Já no Canadá, não há cooperação entre União e Províncias nas análises de impacto ambiental e as autoridades responsáveis pelo julgamento têm enorme poder de decisão; comparação foi feita em evento do RCGI.
Reunidos no Workshop sobre EIA e Licenciamento Ambiental na Indústria de Petróleo e Gás: Brasil e Canadá, advogados, engenheiros e especialistas na área de gás natural tiveram a oportunidade de assistir a uma comparação entre os processos de licenciamento ambiental, nos dois países, de empreendimentos com possíveis impactos para o meio. Organizado pela professora Hirdan Katarina Medeiros Costa, o evento, realizado no dia 26 de abril, contou com palestras das pesquisadoras Flora Stevenson, do Canadian Institute of Resources Law, e Mariana Miranda, integrante do projeto 21 do Fapesp Shell Research Center for Gas Innovation (RCGI), que está organizando um repositório digital comentado da legislação brasileira sobre gás.
Flora Stevenson, a primeira a falar, afirmou que, ao contrário do Brasil, no Canadá a Análise de Impacto Ambiental dos empreendimentos compreende apenas o aspecto biofísico. “Não se consideram os aspectos sociais, econômicos, culturais… Nada disso se considera. O que creio ser um retrocesso na Lei”, afirma ela, remetendo-se à aprovação do Canadian Environmental Assessment Act de 2012 (CEAA), em substituição à lei anterior, de 1995.
O Canadá é o sexto maior produtor de petróleo do mundo e o quinto maior produtor de gás natural. Tem a segunda maior reserva de petróleo do globo, incluindo o oil sand (também chamado de tar sand: areias betuminosas). “No tocante ao gás, grande parte é shale gas, então se faz muito fracking. Algumas províncias estão começando a impor restrição para fracking, mas não creio que seja uma tendência”, diz Flora.
Segundo ela, uma das mudanças no CEAA foi extinguir a cooperação entre o governo federal e os das províncias (equivalentes aos Estados, no Brasil) para análises conjuntas de impacto ambiental. “Se o governo federal está fazendo a análise, o provincial não pode estar envolvido. E vice versa.” Isso significa que a análise de impacto ambiental para um projeto com possíveis efeitos negativos em diversos âmbitos pode deixar descobertos impactos de competência federal ou provincial, dependendo do nível em que foi feita a análise. “Como o federalismo é forte, a maioria das análises vai ocorrer em nível provincial.”
Processo – Flora ressalta a quantidade de poder discricionário conferida à autoridade responsável pela análise de impacto ambiental. Ela explica que os projetos em nível federal precisam ser registrados na Canadian Environmental Assessment Agency (Agência Canadense de Avaliação Ambiental) e, uma vez registrados, o ministro pode decidir, discricionariamente, qual projeto precisa ou não de análise de impacto ambiental. No caso do setor de petróleo e gás, os processos vão para o National Energy Board (NEB). A avaliação de impacto ambiental desses projetos é requisitada e feita pelo NEB. “O responsável pela análise de impacto ambiental não é uma agência ambiental, como no Brasil, mas uma agência de energia. É como se fosse a Agência Nacional de Petróleo (ANP) fazendo relatório de impacto ambiental”, ressalta.
A decisão final nesses processos é orientada para deliberar se há impacto significativo e, caso haja, se ele é justificado ou não. Se for justificado, pode haver condições para a instalação do empreendimento. “Mas, mesmo que se identifique impacto ambiental, o órgão responsável pode achar que, de acordo com interesse econômico ou público, o projeto deve seguir mesmo assim.” Flora revela ainda que, ao contrário do nosso Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), lá a justificativa do relatório de impacto é curta e pouco detalhada.
“Uma coisa muito importante do direito canadense é a possibilidade de revisão judicial de decisões administrativas. Não há possibilidade alta de revisão judicial, porque o judiciário tem muito respeito pela imagem do executivo. Então se faz uma análise de standart of review, para saber o quanto de deferência deve ser conferido, pelo judiciário, à decisão administrativa.”
Mas o processo canadense de análise de impacto ambiental está prestes a mudar de rumo. Recentemente, o primeiro ministro Justin Trudeau e a Ministra do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, Catherine McKenna, lançaram um Expert Panel para desenvolver processos justos e robustos para a análise de impacto ambiental no Canadá, que incorporem evidências científicas, protejam o ambiente, respeitem os direitos dos povos indígenas e apoiem o crescimento econômico. “Eles rodaram o país colhendo sugestões e o relatório foi entregue no início de abril de 2017. Está aberto para comentário público até maio.”
Brasil – Aqui, de acordo com a Constituição de 1988, proteger o meio ambiente e combater a poluição, bem como proteger fauna e flora, são competências comuns entre União, Estados e Municípios. “A lei que rege essa competência comum é a Lei Complementar 140, de 2011. O licenciamento da competência da União é bem definido: ela licencia atividades localizadas ou desenvolvidas no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; em terras indígenas; em unidades de conservação instituídas por ela, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e aqueles localizados ou desenvolvidos em dois ou mais Estados”, enumera Mariana.
