CONSCIÊNCIA NEGRA E O LEGADO DE ZUMBI DOS PALMARES     

Por Cássio Vinicius Coutinho Silva

O dia 20 de novembro de 1695 tem seu lugar na história brasileira em virtude do assassinato de Zumbi dos Palmares. Há 325 anos, o legado de um dos maiores protagonistas da luta antiescravista e antirracista tem servido como inspiração para quem tem sido obrigado a experimentar a pior parte de um país onde o racismo ainda dá as cartas. Como é sabido, o fim formal da escravidão não significou a extinção do racismo no Brasil. Por consequência, posicionar-se para combater a desigualdade racial em todas as suas formas e para demandar a ocupação de espaços nos quais a ausência do negro é naturalizada faz-se um imperativo moral para todos os indivíduos que se reputam antirracistas.

Os primeiros registros da existência do Quilombo dos Palmares referem-se ao ano de 1597. Localizava-se na região da Serra da Barriga, pertencente à capitania de Pernambuco à época e ao estado de Alagoas na atualidade. Chegou a abrigar cerca de 20 mil habitantes e foi o maior quilombo existente no período colonial. Ao longo de sua existência, seus habitantes tiveram de resistir a tentativas de destruição efetuadas no contexto de expedições múltiplas. Embora os holandeses tenham realizado investidas contra Palmares, o período de instabilidade no domínio colonial correspondente à invasão neerlandesa (1630-1654) foi o que registrou o crescimento populacional mais expressivo do quilombo.

Entre as últimas décadas do século XVI e o último decênio do século seguinte, Palmares contou com sucessivos líderes. Até o momento, conhecem-se nominalmente os dois últimos: Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares. Este permaneceu à frente do quilombo entre 1678 e 1694, quando da destruição definitiva por ação de uma empreitada encabeçada por Domingos Jorge Velho. A resistência na região prosseguiu após a extinção de Palmares até que, em 20 novembro de 1695, Zumbi foi morto.

O fim de Palmares não significou de modo algum o fim dos quilombos em terras brasileiras. Já no período imperial, têm-se registros de quilombos como o do Jabaquara, localizado na cidade de Santos e o do Leblon, no Rio de Janeiro. As camélias cultivadas no último tornaram-se símbolo do movimento abolicionista. Por sua vez, a mobilização antiescravista no Brasil alcançou seu objetivo em 13 de maio de 1888, com a entrada em vigor da Lei 3.353, também conhecida como Lei Áurea.

O término da escravatura foi desacompanhado de medidas de integração e de inclusão social do negro na sociedade brasileira. Jamais houve política educacional, agrária, de inserção no mercado de trabalho, de assentamento ou de moradia. Quanto à política agrária, o que existia nas últimas décadas do século XIX era o Brasil esforçando-   -se para atrair imigrantes europeus para a zona rural. Foi exatamente pela falta de política habitacional inclusiva que, nas zonas urbanas, surgiram comunidades formadas por casas em péssimas condições sanitárias, as quais posteriormente seriam conhecidas como favelas. A primeira surgiu na cidade do Rio de Janeiro e recebeu o nome de Morro da Favela, atualmente denominada Morro da Providência.

Além da completa ausência de políticas públicas de inclusão do negro, possuíam status de pensamento científico dominante algumas teses racistas. Intelectuais brasileiros optaram por “julgar povos e culturas a partir de critérios deterministas” e fazer do Brasil um “laboratório racial”. Alguns expoentes do suposto pensamento científico de hierarquias raciais foram Oliveira Viana e Nina Rodrigues.

A partir da década de 1930, os escritos de Gilberto Freyre impulsionaram no Brasil a formação da ideia de democracia racial, segundo a qual seríamos um país livre de racismo e o então denominado “mulato” seria alçado à condição de símbolo nacional. A tese da democracia racial é evidentemente fantasiosa e negacionista. Por mais que ela não integre o discurso oficial do Brasil na atualidade, ainda encontra acolhida em parcela não desprezível da sociedade. O fato de o Brasil nunca ter implantado regime de segregação racial após a abolição formal da escravidão é frequentemente utilizado como argumento por quem nega ou não dá a devida importância ao problema do racismo.

O Brasil nunca implantou um regime de apartheid para que atualmente negros sejam sub-representados em postos profissionais de comando, nas cadeiras do Poder Legislativo federal e nas classes sociais mais elevadas. Negros também são maioria entre as vítimas de homicídio, entre os encarcerados e nas classes sociais menos abastadas, além de apresentarem nível de escolaridade mais baixo e taxas de analfabetismo e de desemprego mais elevadas que as dos brancos. Quando empregados, o rendimento mensal médio dos negros é 57% daquele destinado aos brancos. Bastou que o Estado brasileiro retardasse em mais de um século a implantação de políticas públicas de inclusão para preservar até os tempos hodiernos um estado de coisas no qual o racismo é estrutural, é regra e não exceção.

No ano de 2020 e nos anos vindouros, a resistência outrora protagonizada por Zumbi dos Palmares deve ser motivação para que desigualdades materiais fundadas em raça sejam lançadas por terra no Brasil. A consciência negra e o antirracismo devem ser as principais razões para que práticas discriminatórias sejam extirpadas da vida em sociedade e das instituições brasileiras.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. In: Estudos e pesquisas: informação demográfica e socioeconômica, n. 41, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 22 nov. 2020.

CRONOLOGIA do Quilombo de Palmares. Folha Online – Brasil 500. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/zumbi_19.htm. Acesso em 22 nov. 2020.

SANTOS, Prefeitura Municipal de. Os quilombos de Santos na luta abolicionista. Santos, 2008. Disponível em: https://www.santos.sp.gov.br/?q=noticia/os-quilombos-de-santos-na-luta-abolicionista. Acesso em: 22 nov. 2020.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças – Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SILVA, Daniel Neves. Quilombo dos Palmares. Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/quilombo-dos-palmares.htm. Acesso em 22 de novembro de 2020.

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