A Questão de Independência na Nova Caledônia

por Antonio Cavalcante

No contexto pós-colonial, movimentos emancipatórios assumem uma perspectiva distinta e  bastante plural, mesclando matizes associados a populações multi étnicas, fronteiras delimitadas na época colonial, bem como sentimentos de pertencimento e identidade típicos que juntam noções de minorias nacionais e linguísticas ao desafio da titularidade de soberania. Recentemente, houve um reaquecimento de movimentos separatistas, ondas nacionalistas e atritos representativos internos no que cabe às minorias nacionais e étnicas. Ainda assim, é interessante notar que esses episódios ainda coexistem com exemplos tipificados no formato clássico de dinâmicas de descolonização.

No presente artigo, faremos um comentário sobre o tópico da Autonomia e Autodeterminação que embasam o conceito político de Independência, seguido de uma contextualização do caso da Nova Caledônia, norteando síntese das indagações que ele suscita sobre a busca de Independência.

Em termos mais gerais, a noção de independência coincide com soberania titular e prevê autonomia externa. Há um repertório simbólico enorme sobre a ideia emancipatória de independência, parte do qual, contemporaneamente, recupera as implicações de normas cogentes no Direito Internacional, ao caso do Principio de Autodeterminação dos Povos. A Autodeterminação detêm uma presença quase constante nos foros de debate internacional e uma participação ainda mais antiga verificada no arcabouço de valores e ideais políticos que cristalizam noções modernas canônicas, ao exemplo do Estado-Nação e suas diversas vertentes de fundamentação ideológica como o Nacionalismo e a Doutrina de Nacionalidades, desde o século XIX e suas revoluções. A sua trajetória de codificação, porém, é alvo de recorrentes embates pelo teor aberto e o dilema de exercer essa prerrogativa, quando há, em especial, brecha de territórios existentes. Sobre esse tópico, mesmo no caso de atritos de integridade territorial, há ainda um importante precedente na jurisprudência pelo Parecer Consultivo da Corte Internacional de Justiça, em 2010, sobre a Independência de Kosovo, que conforme o referido parecer, não violou diretrizes do Direito Internacional.

Após sua presença consumada como norma cogente no preâmbulo e na Carta das Nações Unidas, o Princípio figura ainda nos artigos introdutórios do Acordo sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais, ambos frutos do fortalecimento deliberativo e acréscimo numérico dos países em desenvolvimento e recém-independentes, sob o respaldo institucional da ONU. Assim, de acordo com esses documentos “todos os povos detêm direito a Autodeterminação, pela qual decidem seu destino politico”.

Embora se espelhe por vias institucionais, a Autodeterminação possui interação discursiva com o fenômeno aberto do nacionalismo, que, em um mundo de fronteiras delimitadas e ausência de terra nulis, respectivamente condiz com dinâmicas representativas e sentimentos nacionais minoritários em países já constituídos, logo dispondo risco ao desenho das fronteiras existentes.

Parte do dilema dessa leitura e aplicabilidade, surge precisamente pela definição aberta de Povos no Direito Internacional, bem como pelos mecanismos que viabilizem transições para independência titular, como referendos e plebiscitos, ao contraste de possibilidades traumáticas como conflito armado e guerra civil. Ainda assim, as dinâmicas para reconhecimento desses mecanismos de deliberação e participação popular são delicadas, e há sempre os trâmites de reconhecimento de sua legalidade, ao caso ilustrativo da Catalunha em 2017, refletindo inevitavelmente a questão política. O fundo dessa problemática é precisamente o desafio da inserção normativa de algo que detêm suas raízes últimas na esfera da Política. Alguns autores debatem essa proposta de privilégio das integridades do Estado e da Autodeterminação como capacidade participativa em regimes constitucionais sem maiores rupturas, colocando-se em defesa de uma interface reparatória acordada de procedimentos secessionistas apenas em último caso justificados por violações contínuas de direitos, em especial de Direitos Humanos.

Por outro lado, a visão mais inconteste que não é alvo de debate doutrinário, é precisamente a inserção da Autodeterminação na ótica de Descolonização, quando não são envolvidas brechas territoriais e elementos de Secessão de Estados. Isso corresponde ao esgotamento natural e superação dos últimos resquícios dos sistemas de dominação colonial e a emancipação desses territórios. Se no caso contemporâneo, debates de leitura sobre o Princípio começam a emoldurar a noção de minorias nacionais, o caso da Nova Caledônia é exemplo nítido da moldura clássica de “descolonização”. Nesse caso, e conforme veremos, o fato interessante repousa não em dilemas doutrinários, mas na força interna de um sentimento nacional e a escolha de efetivar essa transição para Independência, não nas barreiras postas a ela. É uma questão de escolha política cujos mecanismos institucionais estão abetos e acessíveis. É também pertinente notar o traço comum de referendos como mecanismo processual para Independência, havendo contraste porém com outros casos, ao exemplo da Catalunha em 2017, comunidade autônoma na Espanha. Houve instauração de referendo pelo Parlamento da Catalunha, por sua vez declarado inconstitucional pela Espanha através da Corte Constitucional Espanhola. Essa é uma dinâmica distinta dos Acordos presentes na Nova Caledônia, com previsão de mais longa data desses mecanismos, dispondo sobre sua periodicidade em acordo de partes originário com a França.

