Insegurança hídrica urbana e periurbana: desafios e caminhos de reflexão e ação

Pedro Roberto Jacobi e José Irivaldo Alves Oliveira Silva em

 

O Brasil é um exemplo desse panorama planetário, em relação à forma como vem sofrendo, de modo recorrente e com maior intensidade, eventos climáticos e hidrológicos extremos

Apesar de ser um país privilegiado em relação aos recursos hídricos, dispondo de cerca de 12% de toda água doce superficial do planeta, questões como a escassez hídrica, a poluição dos corpos d’água, as crises de abastecimento em diversas regiões do Brasil e os eventos extremos relacionados às cheias e alagamentos, se apresentam cotidianamente (Jacobi et al., 2015). Isso é potencializado por uma ausência de planejamento integrado e que possa estar contextualizado com novas dinâmicas climáticas, ajustando-se a tomadas de decisão que possam prevenir certos eventos que não são totalmente naturais.

Os problemas decorrentes das mudanças climáticas afetam de modo desigual todas as regiões do mundo. O IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, Intergovernmental Panel on Climate Change) em seu relatório dos impactos, adaptações e vulnerabilidades, publicado em 2022, sinaliza que os maiores efeitos das mudanças climáticas na América do Sul e Central são referentes à insegurança hídrica. O Brasil é um exemplo desse panorama planetário, em relação à forma como vem sofrendo, de modo recorrente e com maior intensidade, eventos climáticos e hidrológicos extremos.

Em escala nacional, o desmatamento nos biomas, os processos de degradação dos solos, da poluição atmosférica e hídrica, comprometem as bacias hidrográficas fundamentais para o consumo humano, ampliando os danos à saúde, observando-se que a insegurança hídrica tem estreita relação com a insegurança alimentar, com uma parcela expressiva da população brasileira que tem fome e sede simultaneamente, de acordo com relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSANN, 2022). Além disso, o déficit de saneamento agrava ainda mais as populações do campo, da floresta, das águas, das favelas, dos bairros populares e das periferias urbanas às mudanças climáticas. Assim, as pressões sobre as fontes de água contribuem para a insegurança hídrica, exigindo uma ação integrada eficaz baseada na participação de múltiplos atores, incluindo esses que são mais atingidos diante da sua vulnerabilidade.

O conceito de segurança hídrica e sua disseminação em escala global está ligado ao fato de que se tornam cada vez mais necessárias as estratégias de longo prazo para a gestão da água

Atualmente, o objetivo de garantir a segurança hídrica tornou-se um dos mobilizadores da governança da água, e seu uso tem se intensificado desde o final dos anos 2000 (Melo e Johnsson, 2017). Portanto, uma questão importante na segurança hídrica é equilibrar as necessidades da sociedade, garantindo e protegendo os serviços básicos dos ecossistemas e a biodiversidade. Entretanto, é preciso considerar uma abordagem relacional em que a segurança hídrica não deve ser considerada um objetivo, mas sim “uma relação que descreve como os indivíduos, agregados familiares e comunidades navegam e transformam as relações hidro-sociais para aceder à água de que necessitam e para apoiar o desenvolvimento sustentado das capacidades humanas e do bem-estar na sua amplitude e alcance” (Jepson et al., 2017:50). Esta transformação para alcançar a segurança hídrica implica permitir que as pessoas e as organizações participem de forma significativa na governação da água, não só como utilizadores da água, mas também como atores políticos (Empinotti, Budds e Aversa, 2019). E, como Jepson et al. (2017) salientam, isto implica uma mudança no foco das intervenções de segurança da água, afastando-se do abastecimento de água e voltando-se para a natureza das relações água-sociedade, transformando as relações hidro-sociais para alcançar a segurança da água, o que significa permitir que as pessoas e as organizações sociais participem significativamente como atores políticos na governação da água. Isso se contrapõe frontalmente ao paradigma hidráulico que ainda domina parte das narrativas presentes em temas relacionados à segurança hídrica, e que seria apenas mais um elemento a compor essa hidro socialidade (Octavianti e Charles, 2019) .

