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Janela

Existia aquela história de dois vizinhos de apartamento que, sem nunca antes terem trocado palavra, subitamente se dão conta do quanto sabem da vida um do outro só por acompanharem, diariamente, o que o outro despeja no latão de lixo comum do andar. De uma retomada do hábito de fumar até uma redecoração geral da casa, nada escapa a olhos inicialmente desatentos quando se tornam sensíveis a certas constâncias.

Penso nisso quando vejo, pela incontavelmente repetida vez, uma mulher de vermelho na janela em frente à minha. Me corrijo: hoje ela está de vermelho, ontem era branco e em algum dia antes foi azul: alguns detalhes nos faltam mesmo à memória. Mas sei que ela tem o insistente hábito de acordar por volta das sete da manhã todos os dias e, então, parar um pouco em frente à janela.

Talvez ela pense o exato mesmo de mim, afinal, se eu a vejo é porque ela também me vê insistentemente acordada diariamente às sete da manhã olhando pela janela do apartamento. No mais, não vejo muito do quarto dela e não sei o quanto ela vê do meu. Talvez dê para ver quando é dia de faxina ou quando mudo um móvel de lugar. Talvez dê pra ver os dias em que fico mais em frente ao computador ou os dias em que vago por outros cômodos da casa.

Talvez não.

Fato é que diariamente trocamos quase olhares enquanto me pego pensando sobre como essa paisagem que vejo pela janela parece estar ficando impressa na minha retina conforme passam os dias. Antes, as janelas eram móveis: eram as janelas dos carros, ônibus e trens através das quais eu podia ver o mundo em movimento, vagar pela cidade e reparar na paisagem distante passando devagar e na próxima passando veloz. Mas a independer da velocidade, nada nunca era tão estanque a ponto de perigar se fotografar na minha retina.

Certo, quase nada, e quem já teve de andar na marginal em horário de pico vai entender do que estou falando.

Mas agora, no quarto, abro uma única janela pela manhã e espero diariamente a oportunidade noturna para fechá-la. Carrego comigo constantemente um celular e penso que, estivesse vivendo eu algumas centenas de anos atrás e um viajante no tempo especialmente distraído me mostrasse uma tecnologia dessas, não pensaria outra coisa além de que aquilo parecia uma janela interdimensional trazendo perto quem está longe, que isso é muito fascinante e o futuro, incrivelmente promissor. Ou apenas abro mais algumas dezenas de janelas de trabalho no computador e me sinto profundamente, indubitavelmente e irreversivelmente sem paciência.

Ou reparo, a cada chamada de vídeo, nas várias janelinhas que se abrem, cada uma com uma pessoa, cada uma em um microcosmo diferente. E ecoa na minha cabeça a incansável frase: naquela conversa tinham duas pessoas me olhando. E uma delas era eu mesma.

 

Texto por Mariana R. Stefani