A lei do Matrimônio Igualitário e os seus reflexos para a comunidade LGBTQIA+ chilena
Texto elaborado por Larissa Kröner Bresciani Teixeira
17 de março de 2022
O dia 10 de março de 2022 foi um marco para a história de luta da comunidade LGBTQIA+ chilena, uma vez que foi comemorado o primeiro casamento homoafetivo no país. A união estável entre casais homoafetivos era aceita desde 2015, reconhecida pelo Acordo de União Civil (AUC), normatizado pela Lei 20.830/2015. Não obstante, uma série de direitos civis ainda não estavam regulados e eram impedidos pelo governo, como no caso em tela, o próprio casamento.
Essa mudança histórica é fruto da nova legislação chilena chamada Ley de Matrimonio Igualitario, a qual altera diretamente o Código Civil do país. O Congresso chileno aprovou a medida ainda em 2021, sendo sancionada pelo presidente Sebastián Piñera em dezembro do mesmo ano. As principais mudanças giram em torno da possibilidade do casamento de casais homoafetivos, alterações dos regimes patrimoniais de casamento e questões sobre filiação, como adoção ou por técnicas de reprodução humana assistida.
Desde dezembro, o Código Civil chileno não se refere mais aos membros de uma união matrimonial como “marido” e “esposa”, mas apenas como o cônjuge/a cônjuge. A nova redação do artigo 34º do Código Civil ilustra exatamente esta nova realidade:
Art. 34. Os pais e as mães de uma pessoa são seus pais, com relação aos quais foi determinada a relação de filiação. Entende-se como tal sua mãe e/ou pai, suas duas mães ou seus dois pais. Leis ou outros As disposições que se referirem às expressões pai e mãe, ou pai ou mãe, ou outras expressões semelhantes, entender-se-ão aplicáveis a todos os pais, sem distinção de sexo, identidade de gênero ou orientação sexual, salvo por motivo de contexto ou por disposição expressa o oposto deve ser entendido (CHILE, 2021).
Ademais, a nova legislação define que a filiação será matrimonial quando há o casamento antes ou depois do nascimento ou adoção do filho, bem como aceita a possibilidade de acrescentar duas mães ou dois pais nos documentos de seus descendentes (CHILE, 2021).
Nesse sentido, a Ley de Matrimonio Igualitario representa um salto histórico para a proteção efetiva dos direitos de pessoas LGBTQIA+ no Chile, haja vista que poucos anos antes, em 2012, o país havia sido condenado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por violar uma série de direitos no caso Atala Riffo vs. Chile no que tange a guarda de menores por um casal lésbico.
Karen Atala Riffo, após o seu divórcio, manteve a guarda de suas três filhas, mas o seu relacionamento com outra mulher não foi aceito pelo genitor das crianças, o qual entrou com uma ação judicial contra Karen para retirar sua guarda da mãe, sob o fundamento de que a convivência de um casal homoafetivo com as crianças prejudicaria sua educação. O caso foi parar na Suprema Corte do Chile, que defendeu que haveria uma deteriorização do ambiente familiar e educacional das crianças pela relação homossexual em casa. Em 2010, Karen denunciou o caso perante a Comissão Interamericana e, em 2010, foi encaminhado para a Corte (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012).
Em sua sentença, a Corte enfatizou a orientação sexual como categoria protegida pelo artigo 1.1 da Convenção Americana, ou seja, como um dever do Estado e um direito protegido a: ‘’[…] não descriminação motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social’’ (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969).
Ademais, a Corte ressaltou que basear as relações maternas/paternas com seus filhos a partir da orientação sexual dos genitores é algo que reforça estereótipos preconceituosos. Assim, argumentou-se que os direitos de orientação sexual e de gênero são compreendidos como inclusos na Convenção Americana, uma vez que os tratados de direitos humanos, conceituados como ‘’tratados vivos’’, devem ser progressivos e interpretados conforme os tempos atuais (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012). .
Além desse caso, a comunidade internacional vem se mobilizando para ampliar a visibilidade dos debates políticos acerca da concretização dos direitos de pessoas LGBTQIA+. Os Princípios de Yogyakarta, ainda em 2007, definiram uma série de metas e princípios para a aplicação da legislação internacional em conformidade com a proteção da comunidade LGBTQIA+, bem como definiu ampliativamente uma série de conceitos sobre a temática, como orientação sexual e identidade de gênero (ALAMINO; DEL VECCHIO, 2018).
No âmbito latino americano, a CIDH, em 2015, publicou o relatório Violência contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas, relatando as dificuldades da implementação de legislações que resguardassem e protegessem os direitos dessa comunidade (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015).
Em 2017, a Corte emitiu a Opinião Consultiva nº 24/17 sobre as obrigações estatais em relação a mudança de nome, identidade de gênero e os direitos derivados de um vínculo entre casal do mesmo sexo, a partir de uma solicitação da Costa Rica. Neste documento, a Corte novamente ressalta que não existe um conceito vinculativo de família na Convenção Americana, assim como não protege apenas uma forma específica de família. A Corte reafirma que casais homoafetivos e seus filhos são considerados uma forma de família, seja essa união materializada pelo casamento ou não (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2017).
