Por José Tadeu Arantes, da Agência FAPESP
No período das ditaduras civis-militares da América do Sul, ao longo das décadas de 1970 e 1980, a chamada “Operação Condor” foi uma articulação dos órgãos policiais e militares do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia, com a participação da CIA (Central Intelligence Agency, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos), visando reprimir e eliminar fisicamente os opositores dos regimes ditatoriais. Tal esquema, secreto na época, tornou-se amplamente conhecido a partir dos processos de redemocratização desses países.
Bem menos conhecido foi o fato de ter existido, no mesmo contexto, uma articulação de sentido contrário, formada por democratas corajosos, com a cobertura de setores da Igreja Católica, visando prestar solidariedade aos presos, perseguidos e refugiados políticos e denunciar os crimes contra os direitos humanos cometidos pelas ditaduras. Essa articulação, denominada Clamor, ou Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul, atuou com sede em São Paulo entre os anos de 1978 e 1991.
Contando com o decisivo apoio de Dom Paulo Evaristo Arns, à época cardeal-arcebispo de São Paulo, e a proteção da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Clamor vinculava-se à Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo e funcionava em uma sala localizada no prédio da Cúria Metropolitana. Seus idealizadores e principais responsáveis por sua criação foram o advogado de presos políticos Luiz Eduardo Greenhalgh, a jornalista inglesa Jan Rocha (correspondente da BBC e do jornal The Guardian) e o reverendo presbiteriano Jaime Wright (cujo irmão, Paulo Wright, dirigente da organização política Ação Popular, fora sequestrado, torturado e morto pelo aparato repressivo da ditadura brasileira).
Uma vasta documentação foi acumulada pelo Clamor em seus anos de atuação. Esse arquivo é de inestimável importância não apenas para a reconstituição histórica do período, mas também para a apuração das responsabilidades pelos crimes cometidos pelos órgãos ditatoriais. A reunião, preservação e organização de todo o material foi objeto do projeto “CLAMOR: documentação e memória de um comitê pelos direitos humanos no Cone Sul”, conduzido pela historiadora Heloísa de Faria Cruz, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenadora do Cedic (o centro de documentação da mesma universidade). O projeto contou com o apoio da FAPESP .
“Juntamos e higienizamos todo o material, e já digitalizamos cerca de 50 mil páginas, englobando boletins, correspondências e fichas tanto de perseguidos políticos quanto de torturadores, entre outros documentos. Só de fichas de desaparecidos políticos na Argentina, temos um total de 7.791, com informações sobre os locais, datas e circunstâncias em que foram vistos pela última vez”, disse Cruz à Agência FAPESP.
Importante peça do acervo, devido ao nome de seu signatário, é uma carta, datada de julho de 2008, do então cardeal-arcebispo de Buenos Aires, Dom Jorge Mario Bergoglio, atual papa Francisco, a Dom Odilo Scherer, nomeado em março daquele ano arcebispo de São Paulo. Na carta, Bergoglio solicitava a Scherer que lhe enviasse a reprodução dos documentos do Clamor referentes à Argentina. Em momento anterior, as listas de desaparecidos organizadas pelo Clamor haviam sido uma das principais fontes de informação para os trabalhos da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas – Conadep).
“Campos de morte”
Criada em dezembro de 1983 pelo então presidente Raúl Alfonsín e integrada por personalidades notáveis, a Conadep investigou a fundo os crimes cometidos pela ditadura e desempenhou papel fundamental no processo de redemocratização da Argentina.
As investigações conduzidas pela Conadep embasaram o julgamento e a punição dos culpados pelas violações dos direitos humanos – entre eles, o general Jorge Rafael Videla Redondo (1925 —2013), que ocupou a presidência do país entre 1976 e 1981, após o golpe civil-militar que pôs fim ao ciclo democrático anterior. Durante o governo de Videla, e admitidamente com o seu conhecimento e sob sua responsabilidade, foram assassinados ou desapareceram entre 7 mil e 8 mil opositores do regime. Condenado à prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade e destituído de sua patente militar, Videla morreu na prisão, em 2013, aos 87 anos de idade.
“O material fornecido pelo Clamor foi muito importante para o êxito das investigações da Conadep. As primeiras listas de pessoas levadas aos ‘campos de morte’ da ditadura argentina foram levantadas pelo Clamor”, informou Cruz.