A segurança da água é, portanto, um conceito que envolve múltiplas dimensões. Consiste em garantir o acesso à água em quantidade e qualidade a uma determinada população durante um determinado período de tempo. Na sua definição, é necessário ter em conta os aspectos sociais, econômicos, financeiros, jurídicos, ambientais, geográficos, bem como os processos naturais, analisados por ciências como a climatologia geográfica, a meteorologia, a hidrologia, a hidrografia, que tratam do volume de água disponível.

Para isso, é preciso entender que a água ofertada para consumo e produção principalmente nas áreas urbanas e periurbanas resulta de relações complexas envolvendo processos físicos e sociais que são interdependentes. O volume de água disponível, por exemplo, depende da precipitação pluviométrica, que por sua vez depende de uma série de fatores, como posição geográfica, presença ou ausência de vegetação natural, entre outros. A demanda é definida socialmente, com base no acesso à água, que pode configurar uma situação de injustiça hídrica, assim como seu uso, que depende da política pública.

Mas além de se abordar a segurança hídrica da água pela ótica do abastecimento humano e atividade económica, esta também pode ser analisada sob a perspectiva dos desastres, no qual a água pode se tornar um vetor de insegurança para a população, tanto pelo excesso como pela escassez, e, portanto, torna-se necessário considerar as zonas de risco associadas à água, que geralmente estão sujeitas a duas situações: cheias e inundações; movimentos de massa (deslizamentos de terras).

Por outro lado quando se aborda a segurança hídrica torna-se necessário levar em conta um conjunto de fatores, como é o caso dos sistemas produtivos (agrícolas, industriais e, em alguns casos, de geração de energia); e a capacidade de manter os sistemas naturais de forma a não afetar o ciclo social da água e a sua reposição, considerando os serviços ecossistêmicos e ambientais, bem como a reprodução de outras formas de vida; mas também a resiliência do sistema de abastecimento a, pelo menos, duas situações: secas intensas e prolongadas, que dificultam o fornecimento de água em quantidade e qualidade necessárias; chuvas intensas e localizadas, que dificultam o armazenamento de água, obrigando os reservatórios a “vazar” para evitar que transbordem ou estourem e as mudanças climáticas, que afetam drasticamente o abastecimento de água, alterando os padrões de precipitação.

O conceito de segurança hídrica e sua disseminação em escala global está ligado ao fato de que se tornam cada vez mais necessárias as estratégias de longo prazo para a gestão da água, que sempre foram propostas de soluções lideradas pela oferta enfatizando os impulsionadores externos no aumento dos riscos da água, mas desconsiderando as assimetrias dos riscos e subestimando suas principais causas (Loftus, 2015). Isto demanda uma compreensão mais adequada na qual se incorporem as relações que incluem acesso à água, exposição a riscos e os significados culturais da água, configurando o que tem sido definido como fluxos relacionais de água, que estão intrinsecamente associados à infra-estrutura, governança, direitos e a ação coletiva, que são estratégicos para segurança hídrica urbana (Jepson et al., 2017). Também se reflete na compreensão restrita, que a delimitação das questões relativas à governança da água em bacia hidrográfica, pode significar, não atingindo uma reflexão suficientemente realista acerca da extensão da complexidade física e político-econômica da água.

Os conflitos e os fenômenos extremos que acompanham as alterações climáticas podem ter impactos de forma a contribuir para ampliar o conhecimento e estimular mudanças nas práticas sociais em relação ao uso da água, destacando a finitude desse recurso natural e sua dimensão ecossistêmica

Novas linhas de análise incorporam a abordagem relacional e visões multiescalares para compreender a questão mais ampla da segurança da água urbana para quem, levando em conta os processos dinâmicos de fixação e fluxo em contextos urbanos. Torna-se necessário conhecer mais sobre como as experiências individuais e coletivas de (in)segurança da água representam uma configuração complexa de práticas urbanas de água e micropolíticas, moldadas pela intersecção de gênero, classe e experiências raciais. O foco nas experiências cotidianas de insegurança hídrica urbana oferece uma maneira de examinar criticamente a noção de acesso “universal” à água, bem como isto é moldado por relações de poder mais amplas dentro da cidade. Isso, claramente, destoa da visão da água meramente como recurso e a segurança hídrica como patamar de equilíbrio a ser atingido, sendo ambas as abordagens estritamente técnicas acerca da governança da água, sendo essa reduzida a uma simples vazão (Empinotti et al, 2021). Dessa forma, torna-se preciso seguir o caminho contrário das abordagens convencionais de políticas hídricas que ignoram a complexidade das dimensões integradas nos sistemas de distribuição de água, e reconceitualizar a água como uma relação, se incorpora a interconexão dos direitos e responsabilidades pela água como fundamentais para a segurança da água.

