda do Estado, as dinastias mineiras começaram a influir diretamente na política e a promover uma mudança nas políticas gerais do Estado, apontando para uma ampla liberalização.

Reduziram-se as tarifas para as importações manufatureiras e a exportação de minerais, suprimiram-se vários monopólios estatais na comercialização do mineral e na fabricação da moeda, permitiu-se a entrada de capitais externos para a exploração de adubo e salitre nas costas do Pacífico e, posteriormente, com a lei de ex-vinculação de 1874, vigente desde 1880 até as primeiras décadas do século XX, teve início o processo de expropriação das terras comunais mais importante desde a chegada dos espanhóis.

Dessa maneira, o ciclo liberal, que durou até o final da década de 1930, começou com três pilares: a presença do investimento externo na mineração, juntamente com outros recursos naturais (adubo, borracha e quina); a diminuição de tarifas para a importação de produtos de consumo interno, o que, com o tempo, levou ao colapso da economia artesanal urbana e mercantil-comunal; e, por último, a expropriação de terras comunais que não foram substituídas por modernas agroindústrias de exportação, mas por novas fazendas com trabalho servil, de propriedade de enriquecidos empresários mineiros ou comerciais que tornaram a investir seus lucros no campo. As comunidades que cinquenta anos atrás tinham 50% das terras, em finais de 1930, pos­suíam apenas a metade desses recursos.

A mineração da prata teve o seu auge entre 1875 e 1895, quando produziu o colapso dos preços internacionais. No entanto, uma década depois, teve início o desenvolvimento da mineração de estanho, que, no período de 1920 a 1970, fez da Bolívia um dos principais produtores do mundo.

Aproveitando as redes comerciais, a organização empresarial herdada da extração da prata e a presença dos capitais externos, os sistemas artesanais de aproveitamento das pequenas minas foram substituídos por importantes inovações técnicas: substituíram-se paulatinamente o diesel e o carvão dos geradores de luz pela eletricidade, como força motriz das máquinas; foram incorporados os vagões de trem e os caminhões para o transporte de minerais, o que ampliou a divisão técnica do trabalho, e substituiu-se de forma radical a força motriz do transporte e do carreto. Nos engenhos, introduziu-se o sistema de pré-concentração sink and float, que eliminou o trabalho da separação manual do mineral realizado por mulheres operárias, enquanto, na perfuração da rocha, a tração elétrica e o uso de brocas de ar comprimido ou elétricas reconfiguraram os sistemas de trabalho.

 

Estanho e industrialização

Entre 1900 e 1929, a produção boliviana de estanho cresceu de 9 mil para 47 mil toneladas métricas finas por ano. Na década de 1920, as exportações duplicaram, embora a maior parte dessa renda estivesse em mãos de investidores privados encabeçados pelos chamados “barões do estanho” (Patiño, Aramayo e Hoschild).

Paralelamente, uma lenta industrialização dos produtos de consumo interno começou a expandir-se no país. Nas primeiras décadas do novo século, formaram-se empresas industriais nos setores de bebida alcoólica, alimentos, têxtil, curtume. Depois da Guerra do Chaco, esses mesmos setores ganharam impulso com os investidores estrangeiros, que em 1945 já eram proprietários de 50% do capital industrial.

A posse da terra durante a primeira metade do século XX teve como três principais atores as fazendas, as comunidades e a pequena produção camponesa. Na zona do planalto (La Paz, Oruro e Potosí), estava concentrada a maior parte das comunidades agrárias indígenas (86%), enquanto as fazendas predominavam nas zonas dos vales (Cochabamba, Chuquisaca e Tarija). Nessas regiões, as fazendas contavam com 57% da superfície e a pequena propriedade se concentrava em 28% da terra.

Pela ausência de uma rede de estradas, a agricultura de terras baixas, nas mãos dos fazendeiros, continuou se orientando para os mercados locais, enquanto o Estado continuou promovendo a entrega de grandes propriedades de terras no norte e no leste do país.

Os governos militares, no final dos anos 1930, contribuiram para a decadência do ciclo econômico liberal, tomando medidas que tentaram proteger os pequenos mercados internos e fortalecer o Estado; tal foi o caso da criação da empresa petroleira estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), que, décadas depois, chegou a ser uma das principais empresas geradoras de excedente econômico do país. O novo ciclo protecionista do capitalismo de Estado iniciou-se com a revolução de 1952, que nacionalizou a grande mineração de estanho e promoveu a diversificação econômica, a substituição de importações, a industrialização das terras férteis do leste e a conformação de um mercado interno.

No mesmo ano da revolução, foi criada a empresa mineira estatal Comibol, que chegou a contar com 27 mil trabalhadores e mais de quinze grandes minas de estanho, prata, chumbo e zinco em sua produção. Parte das divisas da mineração foi transferida para o fomento da construção, a rede rodoviária e o desenvolvimento industrial, tanto privado como estatal, mediante a construção de fornos de fundição e a ampliação da Corporação Boliviana de Fomento (CBF), que chegou a agrupar 56 indústrias de diferentes títulos.

Após a revolução, a empresa estatal de petróleo YPFB conseguiu ampliar as suas atividades de produção, refinamento e distribuição. Em 1969, os militares nacionalizaram as instalações da empresa norte-americana Gulf Oil Company e conseguiram que o Estado assumisse a exportação de gás para a Argentina desde o começo dos anos 1970. Com isso, em vinte anos, o Estado conseguiu uma renda total de 3,9 bilhões de dólares dos Estados Unidos, equivalentes à contribuição de 65% das rendas estatais até meados dos anos 1990.

Em 1978, a produção industrial, apesar dos contínuos altos e baixos e de seu atraso tecnológico, chegou a gerar 16% do produto nacional e ocupou 21% da população ativa das cidades, reduzindo parcialmente o trabalho informal e artesanal, que, mesmo assim, continuou ocupando, em todas essas décadas, mais de 50% da população trabalhadora das cidades. Em conjunto, e devido à pujança desses setores modernos da atividade produtiva estatal, entre 1964 e 1978, a economia boliviana experimentou as taxas mais altas de crescimento do último século, com uma média anual de 5,6%.

Por sua vez, a produção agrícola enveredou por dois caminhos diferentes. No leste, o Estado fomentou a produção agroindustrial, e para isso implementou empresas ou apoiou os investidores privados com créditos e transferências de dinheiro. Entre 50% e 80% dos créditos agrícolas financiados pelo Estado, nos anos de 1960 e 1980, foram para a região de Santa Cruz e Beni, e contribuíram assim para a formação de uma burguesia agrária (agrícola e pecuarista), que em fins do século XX se transformou na mais pujante e dinâmica do país.