Ela explica que, pelo decreto 8.437 de 2015, foi feita uma regulamentação de tipologias. “O decreto diz que para as atividades de produção e exploração de gás natural e outros hidrocarbonetos, será do Ibama a competência para o licenciamento de: exploração e avaliação de jazidas, compreendendo as atividades de aquisição sísmica, coleta de dados de fundo, perfuração de poços e teste de longa duração realizados no ambiente marinho e em zona de transição terra-mar; produção compreendendo as atividades de perfuração de poços, implantação de sistemas de produção e escoamento, quando realizada no ambiente marinho e em zona de transição terra-mar; e produção quando realizada a partir de recurso não convencional de petróleo e gás natural, em ambiente marinho e em zona de transição terra-mar ou terrestre, compreendendo as atividades de perfuração de poços, fraturamento hidráulico e implantação de sistemas de produção e escoamento.”
Já os Estados, segundo a pesquisadora, têm uma competência residual. Toda a exploração de jazida on shore geralmente é também licenciada pelo Estado, a não ser que ela tenha impacto em dois ou mais Estados. “No caso de um duto, por exemplo: se ele passar por dois ou mais Estados, o licenciamento será também de competência da União, por meio do Ibama.”
O instrumento previsto no Brasil para licenciar empreendimentos que possam ter impacto ambiental e social desde 1986, por resolução Conama, é o EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental, seguido do respectivo Relatório de Impacto Ambiental). “Estão sujeitos à elaboração do EIA atividades como extração de combustível fóssil (petróleo, xisto, carvão), oleodutos, gasodutos, minerodutos, troncos coletores, portos e terminais de minério, petróleo e produtos químicos.”
Nesses casos em que é realizado EIA-RIMA, há necessidade de audiências públicas, com 45 dias de antecedência. “A audiência tem de acontecer nos locais de potencial interesse para conferir ao público uma possibilidade real de participação. Ainda assim, há falhas no processo, pois 45 dias não garantem o acesso de todos os grupos de interesse às audiências públicas.”
Depois de analisado o EIA-RIMA, se o empreendimento tiver viabilidade ambiental recebe uma licença prévia do órgão ambiental. “A licença prévia inclui uma série de condicionantes. Cumpridas essas condicionantes, o empreendimento ganha uma licença de instalação e, posteriormente, uma licença de operação. Entre todas essas etapas, o empreendedor tem condicionantes a cumprir. Isso é o panorama geral em qualquer competência, seja Federal ou Estadual.”
Como as atividades do setor de óleo e gás têm etapas diferentes das de outras atividades, criou-se uma normativa contemplando fases como aquisição de dados sísmicos, se for offshore, testes de perfuração, etc. “Antes de ser concedida as licenças de instalação e de operação, há etapas que contemplam a licença de pesquisa sísmica, a licença prévia para perfuração de poços (Lper), licenças de produção e escoamento e uma licença de teste de longa duração”, diz Mariana.
Procedimento e prática – Hirdan Katarina de Medeiros Costa, organizadora do evento, lembra que não existe apropriação de energia sem impacto ambiental. “Nosso desafio é: como conciliar a manutenção dos benefícios da modernidade para a sociedade e também a tutela do ambiente? São interesses que muitas vezes podem estar contrapostos, mas a gente tem de buscar a harmonização, a conciliação, e repensar os papeis dos atores envolvidos”, resume. “Pelo que vimos hoje, o Brasil tem aspectos bem mais avançados do que o Canadá em termos de legislação e normativas para estimar impactos ambientais de empreendimentos.”
Flora Stevenson concorda, mas alerta pera o fato de que a prática, no Brasil, é um problema. “O problema do Brasil é a prática, não o procedimento, que é muito avançado. No Canadá, o procedimento inclui mais poder discricionário, as leis no papel são menos avançadas, mas a prática é mais avançada”, resume.
Também presente ao evento, a professora Marilin Mariano dos Santos lembra que, apesar do Ibama ser o responsável pela maior parte dos processos de licenciamento na área de óleo e gás, ele não age como se fosse onipotente “O Ibama, nesses casos, trabalha muito com a Secretaria Estadual de Ambiente, ele ouve muito a agência estadual. Quem assina e dá a licença é o Ibama. Mas quem conhece o meio do local onde está o empreendimento é o Estado e alguns municípios, que têm competência para isso.”
Segundo ela, é preciso repensar as relações entre as partes envolvidas. “O empreendedor tem de mudar o que pensa da agência ambiental, e vice-versa. Eles não podem se ver como inimigos.”
O geólogo e Consultor Legislativo do Senado Federal, Israel Lacerda de Araújo, chama a atenção para a corresponsabilização dos agentes públicos envolvidos nos processos de licitação. “Quando se contestam os processos de licenciamento, não raro, os promotores públicos centram forças no analista ambiental, no servidor público, o elo mais fraco da cadeia. O servidor, por isso, tem enorme receio de assinar positivamente um processo de licenciamento, pois teme ser corresponsabilizado. Isso não incentiva à inovação, ao contrário: potencializa uma atitude protocolar por parte do agente público. Uma das formas de resolver essa questão seria designar a advocacia pública para defender os agentes, o que não acontece hoje. O governo de Minas chegou a encaminhar um projeto de lei nesse sentido.”