A documentação do agora denominado Fundo Clamor começou a ser reunida no Cedic a partir de 1993. Antes, o material esteve sob a guarda de duas instituições distintas: o Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep) e o Arquivo Dom Duarte Leopoldo e Silva, da Cúria Metropolitana de São Paulo. “Consciente da importância do Clamor para a história recente não só do Brasil, mas também de outros países da América do Sul, o Cedic investiu fortemente em ações para a complementação, o tratamento, a organização e a preservação do acervo”, afirmou a pesquisadora.
“Nesse percurso, buscamos e obtivemos, em 2007 e 2012, respectivamente, a nominação do fundo pelo Programa Memória do Mundo da Unesco como ‘patrimônio documental do Brasil e da América Latina e Caribe’ e como ‘acervo documental que deve ser protegido em benefício da humanidade’. O projeto apoiado pela FAPESP complementou tais ações visando dar amplo acesso ao acervo”, acrescentou Cruz.
Crianças sequestradas
“Outra importante contribuição do Clamor em seu período de atuação”, falou a pesquisadora, “foi o levantamento da identidade das crianças, filhas de opositores do regime, sequestradas pelos agentes da ditadura argentina”.
Nascidas nos cárceres ou em maternidades clandestinas para onde eram encaminhadas as prisioneiras grávidas, essas crianças foram sistematicamente apropriadas pelos órgãos de repressão política e entregues a famílias de militares ou a orfanatos para adoção. Estima-se que cerca de 500 crianças tenham sido sequestradas. Destas, 117 foram posteriormente reencontradas, graças ao tenaz esforço de busca empreendido por suas avós, organizadas na associação civil Abuelas de Plaza de Mayo (Avós da Praça de Maio).
O caso mais famoso, mas que não dependeu do Clamor para ser elucidado, foi o de Victoria Analía Donda Pérez, nascida em 1977 na Escuela de Mecánica de la Armada (Esma), centro de repressão subordinado ao Ministério da Marinha. Sua história é emblemática do horror das ditaduras sul-americanas, pois a Esma, onde seus pais foram presos, torturados e mortos, era dirigido por um tio seu, o tenente naval Adolfo Miguel Donda Tigel, irmão mais velho do pai. Dada em adoção, ela foi criada na família de um militar, até que, já adulta, e desconfiando de sua suposta identidade, submeteu-se a um teste de DNA e encontrou a avó materna, uma das 12 fundadoras da associação Abuelas de Plaza de Mayo, que a procurava sem esmorecer. No processo de punição dos criminosos da ditadura, seu pai adotivo foi condenado a 18 anos de prisão, e o tio que dirigia a Esma, à prisão perpétua. Victoria é, atualmente, advogada e deputada no Congresso Nacional argentino.
“Duas crianças, localizadas ainda pequenas pela equipe do Clamor, foram os irmãos Anatole e Victoria, filhos do casal de uruguaios Roger Julien de Caceres e Victoria Grisona, assassinados na Argentina por agentes da Operação Condor em 1976”, disse Ana Célia Navarro de Andrade, pesquisadora associada do projeto “CLAMOR: documentação e memória de um comitê pelos direitos humanos no Cone Sul” e historiógrafa do Cedic desde 1992.
Depois de levadas a um centro de repressão na Argentina e a outro no Uruguai, as crianças, Anatole com 4 anos e Victoria com um ano e meio, foram abandonadas pelos agentes em uma rua de Valparaiso, no Chile. Acolhidas e adotadas informalmente por uma bem-intencionada família chilena, elas foram descobertas pelo Clamor, em articulação com as Abuelas e outras organizações de direitos humanos em 1979, quando o processo oficial de adoção já estava em sua etapa final.
A descoberta dessas crianças mostrou a eficiência de uma articulação que se contrapunha com recursos limitados ao poderoso aparato das ditaduras. O Clamor divulgara as fotos de Anatole e Victoria em todas as arquidioceses com as quais mantinha contato. E uma pessoa, na Venezuela, lembrou-se de tê-las visto no Chile. Foi por intermédio dessa pessoa que se chegou às crianças. “Na sequência, o Clamor intermediou a relação entre a família adotiva e a família uruguaia de origem, tendo o advogado Luiz Eduardo Greenhalgh participado ativamente da intermediação. O encontro das crianças, o primeiro ocorrido, foi comunicado, com grande cobertura da mídia, por Dom Paulo Evaristo Arns”, informou a historiógrafa.
Ana Célia Navarro de Andrade foi autora de um dos dois primeiros trabalhos acadêmicos dedicados ao Clamor, apresentado como dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) em dezembro de 2000. Outro trabalho foi realizado na mesma época pelo jornalista Samarone Lima de Oliveira, também na USP.