As regiões tradicionais do planalto e dos vales, ao contrário, desenvolveram uma economia familiar camponesa de baixo rendimento, com tecnologias arcaicas e de moderada incursão nos mercados locais de produtos alimentícios. Essa estagnação da agricultura tradicional promoveu o processo migratório interno mais importante da história do país. Entre 1952 e 2001, o percentual da população agrária baixou de 72% para 32%.

 

Novo rumo econômico

Em 1985, o país mudou novamente de rumo em seu modelo econômico. Foram aplicadas medidas de ajuste fiscal, abriram-se as fronteiras para a importação de produtos de consumo, fecharam-se as empresas estatais deficitárias, liberalizou-se o mercado de trabalho e teve início um processo de privatização das empresas públicas do país, até mesmo da empresa petrolífera.

Desmantelado o capitalismo de Estado e restringida juridicamente a produção da folha de coca e seus derivados ilícitos, que tinham aumentado durante a época dos governos militares até chegar a compor 3% do Produto Interno Bruto, a economia ficou sob controle do investimento externo em todas as áreas modernas: hidrocarbonetos, mineração, telecomunicações, estrada de ferro, eletricidade e, parcialmente, agroindústria.

Entre 1990 e 1998, o investimento estrangeiro direto (IED) passou de pouco menos de 90 milhões para 1,026 bilhão de dólares, para logo declinar para 113 milhões de dólares, em 2004. Implementou-se uma modernização do aparelho técnico dessas áreas produtivas, descobriram-se reservas de gás na ordem de 53 trilhões de pés cúbicos (TCF – sigla em inglês), que fizeram da Bolívia o segundo país com maior reserva do continente, e as exportações cresceram de 1,2 bilhão para 2,1 bilhões de dólares entre 1992 e 2004. Atualmente, as exportações principais do país são de gás, minerais e soja.

Nesses mesmos anos de neoliberalismo, Santa Cruz, que fora uma região marginal por mais de cinquenta anos, transformou-se na província mais dinâmica do país. Um terço do total da produção nacional, 60% das exportações e a metade do investimento externo encontram-se na região leste.

Mas, paralelamente, a externalização do excedente econômico por parte de empresas estrangeiras que controlavam cerca de 40% do produto nacional, somada ao declínio em outros setores produtivos, levou a economia boliviana a apresentar taxa de crescimento médio de 3,1%, próxima da metade do que conseguia na época do Estado produtor. Então, a média anual de renda do boliviano (1.100 dólares por ano) foi similar à de 24 anos antes, e uma das mais baixas do continente.

Rompidos os laços entre modernidade e tradição, a diversificação econômica foi interrompida, ao mesmo tempo que houve um processo de desindustrialização: a informalidade entre 1990 e 2005 cresceu de 58% a 68% do total da população urbana trabalhadora; o setor industrial manufatureiro diminuiu sua importância de 17% para 12% entre 1991 e 2003, enquanto os 7% dos empregos do setor moderno geram 65% da riqueza nacional, diante dos 25% produzidos pelos 85% de empregos nas unidades produtivas tradicionais, precárias e arcaicas, compostas de 700 mil unidades familiares urbanas e 600 mil famílias camponesas.

Um dos setores mais afetados pelas políticas do livre-comércio foi o dos produtores camponeses índios tradicionais. Os preços dos seus produtos diminuíram em 60%, no caso dos produtos de terras baixas, e em 30%, no caso dos produtos de terras altas. Por essa razão, o hiato de pobreza entre os 5% mais ricos e os 5% mais pobres é de 1 a 60, enquanto no campo, predominantemente indígena, a diferença chega a ser de 1 a 170, o que mostra que a Bolívia transformou-se num dos países com maior desigualdade social no mundo.

Nos primeiros anos do século XXI, o tema do modelo de desenvolvimento econômico novamente foi colocado em discussão. Os movimentos sociais propugnam um tipo de economia complexa que, além de outorgar ao Estado uma proeminência produtiva nas áreas do hidrocarboneto e de energia, reforce as estruturas comunitárias, urbanas e rurais, a fim de outorgar às camadas autogestionárias da sociedade o papel principal na geração de modos de desenvolvimento e de modernização plurais. Já as forças empresariais conservadoras insistem em manter a economia de livre mercado, razão pela qual se abriu uma nova luta pelo poder político e econômico, cujos resultados são incertos.

A formação das estruturas organizativas das classes subalternas esteve vinculada às características e mudanças na economia do país.

Durante o século XIX e, especialmente, no século XX, dois grandes blocos de identidade e mobilização social se desenvolveram: o movimento operário e o movimento indígena camponês, cada um dos quais atravessou diferentes períodos de construção reivindicativa, organizativa e discursiva.

O movimento operário

No século XIX, as primeiras formas de associação operária foram organizações trabalhistas de corte mutualista e de socorro mútuo, diretórios, conselhos, subconselhos e confederações operárias. No caso dos artesãos urbanos, as primeiras mutuais foram criadas a partir dos anos 1840, e seu principal objetivo foi a proteção dos componentes do grêmio, além da formação de bancos de poupança, que significaram “acostumar os artesãos a economizar o produto do seu trabalho”.

Os artesãos se organizaram mediante centros de ajuda mútua, e tais centros começaram a proliferar entre setores como o dos ferroviários e o dos gráficos. Cabe aqui mencionar as organizações femininas, de tendência anarquista, como a Federação Operária Feminina (FOF, 1927), composta de mulheres do setor do artesanato, vendedoras, cozinheiras etc.

Nas minas de prata, desde fins de 1870, foram criadas as primeiras associações de socorro mútuo e de tipo cultural. Posteriormente, surgiram as federações operárias que incluíam organismos de tipo gremial e artesanal (cabeleireiros, alfaiates etc.). Esse predomínio da organização territorial sobre a organização por empresa se manteve nos centros mineiros até as primeiras décadas do século XX. Do mesmo modo, muitas das tradições de origem artesanal e indígena, como os motins e os ritos às deidades das covas (“Tio da mina”), foram mantidas e chegaram a formar parte fundamental da memória coletiva do proletariado mineiro moderno, em suas lutas de resistência contra a lógica de organização do tempo e o trabalho capitalista.

O sindicato operário, no sentido moderno da organização de trabalhadores de empresa, começou a expandir-se nos anos 1930. A partir de 1936, com a abertura política para as organizações operárias desenvolvidas pelos governos “militares nacionalistas”, ampliou-se o processo de sindicalização. Nas minas, surgiram sindicatos como os de Morococala, Catavi, Huanuni, Machacamarca, Cataricagua, Llallaga, La Unificada, Itos, La Colorada, Colquiri, Vinto, Socavón etc., compostos exclusivamente de operários de empresas que modificaram o conteúdo e a demanda das organizações operárias do país, cada vez mais orientadas para a regulação salarial.