Cabe salientar que os conflitos e os fenômenos extremos que acompanham as alterações climáticas podem ter impactos de forma a contribuir para ampliar o conhecimento e estimular mudanças nas práticas sociais em relação ao uso da água, destacando a finitude desse recurso natural e sua dimensão ecossistêmica. Nesse sentido, é necessário um maior protagonismo cidadão para promover mudanças no paradigma sobre o valor e os usos da água, estimulando a co-responsabilidade. Isso significa que a governança da água deve incorporar cada vez mais uma perspectiva preventiva, pois a redução do risco de insegurança hídrica exige ações consistentes e inovadoras. Para tanto se coloca a necessidade de promover uma cultura de antecipação e evitar a ocorrência de situações de elevada escassez ou de procurar minimizar as suas consequências. Isto demanda ampliar e garantir a participação da sociedade na gestão das ações para garantir a segurança hídrica. Portanto, para prevenir a escassez e as crises hídricas, torna-se fundamental acelerar o processo de sensibilização e influência na esfera política e pública, fiscalizar o cumprimento das normas e a inclusão no acesso e distribuição da água.

No entanto, para que seja possível a participação do público nos processos de tomada de decisões, é preciso garantir a transparência e o acesso à informação, de modo a que as partes interessadas possam apropriar-se do problema e, em seguida, empenhar-se e cooperar na adoção de medidas de mitigação ou correção. Para além da disponibilidade e do acesso, outra questão fundamental relacionada com a transparência da informação sobre a gestão da água é o fato de a informação ter de ser adaptada para ser compreendida por diferentes públicos. Por isso, é fundamental adotar uma nova estratégia de gestão integrada e participativa da água, considerando a sociedade como protagonista tanto na tomada de decisão quanto no controle social das decisões que são implementadas. Isso requer um modelo de governança que permita a cooperação e a co-responsabilidade. Isso deve levar, necessariamente, à mobilização e à participação de atores sociais diversos em soluções de co-produção. O maior desafio é de não despolitizar a segurança hídrica com a ênfase numa visão exclusivamente técnica do fenômeno, mas fortalecer a sua dimensão humana e sua importância para reduzir o impacto dos crescentes riscos que tem se observado com a recorrência de eventos extremos que fragilizam as condições de vida dos segmentos mais vulneráveis da população.

BIBLIOGRAFIA

Empinotti, V. L., Aversa, M., Cortez, R., Varallo, L., e Branco, L. G. de A. (2022). Segurança Hídrica, mudanças climáticas e a Macrometrópole Paulista: desafios a partir de uma visão crítica. In Pedro R. Jacobi, Alexander Turra, Célio Bermann, Edmilson D. de Freitas, Klaus Frey, Leandro L. Giatti, Luciana Travassos, Paulo A. de Almeida Sinisgalli, Sandra Momm e Silvia Zanirato (Coords), Governança Ambiental na Macrometrópole Paulista Face à Variabilidade Climática (pp. 65-80), RIMA.

Empinotti, V. L., Tadeu, N. D., Fragkou, M. C., & Sinisgalli, P. A. de A.. (2021). Desafios de governança da água: conceito de territórios hidrossociais e arranjos institucionais. Estudos Avançados, 35(102), 177–192.

Pedro Roberto Jacobi é professor titular sênior do IEE/USP, coordenador de GovAmb/IEE/USP e pesquisador do Programa Cidades Globais/IEA/USP. Editor de Ambiente e Sociedade

José Irivaldo Alves Oliveira Silva é professor associado da Universidade Federal de Campina Grande.

 

Publicado originalmente em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2023/Inseguran%C3%A7a-h%C3%ADdrica-urbana-e-periurbana-desafios-e-caminhos-de-reflex%C3%A3o-e-a%C3%A7%C3%A3o