“Solidariedade não tem fronteiras”
Segundo Ana Célia, o Clamor foi criado em um momento em que a ditadura brasileira já se encontrava em fase terminal. “Ele surgiu em 1978 e a anistia ocorreu no Brasil apenas um ano mais tarde, em 1979. Por isso, o Clamor nasceu com o olhar voltado para outros países da América do Sul, onde as ditaduras ainda eram fortes e estavam cometendo grandes crimes contra os direitos humanos. Seu principal foco de atuação era denunciar esses crimes e prestar ajuda aos presos, perseguidos e refugiados desses países”, disse. E isso explica o fato de o arquivo, agora digitalizado, conter muito mais material sobre a Argentina, por exemplo, do que sobre o Brasil.
Com o slogan “Solidariedade não tem fronteiras”, os integrantes do Comitê percorreram todos os países do Cone Sul, e buscaram apoio e ajuda financeira junto a organismos internacionais, como o Conselho Mundial de Igrejas. O Boletim Clamor, seu principal órgão de divulgação, publicado em três idiomas, português, espanhol e inglês, mas de periodicidade irregular e número de páginas variável, chegou a ter 17 edições. Era enviado, pelo correio, para entidades de defesa de direitos humanos de vários países, agências de ajuda internacionais, arquidioceses da Igreja Católica, universidades, jornalistas e pessoas influentes. A mídia brasileira recebia, também, boletins específicos, sempre que havia algum fato importante a ser divulgado.
Fora do Cone Sul, o Clamor levantou também casos de violação dos direitos humanos na Nicarágua, submetida até julho de 1979 à ditadura da família Somoza, que se prolongou por 43 anos. E, depois, castigada pela ação dos Contra, grupos paramilitares financiados, armados e treinados pela CIA, durante o governo de Ronald Reagan nos Estados Unidos.
Apesar do foco nos países vizinhos, o Clamor teve pelo menos duas atuações importantes no Brasil: deu o alarme do sequestro dos refugiados uruguaios Lilian Celiberti e seus dois filhos e Universindo Dias em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; e denunciou a situação deplorável em que se encontravam os chamados “brasiguaios”, brasileiros residentes no Paraguai, que haviam sido expulsos daquele país ou se encontravam foragidos. A denúncia possibilitou que a jornalista Maria Cácia Cortês Ferreira, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, obtivesse ajuda financeira da entidade internacional Christian Aid para desenvolver, durante os anos de 1988 e 1989, o projeto de solidariedade “Brasiguaios: os refugiados que desconhecemos”.
Com base em uma formulação do reverendo Jaime Wright, Ana Célia apontou três fatores para explicar a eficácia dessa articulação: atos concretos, sem teorizações ideológicas ou partidárias; orientação ecumênica, sem preocupações sectárias; e o mínimo de estrutura institucional, a fim de que a equipe permanecesse ágil, flexível e despreocupada de interesses administrativos.
Em 1991, após 13 anos de atuação, os integrantes do Clamor consideraram que os objetivos iniciais que provocaram a fundação do comitê haviam sido atingidos. E que chegara a hora de encerrar as atividades. “Com certeza, milhares de pessoas continuavam desaparecidas, quase todos os responsáveis pela repressão continuavam livres, e a verdade sobre os anos sombrios ainda precisava ser recuperada. No entanto, bem ou mal, as entidades de Direitos Humanos dos países do Cone Sul começaram a preencher o espaço até então ocupado pelo Clamor. Já não precisavam mais de porta-voz”, afirmou Ana Célia.
“A pesquisa de Ana Célia abriu caminho para o nosso projeto. Ao reorganizar o arquivo, constatamos que, principalmente devido aos contatos de Jan Rocha e do reverendo Jaime Wright, o Clamor, a partir de um boletim de início muito singelo, criou uma impressionante rede internacional de denúncia e solidariedade”, afirmou Heloisa de Faria Cruz.
Ao final da vigência do projeto, em abril deste ano, o Fundo Clamor, organizado durante o processo, havia reunido 136 caixas arquivo; 26 pastas formato A3; 01 pasta formato A2; cerca de 25.713 documentos acondicionados; e 150 séries documentais. Os documentos digitalizados foram gravados em três formatos, Tiff, Jpeg e PDF, e armazenados em dois storages (áreas de armazenamento), de 16 terabytes cada um. Com a plataforma de internet em fase final de construção, todo esse material deverá estar disponível para consulta on-line até o final de 2015, no Portal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, franqueado ao público e possibilitando novas pesquisas.
A matéria original está disponível no site da FAPESP.