Em 1944, os trabalhadores mineiros criaram a Federação Sindical de Trabalhadores Mineiros da Bolívia (FSTMB), que, posteriormente, conseguiria reunir até 50 mil membros na estrutura operária compacta mais importante da história do movimento operário nacional.

Homens trabalham na Mina Rosario, no Cerro Rico, na cidade de Potosí (Albert Backer/Wikimedia Commons)

 

Mineiros trabalhando em Cerro Rico (Christophe Meneboeuf/Wikimedia Commons)

 

Em relação às organizações operárias urbanas, embora já houvesse um incipiente processo de industrialização desde finais do século XIX, as primeiras e mais importantes organizações autônomas de trabalhadores de fábrica a constituir-se foram as do ramo têxtil, em princípios da década de 1930, precisamente no momento de um novo ciclo de industrialização. Em 1951, fundou-se a atual Confederação Geral de Trabalhadores Fabris da Bolívia (CGTFB) que, juntamente com a FSTMB, foi um dos pilares do movimento operário até o início dos anos 2000.

 

A revolução de 1952

Em abril de 1952, devido ao golpe de Estado facilitado pelo MNR, os sindicatos operários das cidades e das minas se rebelaram e, apoiados por amplos setores populares urbanos, conseguiram tomar vários postos policiais e quartéis militares, provocando uma insurreição armada. Em três dias de combates nas principais cidades do país, as tropas do Exército foram derrotadas militarmente, desarmadas e dissolvidas, sendo substituídas pelas milícias armadas dos sindicatos operários, que durante dois anos se encarregaram do exercício da coerção estatal. Essa ação política vitoriosa dos sindicatos marcou o comportamento posterior dos operários bolivianos sindicalizados em relação à preponderância da forma sindicato acima de qualquer outra proposta organizativa e sua recorrente aspiração ao poder político, mediante o qual se garantia a conquista de direitos trabalhistas e sociais.

Uma semana depois da vitória operária de 1952, em 16 de abril, reuniram-se todos os sindicatos e setores organizados da sociedade e decidiram criar uma central que unificasse a maioria dos trabalhadores – a COB –, com os operários das fábricas e das minas como núcleo. Desde então, a COB se transformou em um movimento social que é, estruturalmente, a articulação de vários movimentos sociais, em torno da condução e da hegemonia operárias.

A Central Operária Boliviana apregoava, na sua orientação geral, projetos políticos da sociedade: a nacionalização das minas – naquele momento a principal atividade econômica nas mãos de três grandes empresários –, a nacionalização das estradas de ferro e a implementação da “revolução agrária”; essas reivindicações foram parcialmente atendidas pelo governo revolucionário nos meses seguintes. Como materialização desse papel político do movimento operário, a COB designou nos anos seguintes quatro “ministros operários”, o que provocou uma lógica de cogoverno presente permanentemente nas reivindicações dos movimentos sociais bolivianos.

Durante esses anos, e até as reformas de livre mercado da década de 1980, a composição material da condição operária caracterizou-se por cinco componentes:

1) A concentração de enormes contingentes de trabalhadores em fábricas e empresas criava à sua volta grandes cidadelas de operários, o que permitiu uma territorialização sedimentada da cultura sindical de classe.

2) A consolidação de um tipo de trabalhador com contrato por tempo indefinido deu lugar à concepção de um tempo homogêneo e cumulativo no qual era possível prever com tranquilidade o futuro individual em um futuro coletivo de classe, permitindo assim que o trabalhador se comprometesse com esse futuro e esse coletivo, visto que seus ganhos podiam ser usufruídos durante um longo tempo. Estamos falando da construção de um tempo de classe e uma narrativa de classe caracterizados pela previsibilidade, por um sentido de destino certo e enraizamentos geográficos que habilitavam compromissos a longo prazo com o sindicato.

3) A existência de um sistema de fidelidades internas permitiu transformar em valor acumulado a associação por centro de trabalho. Isso surgiu pela implantação de um sistema de promoções trabalhistas e promoções internas na empresa, baseado na promoção por tempo de serviço, na aprendizagem prática com o mestre de ofício e na disciplina trabalhista industrial, todas legitimadas pelo acesso a prerrogativas monetárias, cognitivas e simbólicas divididas em partes entre os segmentos operários.

4) A fusão dos direitos de cidadania com os direitos trabalhistas foi resultado do reconhecimento por parte do Estado, a partir dos anos 1940, da legitimidade da organização sindical. Dessa época até 1985, o sindicato foi a forma legítima de acesso aos direitos públicos, e isso fez com que a noção de Estado, a hegemonia estatal e seus preceitos homogeneizadores se expandissem por meio dos sindicatos sobre enormes contingentes de migrantes da agricultura que marchavam para as cidades e fábricas.

5) Uma sólida estrutura organizativa, sustentada pela consistência da identidade por centro de trabalho, abarcou o território nacional numa extensa e compacta rede de escalões, hierarquizados por ofícios e múltiplos ramos de ofício, por províncias e, por fim, em escala nacional.

Durante todo esse período as principais demandas do movimento operário se focaram no litígio por melhores salários e por direitos trabalhistas, mas também pela formação histórica do sindicalismo. De maneira recorrente impunhavam-se demandas políticas dirigidas a modificar a estrutura econômica do país (nacionalização das minas de cobre, da banca etc.) ou a modificar a estrutura institucional do Estado (cogoverno COB-partidos de esquerda, luta pela democracia contra as ditaduras militares etc.). Podemos dizer, portanto, que, durante a última metade do século XX, o movimento operário foi a força histórica dos grandes processos de democratização e formação política das cidades que atravessaram a sociedade boliviana.

Com base nesses componentes internos da existência da classe operária, a forma sindicato foi capaz de criar um espaço de irradiação social ou bloco composto de classes sociais. A COB pode ser considerada a trama da autoformação política das classes subalternas bolivianas no que diz respeito aos símbolos, aos códigos, ao acervo e aos parâmetros organizacionais do movimento operário. Dessa maneira, e até 1986, a COB se aglutinou em torno dos operários, camponeses, professores, estudantes, pequenos comerciantes e cidadãos em geral que sentiam que suas demandas e necessidades estavam sendo consideradas e encaminhadas pela liderança operária.

 

Nova estrutura social

Desde 1985, a estrutura social boliviana experimentou grandes transformações. Deu-se início às chamadas reformas estruturais de livre mercado, que promoveram um conjunto de modificações materiais nos processos produtivos as quais influenciaram de maneira decisiva as características dos movimentos sociais e, em particular, a história da COB.