A Nova Caledônia é um território formado em arquipélago dependente da soberania francesa, detém IDH de 0,878, oque o qualifica como bastante elevado. Em termos normativos, é uma coletividade territorial ultramarina da França sobre o qual o Acordo de Nouméa cria disposições especiais e um estatuto típico. Expedições francesas datam de 1827, com presença de missionários no local em 1841. A proclamação de colônia francesa ocorreu em 1853. O território foi utilizado para bases militares junto aos esforços aliados na frente contra o Japão. Foi precisamente no contexto do pós-guerra que a França retirou a terminologia de Colônia da Nova Caledônia.

Sempre houve disputas entre partidários e opositores ao movimento emancipatório de independência, que tomou maior fôlego em 1980 com ondas de protestos separatistas. Essa época coincide com desdobramentos no Direito Internacional que dizem sobre garantias de direitos cultuais e civis, abarcando já noções de minorias nacionais, bem como de garantias civis e culturais que datam dos desenvolvimentos das Declarações da década de 1960. Em termos linguísticos, mais de 28 línguas não oficiais são faladas por minorias étnicas, adentrando o debate dialetal, onde o Francês segue como língua oficial. A gestão administrativa ocorre com duplas de deputados e senadores no parlamento francês, bem como um executivo local com poderes sobre políticas públicas de saneamento, estrutura, saúde e educação.

Em 1988 o Acordo de Matignon coloca pela primeira vez em termos normativos os procedimentos para Independência e a questão de Autodeterminação, que é enfim suplementado pelo Acordo de Nouméa em 1998. No Sistema das Nações Unidas, a Nova Caledônia está inclusa na lista de territórios não autônomos pelo Comitê de Descolonização desde 1986. O Acordo de Nouméa é um dispositivo legal que prevê direito a população da Nova Caledônia para realizar até três referendos, o primeiro ocorrendo em 2018, o segundo, que ocorreu recentemente em Outubro de 2020 e um remanescente para 2022. Esses referendos dispõem sobre a independência territorial da França e soberania titular. O caso da Nova Caledônia é ilustrativo de vários aspectos envolvidos em um fenômeno de Independência, e distingue-se de outros casos, como a experiência Catalã, também recente.

O resultado do último referendo foi negativo, com 53.26% da população contrária a Independência, ainda que por uma margem pequena, revelando uma divisão social marcada sobre o tópico. Embora longe de unanimidade, suscita o posicionalmente da população sobre o sentimento nacional, em especial quando se considera que a margem de partidários à Independência cresceu em comparação aos votos do referendo anterior. O primeiro referendo de 2018 foi igualmente negativo, porém com uma margem maior, de 56.40% votos contrários. A redução dessa margem vem em paralelo com um recente aquecimento de movimentos nacionalistas e emancipatórios, bem como dinâmicas de contestação à integração regional que ocorreram na Europa nos últimos anos.

O grande elemento problemático sobre a emancipação em dinâmicas separatistas é o conflito entre violação da Territorialidade e Autodeterminação dos Povos. Notadamente, o contexto do pós-guerra, na primeira e na segunda guerra mundial, abarcou de forma conjunta duas ondas respectivas de descolonização e autonomia de territórios outrora dependentes. Embora diferente de outros casos onde houve independência efetivada, a retirada do termo Colônia do território da Nova Caledônia data justamente do pós segunda guerra, bem como seus primeiros mecanismos normativos para implementação dos referendos.

O caso da Nova Caledônia é, interessantemente, distinto das fragmentações territoriais por conflito étnico, com dinâmicas inclusive genocidas ao exemplo da Ex-Iugoslávia ou de regiões com um histórico de autonomia administrativa como a Catalunha na Espanha, adjunta de clivagens linguísticas e cultuais, como o Pais Basco, também na Espanha, ou elementos nítidos de territorialidade juntamente aos demais aspectos, no caso de Kosovo. Ela recupera um caso mais típico, menos controverso pelo resquício de dinâmicas coloniais, propriamente embasadas em um esforço de Descolonização. Em contraste com as disputas arraigadas e a criação de referendos locais sem uma previsão legislativa antiga, como na Catalunha, a Nova Caledônia, muito embora tenha garantia institucional de transição, votou mais uma vez contra a Independência, embora por uma margem, que como vimos, vem se estreitando. Isso gera interessantes reflexões sobre as dinâmicas de formação de pertencimento, sentimento nacional, custo e desafios de gestão envolvidos na administração de um território independente e defesa de sua soberania. Vide direitos sucessórios e reinserção em tratados e obrigações para com a comunidade internacional, bem como em última instância, segurança. A escolha da população da Nova Caledônia nos permite refletir sobre o tempo de maturação de sentimentos nacionais e patrióticos, elabora sobre clivagens socais nessas opiniões e revela uma dinâmica crescente de adesão ao movimento, pela margem de votos que se estreita em tendência e pode enfim confirmar a Independência no último referendo vindouro, não é porém, uma unanimidade.

É igualmente valoroso observar a presença dos mecanismos participativos e de instrumentos legais que favorecem transições pacíficas ou reconhecem constitucionalmente sua possibilidade, bem como a ausência de conflitos armados sistemáticos frequentes nos fenômenos políticos de emancipação.

Referências Bibliográficas:

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