Assim, o casamento se torna um instituto de decisão voluntária do casal, não devendo ser impedido por parte do Estado. A legalização do casamento homoafetivo faz parte de um processo de concretização dos direitos humanos em âmbito interno, uma vez que deve ser de livre arbítrio do casal escolher o instituto e a sociedade patrimonial que querem para si, seja o casamento, a união estável ou nenhum destes institutos.
No âmbito interno chileno, menciona-se que a decisão Atala Riffo perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos não é vista como de execução obrigatória. Todavia, o Chile é parte da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que foi interpretada neste caso de forma extensiva para a ampliação da proteção dos direitos de pessoas LGBTQIA+. Assim, como Estado parte, o Chile, ao modificar a sua legislação interna acerca do casamento homoafetivo e de outras questões civis, caminhou no sentido de respeitar a própria Convenção Americana e outros instrumentos internacionais que protegem essa comunidade. Pode-se dizer que este caso é considerado como dos casos de maior sucesso no Chile, sobretudo porque teve um impacto direto na legislação do país.
No mesmo sentido, em 2019-2020 houve uma série de protestos que eclodiram no Chile reivindicando direitos trabalhistas e sociais. Além destas pautas, os grupos também manifestaram-se em busca da reforma do Código Civil, sobretudo buscando alterações acerca do casamento civil de casais homoafetivos.
Como reflexo de todas as reivindicações internas e internacionais, a partir dos protestos e da visibilidade do caso Atala Riffo, o Chile finalmente foi incluído na lista de 30 países que atualmente aceitam o casamento homoafetivo. O primeiro casamento homoafetivo no Chile foi de Javier Silva e Jaime Nazar, casal com dois filhos pequenos e que já está junto há 7 anos, sendo 3 anos de união estável. Em entrevista para a CNN Chile (2021), Javier relata: ‘’É uma honra, um orgulho, agradecemos a todos que tornaram isso possível. Agora podemos dizer que nossos filhos têm os mesmos direitos que todos os outros e esperamos que não sejam discriminados por terem dois pais”.
No mesmo dia, Consuela e Pabla se tornaram o primeiro casal lésbico a contrair matrimônio no Chile. Depois de 17 anos juntas, o casal finalmente pode dizer: ‘’Nossa filha deixa de ser ilegítima’’ (CNN CHILE, 2021).
Os casamentos de Javier Silva e Jaime Nazar, assim como de Consuela e Pabla, no dia 10 de março de 2022, evidenciam os resultados de anos de luta por uma efetiva aplicação e interpretação dos direitos humanos para as pessoas LGBTQIA+.
Referências:
ALAMINO, F. N. P.; DEL VECCHIO, V. A. Os Princípios de Yogyakarta e a proteção de direitos fundamentais das minorias de orientação sexual e de identidade de gênero. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, [S. l.], v. 113, p. 645-668, 2018. DOI: 10.11606/issn.2318-8235.v113i0p645-668. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/156674. Acesso em: 14 mar. 2022.
CHILE. Ley 21400. Modifica diversos cuerpos legales para regular, en igualdad de condiciones, el matrimonio entre personas del mismo sexo. 10 de diciembre de 2021. Disponível em: https://www.bcn.cl/leychile/navegar?idNorma=1169572
CHILE ATIENDE. Ley de Matrimonio Igualitario. 16 diciembre 2021. Disponível em: https://www.chileatiende.gob.cl/fichas/101164-ley-de-matrimonio-igualitario
CHILE ATIENDE. Acuerdo de Unión Civil. 1 de septiembre de 2021. Disponível em: https://www.chileatiende.gob.cl/fichas/37532-acuerdo-de-union-civil
CNN CHILE. ‘’Nuestros hijos tendrán los mismos derechos que todos”: Así fue el primer matrimonio igualitario en Chile. 10 de marzo de 2021. Disponível em: https://www.cnnchile.com/pais/primer-matrimonio-igualitario-chile_20220310/
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Violência contra Pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas. OAS/Ser.L/V/II., Doc. 36/15 rev.1, 12 novembro 2015. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/docs/pdf/violenciap essoaslgbti.pdf
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Atala Riffo e Crianças vs. Chile. Sentença de 24 de fevereiro de 2012 (Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_por.pdf
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. Opinión Consultiva OC-24/17. Identidad de Género, e Igualdad y no Discriminación a Parejas del Mismo Sexo, 24 de noviembre de 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs /opiniones/seriea_24_esp.pdf
G1. Chile celebra 1º casamento gay após mudanças na legislação. Disponível: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/03/10/chile-celebra-1o-casamento-gay-apos-mudancas-na-legislacao.ghtml
MONTES, Rocío. Chile reconhece pela primeira vez a união civil de homossexuais. In: EL PAÍS, 29 de janeiro de 2015. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/01 /29/internacional/1422496331_185068.html.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana dos Direitos Humanos. Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm
VIVANCO, José Miguel. A Step Backward for Same-Sex Couples in Chile. In: Human Rights Watch, 24 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2020/09/24/step-backward-same-sex-couples-chile
Fonte: SEBASTIAN BELTRAN GAETE/AGENCIAUNO.