Desde 1985, a situação operária no trabalho se transformou em dois sentidos. Por um lado, no âmbito dos direitos de propriedade e da organização técnica, nos últimos anos se assistiu a uma fragmentação acelerada da propriedade empresarial (privada e estatal), cuja principal consequência foi a dispersão e despolitização dos movimentos reivindicativos dos trabalhadores, que então, sem sindicato, já não reclamavam para o Estado, mas para pequenos ou médios empresários dispersos.

Por outro lado, o contrato por tempo indefinido, pilar da identidade operária anterior, deixou de ser a norma, começou a extinguir-se e, por oposição a ele, generalizaram-se formas de contrato eventual, por tempo definido, por obra, em domicílio, em regime de subcontratação e contratos civis. Com isso, não somente se enfraqueceu estruturalmente a força de trabalho sindicalizada, que baixou a menos de 10% do total de trabalhadores, mas também se apagou o conjunto de direitos ligados a essa forma de venda da força de trabalho.

Surgiu, então, uma nova forma de regulação estatal de reprodução da força de trabalho, cuja tarefa foi, antes de tudo, a ação compulsiva para que o trabalhador aceitasse as novas regras do jogo (legitimação da desfiliação sindical generalizada, judicialização das resistências sindicais) e a habilitação de um novo espaço normativo e cultural que legalizasse a abrupta incursão dos demais membros da família operária a processos de proletarização parcial e híbridos, com o objetivo de fazer recair no trabalho assalariado precário do restante da unidade doméstica o montante de dinheiro requerido para a reprodução da família trabalhadora.

O fim do contrato regular foi, também, o daquele tempo de previsibilidade operária, com destinos assegurados e enraizamentos geográficos que habilitaram compromissos a longo prazo. No seu lugar, surgiu um tipo de trabalhador portador de uma “mentalidade precarizada” pela incerteza do porvir e pelo nomadismo no trabalho que anula, temporalmente, a produção de fidelidades a longo prazo.

A feira que acontece aos domingos é a grande atração da cidade de Tarabuco, na Bolívia (Jenni Frog/Wikimedia Commons)

Desestruturados a antiga condição ope­rária e o sindicalismo classista que a acompanhou, ocorreu um aumento fragmentado e híbrido de operários, que numericamente triplicou o antigo proletariado, mas desprovido de organização, de territorialidade, de memória e de projetos de classe a longo prazo. São os operários das médias e pequenas empresas, dispersos territorialmente, carentes de direitos trabalhistas, de organização sindical, de experiência de trabalho organizativa, na sua maioria homens e mulheres jovens que trabalham com relações contratuais de eventualidade, nomadismo e precariedade.

Grande parte desse novo mundo operário não estava amparada nas redes de organização da COB e, diante da fraqueza e efemeridade dos seus vínculos de solidariedade no interior das empresas, preferira agir de maneira individual ou submersa em modos de organização territorial de caráter gremial ou vicinal.

Isso levou a um enfraquecimento estrutural da COB, mas não da capacidade de mobilização e resistência das classes subalternas, que, a partir das redes territoriais locais e cotidianas que não foram desmontadas pelas reformas neoliberais, voltaram a erguer poderosas estruturas de organização sociopolíticas, só que já não mais sobre uma estrita identidade operária. Em particular, foram os movimentos sociais indígenas, urbanos e rurais, além das novas organizações aglutinadas em torno da defesa das necessidades vitais (água, terra e hidrocarbonetos), os que, nas últimas décadas, conseguiram formar um amplo bloco de autonomia política e democratização social.

 

A política das necessidades vitais

Enfraquecidas e sancionadas as possibilidades de mobilização temporal por centro de trabalho, as redes territoriais locais, compostas de operários sindicalizados e não sindicalizados, desempregados, pequenos comerciantes, estudantes e até profissionais, nos últimos anos conseguiram articular marcos organizativos de mobilização em torno da defesa das necessidades vitais (água, terra e energia), com grande capacidade de impacto político diante do Estado. Afetando a estrutura da política de privatizações, essas organizações, que foram nomeadas Coordenadoria de Defesa da Água e da Vida, Coordenadoria de Defesa dos Recursos Naturais etc., tiveram a peculiaridade de unificar, de maneira provisória, em torno de objetivos precisos e modos de deliberação horizontais e flexíveis, as organizações locais urbanas e rurais, além de integrar indivíduos que de outra maneira careceriam da possibilidade de se associar a outras formas de organização mais disciplinadas e hierárquicas como os sindicatos ou grêmios.

Com hegemonias instáveis em seu interior, que possibilitaram ir de uma liderança operária em um momento a uma liderança camponesa em outro, promoveram a defesa e a conquista de modos autônomos da gestão dos recursos básicos, o que as levou a assumir ações de caráter político diante do Estado, o qual, justamente, promovia processos de privatização desses recursos.

Essas formas de ação coletiva demonstraram uma inovação organizativa capaz de recompor a mobilização dos trabalhadores urbanos impossibilitados de fazê-lo por meio dos sindicatos proscritos pela empresa, além de ser suficientemente flexíveis para integrar tematicamente organizações camponesas mobilizadas pelo tema da terra e da água.

 

Movimentos indígenas

Na Bolívia, 62% dos habitantes maiores de quinze anos se autoidentificam como pertencentes a algum povo indígena, e pouco mais de 40% da população tem como materno um idioma indígena. Entre os 38 povos indígenas e descendentes que existem na Bolívia, dois são os mais importantes, os quíchuas, que abarcam 30% da população total do país, e os aymarás, que chegam a abarcar 25%. Os quíchuas estão instalados na sua maioria nas zonas dos vales, e os aymarás no planalto, tanto rural como urbano. De fato, a terceira cidade mais importante do país, El Alto, é majoritariamente indígena. Os demais 35 povoados, localizados, sobretudo, nas zonas de terras baixas e planas do país, chegam a 6% do total da população recenseada.

Embora a história dos povos indígenas do continente esteja atravessada por ciclos de extermínio, insurreições, pactos e inclusões parciais na estrutura nacional predominante, os processos de assimilação e mestiçagem cultural do último século não conseguiram dissolver ou atenuar as profundas diferenças socioeconômicas entre as identidades sociais. Apesar de os direitos de cidadania serem ampliados desde meados do século XX, recriou-se uma segmentação cultural da estrutura de oportunidades e de mobilidade social visível na estratificação étnica do mercado de trabalho, o que faz que um indígena receba em geral um terço do salário de um não indígena e que a maioria da população pobre do país seja, exatamente, indígena. Podemos dizer que na Bolívia, num sentido estrito, o etnicismo desempenha o papel de um capital, o capital étnico, que viria a ser um plus social, um bem apetecível, monopolizável e facilitador da ascensão e das inserções sociais.

Não é estranho, portanto, que nas últimas décadas os movimentos sociais indígenas continentais tenham recobrado uma vitalidade política indiscutível e, no caso da Bolívia, tenham acumulado uma capacidade política parlamentar e extraparlamentar que os transformou nas principais forças sociais de interpelação do Estado, de governabilidade sociopolítica e de reforma institucional.

Pela diversidade histórica dos povos indígenas, na Bolívia não existe um único movimento indígena que tenha incursionado nas lutas sociais e políticas; na verdade, são vários os movimentos indígenas e eles diferem bastante em suas reivindicações, em sua atitude diante do Estado, em seus métodos de mobilização, em sua identidade e em sua base social. Entre eles, podemos mencionar os mais importantes:

1) O movimento indígena aymará, localizado na zona do planalto do país e articulado com a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB).

A CSUTCB tem nome de sindicato, mas é composta de comunidades camponesas indígenas. É a estrutura organizativa mais antiga desse novo ciclo do despertar indígena iniciado há trinta anos, exatamente entre os aymarás urbanos e rurais. Os aymarás são o povo indígena com maior coesão social, maior força de mobilização (os bloqueios das estradas mais importantes do país se deram nessa região) e maior consciência de sua identidade, resultado da presença de uma ampla e influente intelectualidade indígena, que nas últimas décadas recriou uma narrativa histórica sobre a autonomia da nação aymará.

Embora no seio do movimento aymará existam simultaneamente múltiplas tendências e várias formas organizativas de mobilização social (partidos políticos, agrupações culturais, vicinais etc.), a CSUTCB, que reúne todas as comunidades camponesas organizadas em torno de fidelidades tradicionais, é a mais importante e compacta força sociopolítica de mobilização do país, cujas reivindicações estão dirigidas exclusivamente ao Estado.

Portadora de uma clara identidade indígena em confronto com o Estado, ao qual qualifica de colonial, ela combina reivindicações econômicas (estradas, saúde, educação, tratores, apoio econômico etc.) com exigências sociopolíticas (nacionalização dos hidrocarbonetos, novo modelo econômico e autogoverno indígena). Dessa maneira, combinou a sublevação com a negociação para obter reconhecimento e foi transitando em direção a um tipo de nacionalismo aymará com crescentes demandas de autogoverno. Na última década, seu discurso influenciou setores indígenas urbanos e o restante dos movimentos indígenas do país.

Manifestação da organização das Mulheres Camponesas Indígenas Originárias da Bolívia “Bartolina Sisa” (CNMCIOB-BS) em Trinidad, em 2010 (Soman/Wikimedia Commons)

2) A Confederação Indígena do Oriente Boliviano (CIDOB) e a Coordenadoria de Povos Étnicos de Santa Cruz (CPESC) reúnem dezenas de povos indígenas das terras baixas da Amazônia e do Chaco, com ampla presença de latifúndios. Essas organizações indígenas fundadas em finais dos anos 1980 conseguiram incorporar numerosos povos pequenos (chiquitanoayoreo, guarani, mojenõg etc.) que, durante muito tempo, ficaram invisíveis devido à sua baixa densidade demográfica. Autoassumidos como indígenas, apresentam exigências, às vezes em relação ao Estado e às vezes em relação aos fazendeiros e empresários agrícolas da região, de caráter mais reivindicativo (títulos de propriedade comunitária, projetos de desenvolvimento, educação bilíngue etc.). Diferentemente dos movimentos indígenas de terras altas que empregam os bloqueios de estradas para enfrentar o Estado, as organizações indígenas da zona leste utilizam preferencialmente as marchas e têm uma atitude de maior inclinação a negociações, pactos e reconhecimentos com o governo.

3) Federações de produtores de folha de coca dos Yungas e do Chapare, integradas pelas comunidades indígeno-camponesas dos vales interandinos e do trópico boliviano. Composta de pouco mais de 50 mil famílias, sua identidade organizativa modificou-se nas últimas décadas, passando de uma autoidentificação camponesa para uma identidade camponesa indígena.

A maior parte das comunidades é integrada por aymarás, no caso dos Yungas, centenária zona tradicional de cultivo da folha de coca, e por camponeses quíchuas e ex-operários demitidos, no Chapare, região do cultivo da folha de coca. Organizados em torno das comunidades agrárias (“sindicatos”), os produtores da folha de coca tiveram de suportar o mais agressivo processo de cerco estatal, militar e jurídico desde a intervenção militar aos acampamentos mineiros nos anos 1960.

Folhas de coca em mercado de rua na Bolivia (Wikimedia Commons)

 

A partir dessa resistência em defesa do cultivo da folha de coca, os sindicatos de produtores de folha de coca se transformaram numa das organizações mais ativas, disciplinadas e efetivas de resistência ao Estado e às pressões dos Estados Unidos, que pretendem erradicar a totalidade dos cultivos de coca.

Desde princípios do século XXI, e devido à emergência da força dos múltiplos movimentos indígenas de todo o país, o movimento da coca implementou certas estratégias de alianças regionais e nacionais com outros movimentos e setores sociais que deram lugar à formação de um “instrumento político” eleitoral que lhes permitiu tirar o segundo lugar na votação nacional de 2002, colocando-se a apenas um ponto percentual do partido vencedor, o MNR. Esse “instrumento político” denominado Movimento ao Socialismo (MAS), mais do que um partido, é uma coalizão flexível de múltiplos movimentos sociais indígenas e não indígenas, rurais e urbanos, laborais, gremiais, camponeses que expandiram para o âmbito parlamentar as suas estruturas de mobilização. No final de 2005, o dirigente máximo do partido, o líder indígena Evo Morales, foi eleito presidente da Bolívia, e o MAS conquistou a maioria na Câmara de Deputados e quase a metade do senado, além de eleger dois dos governadores das províncias.

4) A Federação de Juntas de Vizinhos de El Alto (Fejuve) reúne as associações de bairro urbanas dessa cidade. Formada em 1954, quando El Alto era apenas um conglomerado de bairros semiurbanos, a Fejuve reúne a maioria dos 700 mil vizinhos predominantemente indígenas (80%) e de recente migração rural que vivem atualmente nessa cidade. Tendo como células as comunidades urbanas de tipo territorial, “as juntas de vizinhos”, que são o único “seguro social” autônomo com o qual contam os migrantes para construir suas casas, empedrar ruas, instalar serviços básicos ou controlar a segurança local, as “juntas de vizinhos” do El Alto ganharam destaque nos últimos anos. Essa importância se deveu a uma crescente politização de suas demandas enfocadas na desprivatização dos bens urbanos básicos (água, luz e transporte), em sua participação na rebelião social que destituiu o presidente Sánchez de Losada em 2003 e na condução da demanda de nacionaliza­ção dos hidrocarbonetos nos meses de maio e junho de 2005. Com elevada proporção de trabalhadores e operários (perto de 40%) e forte presença discursiva da ideologia indianista entre suas estruturas organizativas de bairro, as juntas de vizinhos são a face mais nítida de um tipo de movimento social que combina a antiga experiência operária de sindicato com o discurso e as práticas indígenas aymarás de base urbana.

Marcha de apoio à nova Constituição da Bolívia, em 20 de outubro de 2008 (Edwin Velásquez/Wikimedia Commons)

O surgimento do papel politicamente relevante das juntas de vizinhos foi se gerando nos últimos anos. Rompendo com as redes clientelistas que prendiam as juntas vicinais aos partidos do governo nacional e municipal, o primeiro momento de autonomia política da Fejuve veio com a participação na demanda da cidade de El Alto por uma universidade pública. Essas mobilizações duraram dois anos (2001-2003) e permitiram aprofundar o relacionamento das associações de bairro a um processo de politização crescente. Em agosto de 2003, as juntas vicinais levaram adiante uma greve de 48 horas em recusa a uma medida governamental e, meses depois, em setembro-outubro de 2003, receberam a “posta” e a influência identificadora da mobilização indígena iniciada pelos camponeses aymarás do planalto contra a venda de gás ao Chile, promovendo uma insurreição desarmada que, após os 69 mortos, culminou na fuga do presidente Sánchez de Losada. Em janeiro de 2005, uma nova mobilização da Fejuve conseguiu a rescisão do contrato de gestão da água potável da empresa francesa Aguas del Illimani e, posteriormente, em maio-junho, as juntas vicinais lideraram um novo ciclo de protesto nacional com a interrupção das atividades por três semanas em favor da nacionalização dos hidrocarbonetos, que resultou na renúncia do presidente Carlos Mesa.

A Fejuve transformou-se no mais potente movimento social do país, portador de reivindicações nacionais e estatais que o levaram a considerar o tema do poder político estatal para alcançar suas reivindicações, que apontam para a estruturação de um novo sistema político e um novo regime econômico.

 

Tensões e desafios

A Bolívia encontra-se novamente num perío­do de transição das suas estruturas econômicas e políticas. E não se trata apenas de uma crise da ordem “neoliberal”, mas também da própria configuração republicana do Estado e do regime econômico construí­dos sobre mecanismos de segregação política das identidades indígenas. Estas são hoje uma força política indiscutível, sem a qual é impossível pensar a futura história estatal do país, como demonstra a eleição de Evo Morales. Igualmente, o caráter centralizador da institucionalidade política é questionado por emergentes forças empresariais regionais, que exigem um aprofundamento da descentralização política administrativa, que redistribua os mecanismos de controle da gestão estatal. Por isso, a Bolívia está vivendo uma das mais importantes reconfigurações das relações de poder político de sua história, entre identidades culturais e grupos de pressão regional que questionam simultaneamente as características do modelo de desenvolvimento fundado na simples exportação de matérias-primas, na dualidade econômica e na externalização do excedente.

Em conjunto, várias fissuras estruturais do Estado que, de um modo geral, se apresentaram na história distantes no tempo agora se acham articuladas num momento que torna complexa sua resolução.

Manifestantes bolivianos com Wiphala, bandeira de origem andina, a palavra vem do aymara e significa alegria, em maio de 2005 (Vera Bolkovic/Wikimedia Commons)

No entanto, a resolução negociada dessa disputa pelo poder poderia dar ao Estado boliviano a solidez e a projeção histórica que ele nunca pôde construir, devido ao caráter excludente da sua conformação e a sua persistente subordinação às forças externas. O trânsito em direção a um sistema estatal de democracia multicultural que incorpore os povos indígenas como sujeitos coletivos de cidadania e uma profunda descentralização político-administrativa, autônoma ou federal é um caminho pelo qual, inevitavelmente, será necessário transitar para reformar democraticamente os níveis decisórios do Estado, na perspectiva de uma nação e de um Estado multicultural, que permitam igualdade de direitos e oportunidades de indígenas e não indígenas.

Do mesmo modo, em termos econômicos, a necessidade de romper o círculo da pobreza emergente da simples exportação de matérias-primas e de promover modos alternativos de desenvolvimento das estruturas comunitárias e tradicionais apresenta-se como um desafio para os movimentos sociais e para as lideranças políticas que hoje debatem melhor maneira de sair do “neoliberalismo”. Para isso, uma ampla participação direta do Estado na propriedade, produção e industrialização do gás, o mais importante recurso natural do país nas próximas décadas, será decisiva para dar rumo à economia de uma nação condenada até hoje a ser rica em recursos naturais e pobre no usufruto coletivo desses recursos.

 

(atualização 2005 – 2015)

por Emir Sader

Primeira fase: desvelamento da crise do Estado

A Guerra da Água marca o ciclo de insurreições populares que provocou mudanças significativas na Bolívia a partir dos anos 2000. A sublevação contra a privatização do sistema municipal de águas de Cochabamba, a terceira maior cidade do país, marcou a ruptura com o consenso passivo que o neoliberalismo havia construído nos quinze anos anteriores. O processo de privatização dos serviços públicos que, até então, se mostrava irreversível, foi barrado. A lei que previa a privatização da exploração e distribuição da água acabou revogada pelo então presidente Hugo Banzer. Regionalmente, de forma inédita, a mobilização popular se articulou em torno do movimento camponês-indígena (regadores e produtores de folhas de coca), o que se repetiria em nível nacional em torno da candidatura do MAS em 2005 e 2009. Nesse processo, ficou clara a tibieza do movimento neoliberal e a possibilidade de derrotá-lo, o que animou ainda mais as forças populares.

Essa primeira fase de mudanças pode ser denominada de desvelamento da crise do Estado, uma vez que os pilares da dominação estatal (institucionalidade, ideias força de legitimação e correlação de forças entre governantes e governados) começaram a se fraturar irreversivelmente. É o momento em que ficam claras as contradições acumuladas durante séculos (Estado monocultural versus sociedade plurinacional; Estado centralista em oposição à vontade descentralizadora da sociedade), e também as contradições de curta duração (nacionalização das riquezas nacionais versus privatização; monopolização política em oposição à democratização social).

As sublevações de setembro e outubro de 2000, que resultaram no mais longo bloqueio nacional de estradas do país (23 dias), e a adesão dos setores populares às novas ideias força surgidas no seio da própria luta reivindicatória (assembléia constituinte, nacionalização dos hidrocarbonetos, entre outras) criaram um novo campo de força. O bloco dominante mantinha o poder, mas passava a disputá-lo nas esferas ideológica, simbólica e territorial, com as classes subalternas da cidade e do campo. As ideias força do neoliberalismo, que até então atraíram passivamente as classes populares, começavam a se desfazer aceleradamente diante de outras que cresciam no imaginário coletivo. Quando isso deu lugar à constituição de um bloco social com capacidade de mobilização territorial e com vontade de poder, isto é, com vontade material de disputar palmo a palmo o controle e a direção da sociedade, entramos na segunda fase de transformações, a do empate catastrófico.

 

Segunda fase: o empate catastrófico

A questão não era somente que os de cima não podiam seguir governando como antes, nem que os de baixo não queriam seguir sendo governados como sempre. O que aconteceu foi que os de baixo queriam governar, como nunca antes havia acontecido. E tal determinação foi suficiente para paralisar a ordem estatal de dominação: constituíram-se, assim, dois blocos de poder, com projetos distintos; duas capacidades de presença territorial, com lideranças antagônicas disputando a ordem estatal, e paralisando até certo ponto a reprodução da dominação.

Configurou-se, portanto, um empate entre ambos os projetos de sociedade, sem que um deles se tornasse hegemônico, ou, sem que houvesse unicidade de poder. Essa fase durou de 2003 a 2008, período marcado por contradições originadas no embate entre dois projetos de sociedade, de Estado e de economia irreversivelmente antagônicos, duas vontades de poder irreconciliáveis.

A Catedral Gótica de São Lourenço, em Potosí, Patrimônio da Humanidade (Alaexis/Wikimedia Commons)

Terceira fase: capacidade de mobilização convertida em poder

A terceira fase de transformações se apresentou disfarçada no empate catastrófico, até se revelar por inteira com a sublevação política democrática pelo voto, que levou à presidência Evo Morales, o primeiro presidente indígena e camponês da história boliviana, eleito em 2005.

Até então, a Bolívia parecia sofrer de uma espécie de atavismo colonial, que determinava inapelavelmente os papéis sociais: às classes abastadas estava reservado o exercício da dominação. Aos índios restava o papel do explorado, fosse como camponês, servente, pedreiro, ou mesmo operário. Essa ordem “natural” foi colocada de cabeça para baixo com a eleição de Evo Morales. Os filhos de mitayos levaram um dos seus, um índio, um camponês, um trabalhador, um aymará à presidência da República. Para a história racista do país, foi como se a hierarquização social a partir da cor da pele e do sobrenome cultivada desde a época colonial, se convertesse em pó diante da insolência de um camponês indígena entrando no Palácio de Governo. Assim, os subalternos deixavam de sê-lo. Se tornaram gente comum, presidentes, governantes, para o horror das estirpes coloniais, que concebiam o poder como uma prolongação inorgânica de seu sangue.

Tal insurreição da ordem simbólica da sociedade tirou o governo das classes dominantes, mas não o seu poder, constituindo a terceira fase de transformações. Ela se iniciou com a posse de Evo Morales, em 22 de janeiro de 2006, que traria à luz a contradição antagônica entre um governo controlado pelas classes populares e o poder do Estado ainda nas mãos das classes abastadas e de seus aliados estrangeiros. Houve um deslocamento do antagonismo entre os dois projetos de sociedade no interior do próprio Estado e das classes sociais do Estado – e exatamente aí situava-se a novidade da contradição antagônica. Aqui nos referimos à conjuntura política de um Estado dividido, com o governo controlado pelos insurretos e o poder do Estado (lógica e mando institucional) nas mãos das classes dominantes. De certa forma, tratava-se também de uma radicalização da segunda fase do empate catastrófico. Mas a novidade do deslocamento territorial e classista desse “empate”, que se inscrevia na própria institucionalidade dinâmica do Estado, tornava necessário tratá-lo como uma fase especifica.

 

Quarta fase: O ponto de bifurcação ou momento jacobino da revolução

A quarta fase de transformações é a que chamamos de ponto de bifurcação e que, em um sentido mais poético, poderia ser denominada também de momento jacobino da revolução. Trata-se do momento em que os blocos antagônicos, os projetos irreconciliáveis de sociedade que cobrem territorialmente a sociedade e o Estado, devem dirimir sua existência de maneira aberta, nua, por meio da confrontação, o recurso derradeiro que resolve as lutas quando já não existem outras saídas.

Foi o que aconteceu entre agosto e outubro de 2008. No dia 10 de agosto, o país compareceu às urnas em um referendo revogatório para decidir sobre a permanência do presidente Evo Morales, do vice Álvaro García Linera, e de oito governadores. O presidente e o vice foram ratificados em seus cargos com 67% de votos. Foram também ratificados os governadores de Oruro, Potosi, Tarija, Santa Cruz, Pando e Beni, sendo revogados os de La Paz e Cochabamba.

Depois da fracassada tentativa de derrubar o presidente Evo, a oposição da direita neoliberal da “meia lua”, que tinha presença territorial não apenas em Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija, mas também em La Paz, Cochabamba e Sucre, optou pelo golpe de Estado. No começo de setembro, seus militantes passaram a controlar aeroportos das principais cidades desses estados, impedindo a chegada das autoridades nacionais e hostilizando as forças policiais locais. A partir de 9 de setembro, lançaram-se à ocupação e à destruição violenta de vários equipamentos do Estado. Em dois dias, mais de 72 instalações governamentais foram incendiadas, entre elas o canal de televisão e a rádio estatal, os escritórios da empresa de telecomunicações, do serviço de impostos internos e do INRA. Grupos armados se deslocaram para controlar ou destruir – como foi o caso em Tarija – o gasoduto que vai ao Brasil e as redes de distribuição de hidrocarbonetos. Na localidade de Porvenir, no estado de Pando, 18 líderes camponeses foram assassinados e outros 30 desapareceram em uma ação dos golpistas, numa tentativa de deixar claro que não seria permitida qualquer tentativa de resistência popular.

O governo, que já previa algum tipo de ação golpista por parte da direita depois do resultado do referendo, esperou os golpistas desataram suas iniciativas, o que os deslegitimou diante do povo e do mundo como fascistas, racistas e antidemocráticos. Diante da primeira morte, porém, a resposta foi contundente, veloz e maciça. Pando, o elo mais frágil da cadeia golpista, foi tomado militarmente. Colocou-se em marcha um plano de mobilização nacional, com o apoio das Forças Armadas, de combate aos golpistas. De todas as partes do país, das comunidades, das fabricas e dos bairros, uma estrutura de mobilização social saiu às ruas para defender a democracia e a revolução.

A violência dos golpistas horrorizou a população. O presidente Evo Morales, ao ordenar a expulsão do embaixador norte-americano do país, deixou-os sem estratégia e sem ponte internacional. Os setores que os apoiavam, assustados, começaram a abandonar seus líderes, ao mesmo tempo em que a comunidade internacional condenava o golpe. Diante da convergência das forças sociais populares e das Forças Armadas, os golpistas capitularam.

Tratou-se certamente de um fato de força, de uma guerra social pontual, em que os “regimentos” dos blocos de poder em luta se mediram cara a cara. E os golpistas, ao final, retrocederam e se renderam. Reside aí, portanto, o ponto de bifurcação, no encontro de forças num cenário de combate social, em que o controle do poder do Estado acaba nas mãos do vencedor.

Nesta quarta fase, as contradições atingiram a sua epítome real, a sua origem e ponto de chegada obrigatórios como material estatal: ao choque de forças materiais. A força é o Estado em sua condição de organização desolada e arcaica, em “última instância”. Nessa fase, a contradição antagônica pelo controle do poder estatal terá de se realizar e se dirimir na base da força lograda, acumulada, feita força nua e nada mais.

Fruto dessa luta nua de forças, ou bem o poder era retomado pelas antigas classes dominantes, ou assumido pelo novo bloco de poder emergente. Não existiam pontos intermediários nem possibilidade de maior dualidade de poderes; era o momento da consagração da unicidade do poder. Por isso, o ponto de bifurcação.

À vitória militar contra os golpistas, seguiu outra, política, com a nova Constituição promulgada em outubro de 2008. O governo ainda desbarataria uma tentativa contra-revolucionaria do separatismo armado, organizada pelo grupo La Torre e seus mercenários contratados na Europa. E o bloco nacional popular se consolidaria no poder com a vitória eleitoral de Evo Morales nas eleições presidenciais de 2009, em que obteve 64% da votação, 10% a mais do que havia registrado quatro anos antes.

 

Quinta fase: a emergência das contradições criativas

A vitória eleitoral fechou a quarta fase de transformações ou a etapa da época revolucionaria, e deu início à quinta. Esta se caracterizará não mais pela presença de contradições entre blocos de poder antagônicos, entre projetos de sociedade  irreconciliáveis, como acontecia até então. Em vez disso, estará marcada pela presença de contradições no interior do bloco nacional-popular, isto é, por tensões entre os próprios setores que protagonizam o processo de transformações e que se darão em torno de como levá-lo adiante. Trata-se, portanto, de contradições não simplesmente secundarias mas criativas, porque tem o potencial de alavancar o curso da própria revolução. Quando isso acontece, as tensões se tornam forças produtivas objetivas e subjetivas da revolução.

Em fevereiro de 2016, o governo convocou um referendo sobre a possibilidade de Evo Morales e seu vice, García Linera, concorrerem a mais um mandato presidencial nas eleições de 2020. Por uma pequena diferença, o resultado foi negativo para o governo.

Balsa de totora sobre o lago Titicaca na Isla del Sol, na Bolívia (Germarquezm/Wikimedia Commons)

 

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Dados Estatísticos

Indicadores demográficos da Bolívia

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020*
População
(em mil habitantes)
2.714 3.353 4.217 5.369 6.794 8.495 10.157 11.913
• Sexo masculino (%) 49,86 49,53 49,33 49,32 49,56 49,78 49,89
• Sexo feminino (%) 50,14 50,47 50,67 50,68 50,44 50,22 50,11
Densidade demográfica
(hab./km²)
2 3 4 5 6 8 9 11
Taxa bruta de natalidade
(por mil habitantes)**
46,94 45,86 45,27 38,56 35,96 30,28 25,9* 23,1
Taxa de crescimento
populacional**
2,05 2,24 2,46 2,36 2,34 1,93 1,64* 1,44
Expectativa de vida (anos)** 40,42 43,44 46,74 53,93 60,07 63,88 67,1* 69,6
População entre
0 e 14 anos de idade (%)
41,40 42,76 43,01 42,62 41,01 39,82 36,04 32,4
População com
mais de 65 anos (%)
3,50 3,33 3,42 3,53 3,68 4,18 4,69 5,5
População urbana (%)¹ 33,85 36,76 39,78 45,45 55,58 61,83 66,43 70,44
População rural (%)¹ 66,15 63,24 60,22 54,55 44,42 38,17 33,57 29,56
Participação na população
latino-americana (%)***
1,62 1,52 1,47 1,47 1,53 1,61 1,70 1,80
Participação na população
mundial (%)
0,107 0,111 0,114 0,121 0,128 0,139 0,147 0,154

Fontes: ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Population Database
¹ Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU. World Urbanization Prospects, the 2014 Revision 

* Projeção. | ** Estimativas por quinquênios. | *** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados ou no documento indicados.

Indicadores socioeconômicos da Bolívia

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020*
PIB (em milhões de US$
a preços constantes 2010)
9.312,5 13.481,2 19.649,7
• Participação no PIB
latino-americano (%)
0,352 0,377 0,395
PIB per capita (em US$
a preços constantes 2010)
1.390,9 1.612,2 1.966,0
Exportações anuais
(em milhões de US$)
942,2 942,2 830,8 1.246,1 6.401,9
• Exportação de produtos
manufaturados (%)
3,0 2,9 4,7 28,9 6,4
• Exportação de produtos
primários (%)
97,0 97,1 95,3 71,1 93,6
Importações anuais
(em milhões de US$)
574,4 775,6 1.610,2 5.590,2
Exportações-importações
(em milhões de US$)
367,8 55,2 -364,1 811,6
Investimentos estrangeiros
diretos líquídos
(em milhões de US$)
90,5 26,1 733,6 650,8
População Economicamente
Ativa (PEA)
1.679.091 2.607.354 3.549.038 4.588.855 5.854.804
• PEA do sexo masculino (%) 74,96 61,02 56,84 55,86 54,96
• PEA do sexo feminino (%) 25,04 38,98 43,16 44,14 45,04
Taxa anual de
desemprego urbano (%)
7,20
Gastos públicos
em educação (%)
5,47 7,60
Gastos públicos em
saúde (% do PIB)²
3,67

 

3,64
Dívida externa total
(em milhões de US$)
2.340,0 3.778,9 6.740,4 5.874,5
Analfabetismo acima
de 15 anos (%)
13,80
• Analfabetismo masculino (%) 7,40
• Analfabetismo feminino (%) 19,60
Matrículas no
ciclo primário¹
609.174 856.933 1.097.661 1.492.023 1.429.084
Matrículas no
ciclo secundário¹
159.580 876.841 1.058.257
Matrículas no
ciclo terciário¹
35.250 278.763
Professores 112.238
Médicos° 657 2.143 2.853
Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH)³
0,494 0,554 0,615 0,658

Fontes: CEPALSTAT

¹ UNESCO Institute for Statistics
² Calculado a partir dos dados do Global Health Observatory da Organização Mundial da Saúde
³ Fonte: UNDP. Countries Profiles

* Projeção. | ** O ano de 1960 contabiliza apenas o Ministério da Saúde.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dados ou no documento indicados.

 

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Conteúdo atualizado em 05/07/2017 21:07